Turner na liberdade das suas aguarelas dá-nos a emoção do olhar e do sentir em estado puro.Este espaço propõe-se convocar, pela voz dos que sabem, múltiplos instantes de vida: luz e sombra; esquecimento e memória; vida e morte...
"Seja qual fôr o caminho que eu escolher um poeta já passou por ele antes de mim"
S. Freud
terça-feira, dezembro 30, 2008
Será feita de aves......
ser-nos-ão concedidos os dons do voo e do sonho permanente
juntos descobriremos a fonte do nocturno bosque
e a sabedoria do estritamente necessário
despojar-nos-emos dos corpos
dos objectos acumulados na memória
do sonho e do ouro utópico chegará a metamorfose
o tempo será rigorosamente prolongado a cada enxertia dos pomares
da mesma árvore derramar-se-ão frutos diferentes
quando os dias se tornarem mais nítidos
o regresso é demorado
avança manhã adiante
com o crescimento das mãos e da sageza.
(Al Berto- Vigílias)
domingo, dezembro 28, 2008
Ele é um dos eternos mensageiros...
Celebrar, sim! Eleito a celebrar
surgiu como o minério do silêncio
da pedra. Ó coração, mortal lagar
de um vinho inesgotável para os homens.
A nenhum pó a sua voz falhou
se o exemplo divino dele se apossa
Tudo se faz vinhedo e se faz uva
amadurada no seu Sul sensível.
Nem nas criptas dos reis a podridão
poderá desmentir seu celebrar,
ou sombra que dos deuses caír possa.
Ele é um dos eternos mensageiros
que ainda pra lá dos umbrais dos mortos
erguem taças de frutos gloriosos.
(Rainer Maria Rilke-Sonetos a Orfeu)
Bach. Cantata BWV 147. 1
O ser humano não se compadece com os males a que não assiste
(...)
(Marguerite Yourcenar-1972-O Tempo esse grande escultor)
sábado, dezembro 27, 2008
Da consciência-perdoem-me- mas desconfio...
Usando de um prudente relativismo, penso que todas estas interrogações se podem reduzir a uma: que fazer do desejo?
Hoje a maioria de nós vive presa a formas martelantes de vida ( família, trabalho, consumo, cultura), como preservar o nosso desejo naquilo que ele tem de mais imperativo? Porque é através desse potente motor que nós, para nos salvarmos da rotina no que ela tem de mortal, poderemos avançar para mais liberdade.
Da consciência-perdoem-me-mas desconfio. Ela está tão ocidentalmente conformada que não raro, se confunde com a culpa, o remorso, a espiação ou então, com a vaidade, o orgulho, a prepotência. Através do desejo, poderemos buscar o inesperado e encontrá-lo. Parece-me ser a única forma autêntica de libertação. Mas que, nestas filosofâncias, fique bem claro que, quando penso em desejo, não estou a pensar em termos exclusivamente sexuais. O desejo é mais que o apetite. É como o amor: uma forma de sexualidade alargada. Não há comportamento humano que lhe escape.
(Alexandre O'Neill- Uma coisa em forma de assim)
sexta-feira, dezembro 26, 2008
Agora sim...agora não....Os Deolinda
Estou deliciada com este disco. Se ainda não o conhecem não percam a oportunidade. Um grupo, radicalmente original, capaz de inovar no plano musical/instrumental e no plano da letra. Esta canção caracteriza, genialmente, a nossa resistência à mudança.
quinta-feira, dezembro 25, 2008
Lisboa não é a cidade perfeita-Os Deolinda
quarta-feira, dezembro 24, 2008
Hoje é Noite de Natal
terça-feira, dezembro 23, 2008
A pena não acode ao gesto seu...
Soneto de natal
Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"
(Machado de Assis)
segunda-feira, dezembro 22, 2008
Não podemos ignorar...
Cantata da Paz
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças
D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.
(Sophia de Mello Breyner Andersen)
domingo, dezembro 21, 2008
Aznavour - Noel à Paris
sábado, dezembro 20, 2008
Boas - Festas a todos os Amigos!
quinta-feira, dezembro 18, 2008
Nada do que é convencional...
Esta árvore foi encontrada acidentalmente numa missão abandonada e semi-destruida pela guerra e pelo abandono dos homens - MISSÃO DE BOROMA- perto de Tete. Achei-a como quem acha um tesouro. Olhei-a e, ainda hoje a olho, como símbolo da vitória da vida sobre a morte. É esta,pois, a Árvore de Natal que trago para todos.(19/12/2005-Addiragram)
Não há pinheiros nem há neve,
Nada do que é convencional,
Nada daquilo que se escreve
Ou que se diz... Mas é Natal.
Que ar abafado! A chuva banha
A terra, morna e vertical.
Plantas da flora mais estranha,
Aves da fauna tropical.
Nem luz, nem cores, nem lembranças
Da hora única e imortal.
Somente o riso das crianças
Que em toda a parte é sempre igual.
Não há pastores nem ovelhas,
Nada do que é tradicional.
As orações, porém, são velhas
E a noite é Noite de Natal.
(Cabral do Nascimento)
quarta-feira, dezembro 17, 2008
Se fosses mágico...
Versos de Natal
Espelho, amigo verdadeiro,
Tu reflectes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exacto e minucioso,
Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até ao fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
Manuel Bandeira ( Lira dos cinquent' anos)
terça-feira, dezembro 16, 2008
Conta uma história de Natal do teu país...
(....)
Uma noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do Porto, mas não fui capaz de bebê-la assim, completamente só, num quarto de criada de um sexto andar numa velha rua do Quartier Latin. Peguei na garrafa e fui até aos Halles. Procurei o bistrot onde costumava comer uma omelete de fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia mais três solitários no bistrot, um velho de grandes barbas, um tipo com cara de eslavo, um africano. Convidei-os para partilharem comigo a garrafa de Porto, que não resistiu muito tempo. Encomendámos outras bebidas.
- Conta uma história de Natal do teu país, pediu o velho.
- Só se for a do presépio da minha avó.
- Então conta.
Eu contei. Era já muito tarde e o patrão disse-nos que queria fechar. Chegados à rua o africano apontou o céu e disse-me: Olha.
E eu vi. Uma estrela que brilhava mais que as outras estrelas. Era uma estrela de prata. A estrela da avó. Brilhava no céu, brilhava outra vez dentro de mim, quase posso jurar que brilhava dentro dos outros três.
Então eu perguntei ao africano como se chamava. E ele respondeu:
- Baltazar.
Perguntei ao velho e ele disse:
- Melchior.
E sem que sequer eu lhe perguntasse o eslavo disse:
- O meu nome é Gaspar.
Era noite de Natal e talvez ainda por magia da avó eu estava na rua, em Les Halles, com os três reis do Oriente, Magos, diria o meu pai.
- E agora? perguntei a Baltazar.
- Agora, respondeu o africano apontando a estrela, agora vamos para Belém.
(Manuel Alegre)
segunda-feira, dezembro 15, 2008
Balthazar na Barbearia
"Aguarelas de Turner" apresenta votos de uma escolha lúcida, apaixonada, e independente.
(Addiragram)
Para isso fomos feitos...
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos-
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos-
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai-
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte-
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos imensamente.
(Vinicius de Morais- Antologia Poética)
domingo, dezembro 14, 2008
A minha estrelinha de Natal
sábado, dezembro 13, 2008
Só bonito na lembrança...
Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.
Natal na fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.
Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.
(Miguel Torga- Diário XII-Antologia Poética)
sexta-feira, dezembro 12, 2008
Olho, já não vejo nada...
O prato de trigo novo,
A camélia imaculada,
o gosto no pão do povo?
Olho, já não vejo nada.
Chamo, ninguém me responde.
Natal das Ilhas. Serão
Ilhas de gente sem telha,
Jesus nascido no chão
Sobre alguma colcha velha?
Burra de cigano às palhas,
Vaca com língua de pneu,
Presépio girando em calhas
Como o eléctrico, tu e eu.
Natal das Ilhas. Já brilha
Nas ondas do mar de inverno
O menino bem lembrado,
Que trouxe da sua ilha
O gosto do peixe eterno
Em perdão do seu passado.
( Vitorino Nemésio- Antologia Poética)
quinta-feira, dezembro 11, 2008
Todos estes pastores são jovens tecnocratas...
Em vez da consoada há um baile de máscaras
Na filial do Banco erigiu-se um Presépio
Todos estes pastores são jovens tecnocratas
que usarão dominó na próxima década
Chega o rei do petróleo a fingir de Rei Mago
Chega o rei do barulho e conserva-se mudo
enquanto se não sabe ao certo o resultado
dos que vêm sondar a reacção do público
Nas palhas do curral ocultam microfones
O lagedo em redor é de pedras da Lua
Rainhas de beleza hão-de vir de helicóptero
e é provável até que se apresentem nuas
Eis que surge no céu a estrela prometida
Mas é para apontar mais um supermercado
onde se vende pão já transformado em cinza
para que o ritual seja muito mais rápido
Assim a noite passa. E passa tão depressa
que a meia-noite em vós nem se demora um pouco
Só Jesus no entanto é que não comparece
Só Jesus afinal não quer nada convosco.
(David Mourão-Ferreira- Cancioneiro de Natal -1969)
quarta-feira, dezembro 10, 2008
Mas o natal da minha mãe é ainda o meu natal
A abstracção não precisa de mãe nem pai
nem tão pouco de tão tolo infante
mas o natal de minha mãe é ainda o meu natal
com restos de Beira Alta
ano após ano via surgir figura nova nesse
presépio de vaca burro banda de música
ribeiro com patos farrapos de algodão muito
musgo percorrido por ovelhas e pastores
multidão de gente judaizante estremenha pela
mão de meu pai descendo de montes contando
moedas azenhas movendo água levada pela estrela
de Belém
(João Miguel Fernandes Jorge)
Como habitualmente, dedico estes dias aos poetas e escritores que, inspirando-se no Natal, também o pensaram ou questionaram através da lente dos seus afectos. Uma maneira de O festejar...à minha maneira.
segunda-feira, dezembro 08, 2008
O meu Natal
Em pequena, os ruídos simulados pelos meus pais, na chegada atribulada do Pai Natal, que tinha de conseguir, antes da descida, o "milagre do emagrecimento", procurando pôr à prova a lógica infantil (mamã se o Pai Natal é tão gordo como é que consegue descer?), deixavam-me quase sem sono, e numa imensa e misteriosa alegria. As primeiras madrugadas que fiz foram seguramente estas. Corria para a chaminé da cozinha, que fora cuidadosamente preparada para este dia tão nosso, ainda a luz mal se via. Os sapatinhos, meus e do meu irmão, engraxados a preceito, lá tinham sido postos de véspera, na esperança de que as nossas cartas, escritas com antecipação bastante, dando conta do nosso bom comportamento e das nossas preocupações com a saúde do Pai Natal ( que tinha de desenvolver tão árduos esforços para continuar a assegurar a tempo e horas esta imensa distribuição) tivessem chegado ao seu destino e fossem reconhecidas como sinceras.
Essas cartas incluíam sempre o pedido de livros, jogos, brincadeiras com as bonecas, construções e, muito raramente, qualquer peça de vestuário. Lembro-me, no entanto, de ter descoberto numa das minhas investigações, olhando o topo superior dos armários, um chapéu de chuva azul, de cabo de metal dourado fosco, espreitando para fora do seu embrulho. Era um verdadeiro chapéu de princesa! Como me senti orgulhosa de o poder abrir junto das minhas amigas!
Foi, contudo, esse chapéu que quebrou o encantamento e que revelou, de um forma tangível, a terrível verdade. O Pai Natal não mais transporia de trenó milhares de kilómetros numa só noite, não mais se mascararia a descer a estreita chaminé, não mais receberia aquelas cartas escritas e decoradas com tanto cuidado. A descoberta, contudo, se trouxera a realidade, fizera-me sentir guardiã de um segredo. Só eu sabia. O meu irmão continuava a ouvir os ruídos da chegada do Pai Natal e a lutar com os colegas da escola que se atreviam a dizer que o Pai Natal não existia.
Ainda hoje o prazer de oferecer está ligado ao encantamento que procuro criar naqueles para quem escolho os presentes. Entretenho-me a imaginar o prazer que poderão encontrar no desembrulhar, ora cuidadoso ora precipitado, dos maravilhosos embrulhos. No que a mim diz respeito, alegro-me muito, quando descubro, através de um presente, por mais minúsculo que seja, como me souberam adivinhar...
domingo, dezembro 07, 2008
MANOEL DE OLIVEIRA - Aniki Bóbó
Admiro em Manoel Oliveira a imensa capacidade de viver com prazer. A existência de permanentes projectos é disso a prova. Vejam-no a filmar por aí e a sonhar novos filmes. A poucos dias dos seus magníficos cem anos apetece-me dizer: Obrigada Manoel!
sábado, dezembro 06, 2008
No meio está uma fogueira...
V
Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre com suas
lâmpadas todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
-E nós estamos dentro, subtis, e tensos
na música.
[....]
(Herberto Helder- As Musas Cegas)
sexta-feira, dezembro 05, 2008
...é trabalho de séculos...
"Criar uma pequena flor é trabalho de séculos"
(William Blake -50 provérbios do Inferno, The Marriage of Heaven and Hell)
quarta-feira, dezembro 03, 2008
Acompanhamos a ficção como acontece ...no sonho
[Em Toda a Biblioteca há Espíritos ]
Penso que em toda a biblioteca há espíritos. Esses são os espíritos dos mortos que só despertam quando o leitor os busca. Assim, o acto estético não corresponde a um livro. Um livro é um cubo de papel, uma coisa entre coisas. O acto estético ocorre muito poucas vezes, e cada vez em situações inteiramente diferentes e sempre de modo preciso. (...) Detenhamo-nos nesta ideia: onde está a fé do leitor? Porque, para ler um livro, devemos acreditar nele? Se não acreditamos no livro, não acreditamos no prazer da leitura. (...) Acompanhamos a ficção como acontece, de alguma maneira, no sonho.
in http://barcosflores.blogspot.com/
segunda-feira, dezembro 01, 2008
...é sempre uma novidade ver a pessoa amada...
Ainda que os males se sucedam assim uns aos outros, não deixamos de desejar a presença da amada na esperança de sofrermos menos; contudo quando a vemos, cremos sofrer mais do que antes. Os males passados já não ferem, os presentes tocam-nos, e é pelo que toca que ajuizamos. Um amante neste estado não é digno de compaixão?
(Blaise Pascal- Discurso sobre as Paixões do Amor-Ed. Fenda)
domingo, novembro 30, 2008
De Sábado para Domingo...um filme-AMADEUS
sábado, novembro 29, 2008
É outra coisa intercalada...
Deixa-me ouvir o que não ouço...
Não é a brisa, ou o arvoredo;
É outra coisa intercalada...
É qualquer coisa que não posso
Ouvir senão em segredo,
E que talvez não seja nada...
Deixa-me ouvir...Não fales alto!
Um momento!...Depois o amor,
Se quiseres...Agora cala!
Ténue, longínquo sobressalto
Que substitui a dor
Que inquieta e embala...
O quê?Só a brisa entre a folhagem?
Talvez...Só o canto pressentido?
Não sei, mas custa amar depois...
Sim, torna a mim, e a paisagem
E a verdadeira brisa, ruído...
Que pena sermos dois!
Fernando Pessoa- 12-08-1930)
quinta-feira, novembro 27, 2008
...a sua personalidade permaneceu obscura...
Lou Andreas-Salomé
Sabia-se que, quando jovem, manteve intensa amizade com Friedrich Nietzsche, baseada em sua profunda compreensão das audazes ideias do filósofo. Esse relacionamento teve um fim abrupto quando ela recusou a proposta de casamento que lhe fez. Era bem sabido, também, que muitos anos depois, ela actuou como Musa e mãe protectora para Rainer Maria Rilke, o grande poeta, que era um pouco desamparado em enfrentar a vida. Além disso, porém a sua personalidade permaneceu obscura. Sua modéstia e discrição eram mais do que comuns. Ela nunca falou das suas próprias obras poéticas e literárias. Claramente sabia onde devem ser procurados os verdadeiros valores da vida. Aqueles que lhe foram mais íntimos tiveram a mais forte impressão da genuinidade e da harmonia da sua natureza, e puderam descobrir com espanto que todas as fraquezas femininas e talvez a maioria das fraquezas humanas lhe eram estranhas ou tinham sido por ela vencidas no decorrer da sua vida.
Foi em Viena que, há muito tempo atrás, o mais comovente episódio do seu destino feminino fora representado. Em 1912, ela retornou a Viena, a fim de ser iniciada na psicanálise.
Minha filha, que foi sua amiga íntima, ouviu-a um dia lamentar não ter conhecido a psicanálise em sua juventude. Mas, afinal, naqueles dias não existia tal coisa.
(Sigmund Freud-Fevereiro de 1937)
Não há um tempo único...
Não há um tempo único:existem muitas fitas
que paralelas deslizam
muitas vezes em sentido contrário e raramente
se cruzam. E quando se revela
a única verdade que, desvelada,
é logo suprimida por quem vigia
as engrenagens e os desvios. E mergulha-se
depois no tempo único. Mas nesse instante
só os poucos viventes se reconheceram
para dizer adeus, e não até à vista.
(Eugenio Montale- poesia)
segunda-feira, novembro 24, 2008
Eu ia-os seguindo em silêncio...
-Ai, que grande que o menino está!-disse ela do umbral.-É que quase nem o conhecia...Já está um homem!
Abraçou-me, soltando umas lagrimazinhas e apalpando-me a cabeça, os ombros e a cara, para ver se eu me teria desfeito na sua ausência.
-Sente-se a sua falta lá em casa, menino-disse, baixando o olhar.
-E eu senti a tua falta, Bernarda. Anda, dá-me um beijo.
Beijou-me timidamente e eu preguei-lhe um par de sonoros beijos em cada face. Riu-se. Vi nos seus olhos que estava à espera de que lhe perguntasse por Clara, mas eu não pensava em fazê-lo.
-Estás hoje muito bonita e muito elegante. Como foi que decidiste a vir-nos visitar?
-Bem, a verdade é que já há tempos que queria vir vê-lo, mas bem sabe como as coisas são, e eu cá ando sempre muito ocupada, que o senhor Barceló, embora seja muito sábio, é como uma criança, e eu cá tenho de fazer das tripas coração. Mas o que me traz é que, já vê,amanhã é dia de aniversário da minha sobrinha, a de San Adrián, e eu gostaria de lhe dar uma prenda. Tinha pensado em oferecer-lhe um livro, com muita letra e poucos bonecos, mas como sou burra e não percebo...
Antes que eu pudesse responder, a loja foi sacudida por um estrondo balístico ao precipitarem-se das alturas umas obras completas de Blasco Ibañez de capa dura. Bernarda e eu erguemos a vista, sobressaltados. Fermín escorregava pelas escadas abaixo como um trapezista, um sorriso florentino estampado no rosto e os olhos impregnados de luxúria e arrebatamento.
- Bernarda, este é...
-Fermín Romero de Torres, assessor bibliográfico de Sempere e filho, aos seus pés, minha senhora-proclamou Fermín, pegando na mão de Bernarda e beijando-a cerimoniosamente.
Em questão de segundos, Bernarda ficou um pimentão.
-Ai, que o senhor está enganado, eu de senhora...
-No mínimo marquesa - atalhou Fermín.-Eu tenho obrigação de saber, que calcorreio o mais fino da Avenida Pearson. Permita-me a honra de a escoltar até esta nossa secção de clássicos juvenis e infantis onde providencialmente observo que temos um compêndio com o melhor de Emilio Salgari e da épica narração de Sandokan.
- Ai, não sei, vidas de santos faz-me espécie, porque o pai da menina era muito CNT, sabe?
- Não se preocupe, porque tenho aqui nada mais, nada menos que A Ilha Misteriosa de Júlio Verne, relato de alta aventura e grande conteúdo educativo, devido aos avanços tecnológicos.
- Se o senhor acha bem...
Eu ia-os seguindo em silêncio, observando como Fermín se babava e como Bernarda se perturbava com as atenções daquele homenzinho com pinta de charutanga e lábia de feirante que a olhava com o ímpeto que reservava para as tabletes de chocolate Nestlé.(cont.)
(Carlos Ruiz Zafón- A Sombra do Vento)
Tudo é repousado: o escuro, o claro...
Mas o andar do tempo
tende-o por cousa pouca
no que permanece.
Tudo o que se apressa
passará em breve;
pois só o que fica
nos iniciará.
Não lanceis o ânimo,
moços, no que é rápido,
no tentar do voo.
Tudo é repousado:
o escuro, o claro,
a flor e o livro.
Rainer Maria Rilke- Sonetos a Orfeu)
domingo, novembro 23, 2008
CRISTINA BRANCO- Redondo Vocábulo
sábado, novembro 22, 2008
Meu coração enche-se de água...
(Bouguereau)
Dentro dele canta
um mar de mapa.
Meu coração
enche-se de água
com peixinhos
de sombra e prata.
Trouxeram-me um búzio.
(Federico García Lorca- trad. José Bento)
sexta-feira, novembro 21, 2008
Isto foi-lhe concedido depois das eleições de 1821...
Contam-lhe que aquela propriedade pertence ao senhor de Rênal. É aos ganhos que teve na sua grande fábrica de pregos que é presidente deve esta bela residência de pedra talhada, que está agora a ser terminada. Dizem que a sua família é antiga, de origem espanhola, estabelecida no país antes da conquista por Luís XIV.
Não espereis encontrar em França aqueles pitorescos jardins que rodeiam as cidades industriais da Alemanha: Leipzig, Francfort, Nuremberga, etc. No Franco Condado, quanto mais paredes se constroem, quanto mais se eriça a propriedade de pedras, umas sobre as outras, mais direitos adquirem à admiração dos vizinhos. Os jardins do senhor de Rênal, cheios de muros, são também admirados por ele ter comprado a peso de ouro certas parcelas de terreno que ocupam(...)
Quanto ao ribeiro público que movia a serra, o senhor de Rênal, com a influência que tinha em Paris, conseguiu que fosse desviado. isto foi-lhe concedido depois das eleições de 1821.
(Stendhal- O Vermelho e o Negro)
quinta-feira, novembro 20, 2008
Horowitz e Scriabin - Vers la Flamme
quarta-feira, novembro 19, 2008
Reflexos do Olhar-cem fotos
Reflexos do Olhar, sem dar por isso, chegou à centésima fotografia. Resolveu festejar iluminando também este lugar com este simples ramo de cerejeira.
terça-feira, novembro 18, 2008
Um Quadro de Brauner
a procura o fundo apego
do homem à pele do medo
Desfaz as linhas do corpo
como se linhas da mão
dá ao sexo o lugar
que dá à flor
Brauner pinta com a língua
ou outro orgão de amor
o que o braço não podia
tanto é a cor mais dura
como o peso da sabedoria
Mostrar um pássaro na mão
é o que Brauner consegue
mas tão-sòmente essa mão
pica no pássaro que a fere
Mostrar o orifício oco
da orelha colocada
no lado onde a sentimos
ouvir e morrer calada
sobre o veneno do bico
tentando beijá-lo abri-lo
tentando ouvi-lo escutá-lo
O ser que pode ser
aquilo que Brauner não quer
move-se na tela com medo
de quem perdeu a sombra
num deserto ao meio-dia
uma claustrofobia
do espírito dentro da luz.
(Luíza Neto Jorge- Terra Imóvel)
segunda-feira, novembro 17, 2008
como nos anúncios do elixir para fazer crescer o cabelo na paredes dos eléctricos...
A transformação do mendigo em cidadão exemplar parecia milagrosa, uma daquelas histórias que os padres de paróquia se compraziam em contar para ilustrar a infinita misericórdia do Senhor, mas que se afiguravam sempre demasiado perfeitas para serem verdadeiras, como nos anúncios de elixir para fazer crescer o cabelo nas paredes dos eléctricos. (cont.)
(Carlos Ruiz Zafón- A Sombra do Vento)
domingo, novembro 16, 2008
A um passarinho...
A um passarinho
Para que vieste
Na minha janela
Meter o nariz?
Se foi por um verso
Não sou mais poeta
Ando tão feliz!
Se é para uma prosa
Não sou Anchieta
Nem venho de Assis.
Deixa-te de histórias
Some-te daqui!
(Vinicius de Morais)
sábado, novembro 15, 2008
Barbara e "Les petits gateâux"
sexta-feira, novembro 14, 2008
Porém se nos distraímos no calendário...
Nunca são as coisas mais simples que aparecem(Nuno Júdice)
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.
quinta-feira, novembro 13, 2008
Imagine - John Lennon
quarta-feira, novembro 12, 2008
Não, Tempo não te gabes de que eu mudo...
Não, Tempo, não te gabes de que eu mudo;
pirâmides com nova força erguidas
nem me são novas, nem estranhas, tudo
são coisas antes vistas, guarnecidas.
Nossas datas são breves e no ensejo
de o velho em nós lançares, nos espantes,
que as fazes mais nascer-nos ao desejo
do que nos lembras que as ouvimos antes,
E, enfrento o teu arquivo, onde não temos
nem surpresa presente nem pregressa;
mentem os teus registos e o que vemos,
que aumenta ou diminui em tua pressa.
Faço voto de ser sempre fiel,
mau grado a foice e a sua mão cruel.
(Os Sonetos de Shakespeare-Vasco Graça Moura)
segunda-feira, novembro 10, 2008
Desfiz o cuidadoso envoltório...
Não havia cólera na sua voz, nem praticamente censura, apenas cansaço.
-Bem sei. E lamento-o-respondi.
-Que foi que fizeste na cara?
-Escorreguei na chuva e caí.
-Essa chuva devia ter uma boa direita. Põe qualquer coisa.
-Não é nada. Nem noto-menti.- Do que preciso é de ir dormir. Não me tenho em pé.
-Pelo menos abre o teu presente antes de ires para a cama-disse o meu pai.
Apontou para o embrulho envolvido em papel celofane que me tinha depositado na noite anterior em cima da mesa da casa de jantar. Hesitei um instante. O meu pai assentiu. Peguei no embrulho e sopesei-o. Estendi-o ao meu pai sem abrir.
- O melhor é que o devolvas. Não mereço nenhum presente.
- Os presentes dão-se pelo prazer de quem oferece, não pelo mérito de quem recebe- disse o meu pai.- Além disso, já não se pode devolver. Abre-o.
Desfiz o cuidadoso envoltório na penumbra do alvorecer. O embrulho continha uma caixa de madeira trabalhada, reluzente, debruada com rebites dourados. Iluminou-se-me o sorriso antes de a abrir. O som do fecho a abrir-se era requintado, de mecanismo de relojoaria. O interior do estojo era forrado de veludo azul-escuro. A famosa caneta Montblanc Meisterstuck de Victor Hugo repousava no centro, deslumbrante. Tomei-a nas mãos e contemplei-a à luz da varanda. Sobre a mola de ouro da tampa estava gravada a inscrição
Daniel Sempere 1953
Olhei o meu pai, boquiaberto.Acho que nunca o vi tão feliz como me pareceu naquele instante. Sem uma palavra, levantou-se da poltrona e abraçou-me com força. Senti que se me apertava a garganta e, à falta de palavras, mordi a voz.
(Carlos Ruiz Zafón- A Sombra do Vento)
domingo, novembro 09, 2008
Ter folhas como vinhas
OUTONO
Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo,
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como vinhas.
Almalaguez, 16 de Outubro de 1966
Miguel Torga
sábado, novembro 08, 2008
Toumani Diabaté
sexta-feira, novembro 07, 2008
no côncavo da mão o sol nascia...
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.
Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
no côncavo da mão o sol nascia.
(Pedro Támen- Primeiro Livro de Lapinova)
quinta-feira, novembro 06, 2008
Festejando Obama - Bruce Springsteen
quarta-feira, novembro 05, 2008
que a chama no chamar se incendeia...
« Uma chama não chama a mesma chama...»
uma chama não chama a mesma chama
há uma outra chama que se chama
em cada chama que chama pela chama
que a chama no chamar se incendeia.
um nome não nome o mesmo nome
um outro nome nome que nomeia
em cada nome o meio pelo nome
que o nome no nome se incendeia
uma chama um nome a mesma chama
há um outro nome nome que se chama
em cada nome o chama pelo nome
que a chama no nome se incendeia
um nome uma chama o mesmo nome
há uma outra chama que nomeia
em cada chama o nome que se chama
o nome que na chama se incendeia
(E.M. de Melo e Castro- Versus-in-Versus)
terça-feira, novembro 04, 2008
Suster o peso da hora...
ao Nuno
Não fugir. Suster o peso da hora
Sem palavras minhas e sem os sonhos,
Fáceis e sem as outras falsidades.
Numa espécie de morte mais terrível
Ser de mim todo despojado, ser
Abandonado aos pés como um vestido.
Sem pressa atravessar a asfixia.
Não vergar. Suster o peso da hora
Até soltar sua canção intacta.
(Cristovam Pavia -35 Poemas)
segunda-feira, novembro 03, 2008
O advogado...sabia que o futuro se lia nas ruas....
(Carlos Ruiz Zafón- A Sombra do Vento)
domingo, novembro 02, 2008
Pegado aos outros como musgo...
Ao Vasco da Costa Marques
Agarro um gesto, uma presença, um duro
olhar de espanto. Aqui, entre as serenas
angústias tristes, é que audaz perduro.
Abro o caminho sem remorso ou pena.
Espaço em branco destes dias, muro
frágil de sonhos, onde encosto apenas
o corpo exausto, donde dependuro
esperanças breves, pobres e pequenas.
Lírica paz, renego-a em sofrimento.
Dobrado vivo para fora, arrasto
as mãos vazias sobre arestas, rugas.
Pegado aos outros, como musgo, tento
crescer à míngua, verme só, de rastos,
entre desejos, lutas, mortes, fugas.
(José Augusto Seabra - A Vida Toda. 1939-2004 )
Conheci pessoalmente, muito tardiamente, José Augusto Seabra. Ouvi-o falar, com paixão, sobre Pessoa e, deixei-me apaixonar pelas suas palavras e por todo o seu vigor. Jantámos depois, mais tarde, e o prazer da sua companhia foi enorme. A noite tornou-se curta, e desejo de continuar a ouvi-lo a discorrer ficou em mim. Estava cá de passagem. No dia seguinte partiria, de novo, rumo a Paris, se não me engano. Foi com uma tristeza imensa que, um ano e tal depois, soube da sua morte fulminante. Só o conheci naquele dia mas soube que era um homem bom.
Fica aqui a minha lembrança.
sábado, novembro 01, 2008
Juliette Greco- Non, monsieur, je n' ai pas vingt ans
sexta-feira, outubro 31, 2008
Uma casa grande como um país pequeno...
Uma casa grande como
um país pequeno
um país que não possa
fazer a guerra
Uma casa de resina
no limbo da terra
A terra que moldo ao longo
dos músculos
uma terra que não se pague
com usura
Suave como um dorso
ou um pouco de água
por entre os escombros
Uma casa invisível
um barco que se aperte
entre os seios
Mais do que por dentro
da mão fechada
Mais do que por dentro
do próprio corpo.
(Casimiro de Brito- Jardins de Guerra)
quinta-feira, outubro 30, 2008
Acontece, não acontece?
Segurando a memória com as duas mãos, tornam a vir aqueles verdadeiros dias de sol, majestosos, imponentes, autêntica ditadura da Beleza, e em que nenhum outro acontecimento histórico ou particular conseguiu ofuscar a data, a um tempo memorável e simples, de um dia lindo!
Também sei que não são precisamente estas datas da alegria particular e íntima do Sol, as que se anotam e se fixam, a não ser que venham porventura coincidir com os segredos da nossa imaginação; um encontro feliz em tal dia, por acaso que era um dia colossal!...ou uma conversa bem resultada, ou uma promessa generosa e magnânima, ou uma combinação nobre e heróica, etc., ou outras destas coisas que ficam pegadas para sempre na recordação , muito mais, sem comparação nenhuma, do que o dia mais lindo de sol que possa imaginar-se.
Isto é como quem diz: o sol para estar lindo necessita de cada um de nós! Ora não sei se já repararam, um dia lindo nunca vem logo a seguir a um dia lindo. Como se fosse demasiado e impossível dois dias lindos a seguir. De tal maneira que ficam menos custosos os dias terríveis, com a esperança e a certeza de que estamos sem dúvida em vésperas de dias extraordinariamente melhores.
(Almada Negreiros- Ficções-Banhos de Mar)