terça-feira, outubro 31, 2006

Redondo como os olhos...

(Cassatt)



Cantico

Mundo à
nossa medida
Redondo como os olhos,
E como eles, também,
A receber de fora
A luz e a sombra, consoante a hora

Mundo apenas pretexto
Doutros mundos.
Base de onde levanta
A inquietação,
Cansada da uniforme rotação
Do dia a dia.
Mundo que a fantasia
Desfigura
A vê-lo cada vez de mais altura.

Mundo do mesmo barro
De que somos feitos.
Carne da nossa carne
Apodrecida.
Mundo que o tempo gasta e arrefece,
Mas o único jardim que se conhece
Onde floresce a vida.

Miguel Torga

segunda-feira, outubro 30, 2006

O mar está cor de ciclame-púrpura...

IV

Apanho os ciclames,
entre cor-de-vinho e rubro,
e pouso o rígido
marfim e fogo claro
das pétalas sobre mim;
não poderia agora
retirar-me
pois o mar está cor de ciclame-púrpura,
ciclame-rubro, cor das últimas uvas,
cor da púrpura das flores,
cor-de-ciclame e escuro.

Ezra Pound (Fim do Tormento/O Livro de Hilda-seguido de 4 poemas de H.D.)

Reflexos do Olhar LII

restos de verão

domingo, outubro 29, 2006

...fim de domingo

" A única alegria neste mundo é a de começar. É belo viver, porque viver é começar, sempre, a cada instante. Quando esta sensação desaparece - prisão, doença, hábito, estupidez - deseja-se morrer. "
Cesare Pavese in O Ofício de Viver

UM DOMINGO COM CHICO BUARQUE DE HOLANDA



A gente vai levando

Mesmo com toda a fama, com toda a brahma
Com toda a cama, com toda a lama
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa chama

Mesmo com todo o emblema, todo o problema
Todo o sistema, todo Ipanema
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa gema

Mesmo com o nada feito, com a sala escura
Com um nó no peito, com a cara dura
Não tem mais jeito, a gente não tem cura
Mesmo com o todavia, com todo dia
Com todo ia, todo não ia
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa guia

Mesmo com todo rock, com todo pop
Com todo estoque, com todo Ibope
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando esse toque

Mesmo com toda sanha, toda façanha
Toda picanha, toda campanha
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa manha

Mesmo com toda estima, com toda esgrima
Com todo clima, com tudo em cima
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa rima

Mesmo com toda cédula, com toda célula
Com toda súmula, com toda sílaba
A gente vai levando, a gente vai tocando, a gente vai tomando



Chico Buarque de Holanda

____________________________
Enviado por Amélia Pais
http://barcosflores.blogspot.com/
http://cristalina.multiply.com/

Reflexos do Olhar LI

Janela fechada ao olhar

sábado, outubro 28, 2006

A toda a altura dos meus olhos vives...

(Lucas Cranach)

23.11.71

Chiúme

OS POEMAS DE AMOR DE LUCAS CRANACH,
O VELHO


1.
Que mar, necturna árvore de cabelos
que vastidão de ondas, que soluço
de cimos e raízes, que luminoso fruto,
que lenta manhã nasce nos teus ramos?

No teu tronco terrestre o sangue canta.
A água sobe, a tarde incha, a sombra fala.
Toco-te e acordas-e contigo
o teu perfil de cedro nos espelhos.

A toda a altura dos meus olhos vives.
Estremeces devagar o teu peso de folhas
a ave invertrebada que te prime a garganta,
a secura mineral da tua boca de algas.

E choves lentamente no meu peito
o teu orvalho de pinheiro, árvore,
o teu húmido musco, o licor dos teus dedos,
o salgueiro suspenso por sobre os nossos ombros.

E vens e cresces, mar nocturno, as vagas
que me assaltam e tomam.Sou murmúrio,
sou susurro, cicio, segredo, fonte,
sou a agulha vermelha que pulsa no teu ventre
a cidade desperta e a muralha aonde
os teus braços se quebram num suspiro de areia.


Achas que isto presta? Quer dizer, com o máximo de rigorosa crueldade que está ao nível dos 2 escolhidos? Opinião na volta do correio...E desculpa ter enchido uma carta com esta pobre coisa que nada vale. Muitos beijos para a nossa filha e, para ti, todo o amor do mundo

António

Que saudades eu tenho dos teus braços, do teu corpo, de tu toda!


António Lobo Antunes (D' este viver aqui neste papel descripto-Cartas da guerra)

sexta-feira, outubro 27, 2006

Reflexos do Olhar L

bosque encantado

Não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade...



A teoria do medalhão (cont)

Supõe que desejas saber porque motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica.Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e a descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo o caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.
- Farei o que puder.Nenhuma imaginação?
- Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.
-Nenhuma filosofia?
-Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. "Filosofia da história", por exemplo, é uma locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc,etc.
- Também ao riso?
-Como ao riso?
-Ficar sério, muito sério...
- Conforme.Tens um génio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez.Medalhão não quer dizer melancólico.Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente,- e este ponto é melindroso...
-Diga...
-Somente não deves empregar ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não.Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se lhe mete pela cara dos outros, estala como a palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
- Meia-noite.
- Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior.Vamos dormir, que é tarde.Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Princípe de Machiavelli.Vamos dormir.

Machado de Assis

quarta-feira, outubro 25, 2006

Reflexos do Olhar XLIX

(Aguarelas de Turner) gotas de cor

terça-feira, outubro 24, 2006

Ver-se envolto entre nuvens do ocaso....

(Aivazovsky)

PÔR DO SOL

Sabeis qual é o mais feroz tormento?
É o de um orador tornar-se mudo:
o de a um pintor, p'ra quem a forma é tudo,
tremer a mão, perder seu talento

ante os néscios, e é, nesse momento
que em combate se torma mais rudo,
ficar só, sem lança e sem escudo,
p'ra ao inimigo dar contentamento.

Ver-se envolto entre nuvens do ocaso
em que enfim nosso sol desaparece
é pior que morrer. Terrível passo

sentir que nossa mente desfalece!
Nosso pecado é tão horrendo acaso
que o martírio de Luzebel assim merece?

Miguel de Unamuno (Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea)

Reflexos do Olhar XLVIII

(Aguarelas de Turner) fresta de luz

domingo, outubro 22, 2006

...fim de domingo

"Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar".

José Saramago (O Conto da Ilha Desconhecida)

UM DOMINGO COM REMBRANDT e...ADÉLIA PRADO

(Rembrandt)

O amor quer abraçar e não pode.

A multidão em volta,

com seus olhos cediços,

põe caco de vidro no muro

para o amor desistir.

O amor usa o correio,

o correio trapaceia,

a carta não chega,

o amor fica sem saber se é ou não é.

O amor pega o cavalo,

desembarca do trem,

chega na porta cansado

de tanto caminhar a pé.

Fala a palavra açucena,

pede água, bebe café,

dorme na sua presença,

chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho:

é descuidar, o amor te pega,

te come, te molha todo.

Mas água o amor não é.


Homenageamos Adélia Prado pelo seu aniversário no dia 13 de dezembro.

Texto extraído do livro "Adélia Prado - Poesia Reunida", Siciliano - 1991, São Paulo, pág. 181.

sábado, outubro 21, 2006

O tempo nos parques...

(Slavicek)


O tempo nos parques

O tempo nos parques é íntimo, inadiável, imparticipante, imarcescível.
Medita nas altas frondes, na última palma da palmeira
Na grande pedra intacta, o tempo dos parques.
O tempo nos parques cisma no olhar cego dos lagos
Dorme nas furnas, isola-se nos quiosques
Oculta-se no torso muscular dos ficus, o tempo nos parques.
O tempo nos parques gera o silêncio do piar dos pássaros
Do passar dos passos, da cor que se move ao longe.
É alto, antigo, presciente o tempo dos parques
É incorruptível; o prenúncio de uma aragem
A agonia de uma folha, o abrir-se de uma flor
Deixa um frémito no espaço do tempo nos parques.
O tempo nos parques envolve redomas invisíveis
Os que se amam; eterniza os anseios, petrifica
Os gestos, anestesia os sonhos, o tempo nos parques.
Nos homens dormentes, nas pontes que fogem, na franja
Dos chorões, na cúpula azul o tempo perdura
Nos parques; e a pequenita cutia surpreende
A imoblidade anterior desse tempo no mundo
Porque imóvel, elementar, autêntico, profundo
É o tempo nos parques.

Vinicius de Moraes (Antologia Poética)

Reflexos do Olhar XLVII

Sé de Faro- desenhos de luz

sexta-feira, outubro 20, 2006

Verás caír as montanhas de Jericó...

(Magritte)

A Teoria do Medalhão (continuação)

- Essa é a publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra.Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento de família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução de feições de um homem amado e benemérito. Nada obsta a que sejas objecto de uma tal destinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houveram lido o teu recente discurso ( suponhamos) na sessão inaugural da União de Cabeleireiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a "alavanca do progresso"e o "suor do trabalho" vencem as "fauces hiantes" da miséria. No caso de que uma comissão te leve a casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d'água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais.Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa dos reporters dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.
- Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.
- Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na prometida! Os que lá não penetram engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as montanhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desajectivados, e tu serás o adjectivo dessas orações opacas, o odorífico das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios.E ser isso é o principal, porque o adjectivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.
- E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os déficits da vida?
- Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade.
- Nem política?
- Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe sómente a utilidade do scibboleth bíblico.
- Se for ao parlamento posso ocupar a tribuna?
- Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: ou os negócios miúdos , ou a metafísica política, mas prefere a metafísica.Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas se puderes, adota a metafísica-é mais fácil e mais atraente.(cont)

Machado de Assis (Teoria do Medalhão)

terça-feira, outubro 17, 2006

Reflexos do Olhar XLVI

(Aguarelas de Turner)

O preço de um verdadeiro amigo...




É sem dúvida um amigo sincero que a fábula nos esconde nas suas sombras, quando nos apresenta uma divindade favorável, a Sabedoria mesma, tomando a seu cuidado guiar Ulisses, virá-lo para a virtude, esquivá-lo a mil perigos, e fazê-lo gozar o céu, até mesmo na sua cólera.
Se conhecêssemos bem o preço de um verdadeiro amigo, passaríamos a vida a buscá-lo.Seria o maior dos bens que pediríamos ao Céu; e, quando este atendesse aos nossos votos, crer-nos-íamos tão felizes como se nos houvesse criado com várias almas para valerem sobre nossa fraca e miserável máquina.

Montesquieu (Elogio da Sinceridade)

segunda-feira, outubro 16, 2006

Percebeste?

(Columbano Bordalo Pinheiro)





Teoria do Medalhão (cont)

- Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos.
-Entendamo-nos.Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, contém tomar as armas do tempo. E de duas uma:- ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas: no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De oitiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenómenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular ideias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a costureira- esperta e afreguesada,- que,segundo o poeta clássico

Quanto mais pano tem, mais poupa o corte,
Menos monte alardeia de retalhos;

e este fenómeno, tratando-se de um medalhão, é que seria científico.

-Upa! que a profissão é difícil!
-E ainda não chegamos ao cabo.
- Vamos a ele.
-Não te falei dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição.Que D.Quixote solicite os favores dela mediante acções heróicas ou custosas é um sestro próprio desse ilustre lunático.O verdadeiro medalhão
tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros ,compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez ,vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo.Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas.Os sucessos de certa ordem, embora pouca monta,podem ser trazidos a lume, conquanto que ponham em relevo a tua pessoa.Explico-me.Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto,é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos,não pelo fato em si,que é insignificante,mas pelo efeito de recordarum nome caro às afeições gerais.Percebeste?
-Percebi.(cont)

Machado de Assis (A teoria do Medalhão)

Reflexos do Olhar XLV

Viagem do olhar

domingo, outubro 15, 2006

UM DOMINGO COM JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

(Durer)



ESTAÇÔES

A velha ponte de madeira
entre estações
os caminhos que fizemos pelo bosque
marcas luminosas
eventuais
longe de tudo

estendemos minuciosas reservas
mesmo ao que se revela de súbito
cercas em redor das casas
a multiplicação dos ancoradouros
os baldios vigiados da torre
no meio do silêncio.

José Tolentino Mendonça (Baldios)

Reflexos do Olhar XLIV

"O Tempo, esse grande escultor"(M.Y)

sábado, outubro 14, 2006

Porque a solidão é oficina de ideias...

(Cezanne)


Teoria do Medalhão (continuação)


- Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.
-Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.
- Como assim, se também é um exercício corporal?
- Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente a teoria. Se te aconselho excecionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados ao taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.
- Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?
-Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras.Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa,quando não prefiras interrogar directamente os leitores habituais das belas crónicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses-suponhamos dois anos,- reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas,sem cores de clarim...
-Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...
- Podes;podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocados jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento.Caveant consulesé um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalado-a numa frase nova, original e bela,mas não te aconselho esse artifício; seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustradas na memória individual e pública.Estas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil.Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o passado. Quanto à utilidade deum tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal.Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosas de documentos e observações, análise das causas propáveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos e desvarios.Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes!-E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada do pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.(Cont)

Reflexos do Olhar XLIII

Prazer de(do)olhar

sexta-feira, outubro 13, 2006

Reflexos do Olhar XLII

(Aguarelas de Turner) Cheiros de Verão..

quinta-feira, outubro 12, 2006

E o que ilumina se abrirá ao nosso aberto olhar...



Passeio ao campo

Vem, amigo, até ao campo!Pouco luminoso está o dia
Hoje e o céu fecha-se sobre nós.
Nem os montes nem as árvores da floresta
Se abrem como gostaríamos e o ar repousa, vazio de cânticos.
O dia está sombrio, dormitam as travessas e as vielas e quase
Me parece atravessarmos um tempo de chumbo.
Mas o desejo mantém-nos firmes na crença, sem nos deixar
Cair em uma hora de dúvida e assim o dia é segundo o nosso agrado,
Pois não são poucos os dons que nos alegram, recebidos do Céu,
Que os nega mas acaba por concedê-los aos filhos.
Só que os benefícios merecem estas palavras, passos e esforços
E a fruição merece-os também.
Por isso chego a esperar que quando começarmos a fazer
O que desejamos e da nossa língua se soltar
A palavra certeira e o nosso coração se abrir,
E nos brotarem da mente ébria pensamentos mais elevados
Então começará, com a nossa, a floração do Céu.
E o que ilumina se abrirá ao nosso aberto olhar.

Holderlin Elegias

quarta-feira, outubro 11, 2006

Reflexos do Olhar XLI

(Aguarelas de Turner) Cores, texturas e materiais

Entre duas águas corre uma água só...

(Ilda David)

A Equação de Drake
(numa exposição de Ilda David)


Entre duas águas
(entre H e HO)
corre uma água só
transportando a equação do mundo
até ao mais fundo
sítio do coração,
onde se torna vida o mundo
e a água respiração.

Vinda do mundo,
corre para dentro a vida da pintura,
entre tempo e tempo,
líquida e pura.
Volta-se uma última vez para trás,
e a única coisa que dela vês
é o seu olhar olhando-
-te e desprendendo-se de ti.

Manuel António Pina (Nenhuma palavra e Nenhuma lembrança)

terça-feira, outubro 10, 2006

Reflexos do Olhar XL

(Aguarelas de Turner) Cores do tempo...

segunda-feira, outubro 09, 2006

Reflexos do Olhar XXXIX

(Aguarelas de Turner)

Só assim entendi que pudéssemos fazer tanto....

(Escher)

Ao entardecer enfrentei o aguaceiro, cujos ventos de furacão ameaçavam desconjuntar a casa. Sofri um ataque de espirros sucessivos, doía-me a cabeça e tinha febre, mas sentia-me possuído por uma força e uma determinação que nunca tive em idade nenhuma nem por causa nenhuma. Pus vasilhas no chão para receber as goteiras e apercebi-me que tinham aparecido outras novas desde o anterior. A maior havia começado a inundar o lado direito da biblioteca. Apressei-me a resgatar os autores gregos e latinos que viviam por aqueles lados, mas ao tirar os livros deparei com um jacto de alta pressão que saía de cano roto no fundo da parede. Amordacei-o com trapos até onde pude a fim de ter tempo para salvar os livros.(...)
Quando passou o aguaceiro continuava com a sensação de não estar só em casa. A minha única explicação é que assim como os factos reais se esquecem, também alguns que nunca existiram podem estar nas recordações como se tivessem existido. Pois se evocava o aparecimento do aguaceiro não me via a mim mesmo só na casa mas sempre acompanhado por Delgadinha. Sentira-a tão perto naquela noite que ouvia o rumor da sua respiração no quarto de dormir, e o pulsar da sua face na almofada.Só assim entendi que tivéssemos podido fazer tanto em tão pouco tempo.Lembrava-me de estar empoleirado no escabelo da biblioteca e lembrava-me dela acordada com seu vestidinho de flores recebendo os livros para os pôr a salvo. Vi-a correr de um lado para o outro da casa lutando com a tempestade, encharcada com água pelos tornozelos.Lembrava-me como preparou no dia seguinte um pequeno almoço que nunca existiu, e pôs a mesa enquanto secava o chão e punha ordem no naufrágio da casa Nunca esqueci o seu olhar sombrio enquanto tomávamos o pequeno-almoço: Porque me conheceste tão velho?Respondi-lhe a verdade: A idade não é a que temos mas a que sentimos.
Desde então tive-a na minha memória com tal nitidez que fazia dela o que queria.Mudava-lhe a cor dos olhos conforme o meu estado de espírito: cor de água ao despertar, cor de calda de açúcar quando ria, cor de fogo quando a contrariava.Vestia-a de acordo com a idade e a condição que convinham às minhas mudanças de humor: noviça apaixonada aos vinte anos, puta de salão aos quarenta, rainha da Babilónia aos setenta, santa aos cem. Cantávamos duetos de amor de Puccinni, boleros de Agustín Lara, tangos de Carlos Gardel, e verificávamos uma vez mais que os que não cantam não podem sequer imaginar o que é a felicidade de cantar. Hoje sei que não foi uma alucinação mas mais um milagre do primeiro amor da minha vida aos noventa anos.

Gabriel García Márquez (Memória das minhas putas tristes)

domingo, outubro 08, 2006

Reflexos do Olhar XXXVIII

(Aguarelas de Turner) Atenas vista do Parthenon

UM DOMINGO COM GASTÃO CRUZ

(Turner)


Outono do amor que folhas moves
na direcção dos corpos separados
e molhas desses prantos ignorados
de quem da primavera conheceu o

movimento das aves
e desse movimento estas esperas
agora só conhece já e ouve
a própria descida com as folhas

a voz própria cansada
quando a vida
e a voz lhes está a dor tirando

Outono do amor outono de aves
e de vozes caladas e de folhas
molhadas de temor e surdo pranto


Gastão Cruz

____________________________
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sábado, outubro 07, 2006

Vem serenidade...




Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humidade das bocas.

Vem, serenidade!
faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios,
faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.

Raul de Carvalho

Reflexos do Olhar XXXVII

(Aguarelas de Turner) Flores de Delfos e...de todos os lugares.

Vi-o chegar no dorso de um golfinho...


(Aguarelas de Turner) Apolo em Delfos

"Vi-o chegar no dorso de um golfinho, salpicando a pedra das colunas com o aroma das folhas de loureiro. Saiu do rasgo das nuvens e a terra inquietou-se no vapor da rocha sibilina.
Nas águas ondulantes espelhou-se a nudez, no seu recorte, e a folhagem murmurava a elegância, entre a timidez e a ousadia dos sussurros. Fechei os olhos a fixar-lhe a forma das feições.
Corriam pela encosta as musas ao som das cordas da cítara. Coros de melodias estremeciam sob a harmonia dos seus dedos.
Vi-lhe a placidez dos gestos na calma com que as mãos dardejavam os raios sagrados do Sol.
Apolo chegava antes dos homens e triunfava no cimo das ruínas.
Em Delfos. "


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sexta-feira, outubro 06, 2006

A única rosa...

(Salvador Dali)



Todas as rosas são a mesma rosa,
amor!, a única rosa;
e tudo está contido nela,
breve imagem do mundo,
amor!, a única rosa.

Juan Rámon Jimenez

Reflexos do Olhar XXXVI

(Aguarelas de Turner) Delfos mágico

quinta-feira, outubro 05, 2006

Hoje é a última vez que pernoita no meio do vento...



ELE VAI PELA ponte
cristal de lua acordado para o grande isolamento da noite
atravessa-a com a língua turva de imagens
sacode os cimos arrefecidos dos montes
desafia o prematuro cio das perdizes
quebra objectos isola-se
caminha dentro de si à procura dalguma chuva suspensa
roça a morte das plantas nas encruzilhadas místicas dos lagartos
atraídos pelo sangue ofegante das raparigas
deita-se
a boca suja devassando a grossa transpiração das raízes


hoje é a última vez que pernoita no meio do vento
talvez regresse a casa dentro do corpo cansado
por isso vai pela ponte
tateia a saída a um canto da fotografia
e sonolento descobre a pele envelhecida do viajante que foi

Al Berto (Vigílias)

Reflexos do Olhar XXXV

(Aguarelas deTurner) memória de lugares- ilha Deserta

quarta-feira, outubro 04, 2006

Pode ser que venhas a ser afligido de ideias própias...

(Daumier)

-É verdade, por que quarenta e cinco anos?
- Não é, como podes supor um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenómeno.Geralmente,o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinquenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinquenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são todavia vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos:esse madrugar é privilégio do génio.
-Entendo.
-Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O Melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem,imaginando, por exemplo, uma actor defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias;pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.
-Mas quem lhe diz que eu...
- Tu, meu filho, se não me engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição à memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias àcerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquoente, eis aí uma esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de
algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofremos elas irrompem e precipitam-se.Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto. (Cont)

Machado de Assis

Reflexos do Olhar XXXIV

(Aguarelas de Turner) ainda Delfos...

terça-feira, outubro 03, 2006

Conversemos um pouco...


(Rembrandt)

-Estás com sono?
- Não, senhor.
- Nem eu;conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?
- Onze.
- Saíu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que então, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de Agosto de 1854, vinhas tu à luzum pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...
- Papai...
- Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas, qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme lotaria; os prémios são pucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças da outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus onus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.
- Sim,senhor.
- Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indemnizem suficientemente o esforço da nossa ambição.É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.
- Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?
- nenhum me parece mais útil e cabido que o do medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade, faltaram-me, porém instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende.És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo a que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso.
O sábio que disse"a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco anos... (continua).
Machado de Assis(Teoria do Medalhão-diálogos)

Reflexos do Olhar XXXIII

(Aguarelas de Turner) Delfos, simbiose perfeita

segunda-feira, outubro 02, 2006

Onda de pedra em cada reeencontro...

(Rodin)



Presídio

Nem todo o corpo é de carne...Não ,nem todo.

Que dizer do pescoço,às vezes mármore,

às vezes linho,lago,tronco de árvore,

nuvem,ou ave,ao tacto sempre pouco...?

e o ventre,inconsistente como o lodo?...

e o morno gradeamnento dos teus baraços?

Não ,meu amor...Nem todo o corpo é carne:

é também água ,terra,vento,fogo..

É sobretudo sombra à despedida;

onda de pedra em cada reencontro;

no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...

Nem só de carne é feito este presídio,

pois no teu corpo existe o mundo todo!


David Mourão Ferreira

Reflexos do Olhar XXXII

domingo, outubro 01, 2006

Reflexos do Olhar XXXI

(Aguarelas de Turner) Pequenas papoilas, Atenas.

UM DOMINGO COM DANTE GABRIEL ROSSETTI e ANDREA MANTEGNA

(Andrea Mantegna)

Difícilmente, penso eu; mas pode de facto ser que
O significado o alcançou, quando esta música correu
Clara pela sua estrutura, uma ânsia doce e possessiva,
E ele captou estas rochas e aquele mar encrespado.
Mas acredito que, inclinando-se para eles, ele
Sentiu apenas o cabelo delas lançado contra a sua face
A cada rapariga que por ele passava. Nem deu para ouvir
Quantos pés.Nem seguramente desviou
Os seus olhos da cega fixidez do pensamento


Conhecer as dançarinas. É uma alegria amarga
Que chega às lágrimas.O seu sentido encheu-o
Um segredo das fontes da Vida:para entender:-
Cada pulsar do coração manterá o sentido que tinha
Com o todo, embora o trabalho da mente corra para o nada.

( Dante Gabriel Rossetti)