sexta-feira, novembro 30, 2007

Conheço-o pelo aroma...

(Aguarelas de Turner) Pôr do Sol na Baía

A Eternidade e o desejo, são duas coisas parecidas, que ambas retratam com a mesma figura. Os Egípcios nos seus Geroglíficos, e antes deles os Caldeus, para representar a Eternidade pintaram O: porque a figura circular não tem princípio, nem fim; e isto é ser eterno. O desejo ainda teve melhor pintor, que é a natureza. Todos os que desejam, se o afecto rompeu o silêncio e do coração passou à boca, o que pronunciam naturalmente é O.

Cesso de ver. Os espíritos desmoronam-se e eu regresso às minhas trevas. A música dos atabaques conduz-me, porém, para longe da angústia. Alguém pede licença para se sentar ao meu lado. Conheço-o pelo aroma, conheço-o quando lhe sinto a sua coxa encostada à minha, já o reconhecera quando a sua voz me diz boa noite, menina Clara. Emanuel. Sussurra-me que conhece a mãe-de-santo que me abraçou. Mãe Marianinha. Diz-me que ela quer falar comigo.
Que ela é, desde há muito tempo a sua guia espiritual, e está curiosa comigo. Curiosa? E porquê comigo? Emanuel murmura que lhe falou de mim. E que eu não vim à Bahia só atrás da talha dourada e das histórias de outros séculos. Diz-me que há muitas coisas debaixo do céu. Respondo-lhe que sim, que falarei com ela. Não aqui, não agora, cicia Emanuel. Depois. Noutra hora. Vira-me a palma da mão, põe-me qualquer coisa pegajosa e fria. Diz que é ebo, o alimento do orixá, milho branco cozido só com água, sem temperos. Diz-me que coma, que vai fazer-me bem. Como.(...)

(Inês Pedrosa- A Eternidade e o Desejo)


quinta-feira, novembro 29, 2007

Música Séria

(Aguarelas de Turner)
(Aguarelas de Turner)
(Aguarelas de Turner)



(Encontrar estes meninos grandes e sérios é VER, no lugar do lúdico, a luta pela vida...)

quarta-feira, novembro 28, 2007

Baía Antiga

(Aguarelas de Turner) Baía antiga

(Aguarelas de Turner) Baía antiga

Caminhar por estas ruas é reencontrar o familiar numa alegre mistura como o novo..

terça-feira, novembro 27, 2007

"A Eternidade e o Desejo"-uma feliz coincidência

(Aguarelas de Turner) Igreja de S. Francisco. Baía

Não vivemos como mortais, porque tratamos das coisas desta vida como se esta vida fora eterna. Não vivemos como imortais, porque nos esquecemos tanto da vida eterna, como se não houvera tal vida.

António Vieira, Sermão de Quarta-Feira de Cinza


A noite passada sonhei que voltava à Bahia. O sol atacava a pique, e eu andava de igreja em igreja à procura de alguém que não conseguia encontrar. Na rua a força do sol impedia-me de ver, nas igrejas ficava atordoada com o excesso de turistas e talha dourada. Queria gritar, mas não conseguia. Dizes-me que é uma sensação muito comum, nos sonhos. Mas eu creio que já não posso voltar a ser uma pessoa comum.
Recordas-me que vou voltar a Salvador. E que vou contigo. Vou ao teu lado, sim. Acredita que te agradeço a gentileza da companhia. Mas tu não pertences ali. E eu tenho um bocadinho de medo de me perder. Então peço-te que me contes tudo, Sebastião.
- Tudo? Mas o que é tudo? Tudo o que vejo?- perguntas, num sussurro. Como se, de súbito, te sentisses esmagado pela intraduzível vastidão do teu olhar. O que se vê nunca se pode narrar com rigor. As palavras são caleidoscópios onde as coisas se transformam noutras coisas.(...)

(Inês Pedrosa- A Eternidade e o Desejo. Publicações Dom Quixote)


(Chegada de fresco da Baía entrei na livraria folheando as novidades ,como se assim se quizesse pôr-me a par do que se passara neste curto e longo tempo de ausência ( as distâncias e diferenças culturais fazem destas deformações...) Quase de imediato, os olhos caíram-me no novo livro de I.P. que, para minha surpresa, tinha como pano de fundo a Baía. Como gosto do que escreve a decisão de comprar foi imediata...Uma feliz coincidência esta! Já está quase lido, de um folgo... Para vos aguçar o apetite irei transcrever algumas passagens e ilustrá-las também...)

segunda-feira, novembro 26, 2007

Bahia - (quase) 360 graus...

(Aguarelas de Turner) Baía (do meu lado direito)
(Aguarelas de Turner) Baia IV
(Aguarelas de Turner) Baía III
(Aguarelas de Turner) Baía II
(Aguarelas de Turner) Baía (do meu lado esquerdo)

Olhar à distância a Baía( e todas as demais cidades...) é captar-lhe apenas a dimensão, a inserção geográfica na belíssima costa recortada, o maravilhoso Atlântico, a floresta de arranha-céus...Este é, contudo, um olhar bem incompleto, um olhar que não se dá conta dos violentos contrastes que povoam esta cidade e que são impossíveis de não nos acompanharem ao longo desta curta e breve estadia...
Assim, neste salto à Baía nunca deixei de ter presente as precárias condições de vida em que vive a maioria das gentes desta terra. É impossível não ver, é impossível esquecer!

A cidade em progresso

A cidade mudou. Partiu para o futuro
Entre semoventes abstratos
Transpondo na manhã o imarcescível muro
Da manhã na asa dos DC-4s

Comeu colinas, comeu templos, comeu mar
Fez-se empreiteira de pombais
De onde se vêem partir e para onde se vêem voltar
Pombas paraestatais.

Alargou os quadris na gravidez urbana
Teve desejos de cúmulos
Viu se povoarem seus latifúndios em Copacabana
De casa, e logo além, de túmulos.

E sorriu, apesar da arquitetura teuta
Do bélico Ministério
Como quem diz: Eu só sou a hermeneuta
Dos códices do mistério...

E com uma indignação quem sabe prematura
Fez erigir do chão
Os ritmos da superestrutura
De Lúcio, Niemeyer e Leão.

E estendeu ao sol as longas panturrilhas
De entontecente cor
Vendo o vento eriçar a epiderme das ilhas
Filhas do Governador.

Não cresceu? Cresceu muito! Em grandeza e miséria
Em graça e disenteria
Deu franquia especial à doença venérea
E à alta quinquilharia.

Tornou-se grande, sórdida, ó cidade
Do meu amor maior!
Deixa-me amar-te assim, na claridade
Vibrante de calor!


(Vinicius de Moraes- in "Poesia completa e prosa: "Poesias coligidas")

domingo, novembro 25, 2007

No fim de tarde, quando as luzes se acendiam....

Posted by Picasa
(Aguarelas de Turner)Baía


"Os jogadores de porrinha, de ronda, de sete-e-meio suspendiam as emocionantes partidas, desinteressados dos lucros, apatetados. Não era Berro d'Água o seu indiscutido chefe? Caía sobre eles a sombra da tarde como luto fechado. Nos bares, nos botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irremediável. Quem sabia melhor beber do que ele, jamais completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante quanto mais aguardente emborcava? Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as nuanças de cor, de gosto e de perfume. Há quantos anos não tocava em água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro d'Água.

Não que seja fato memorável ou excitante história, mas vale a pena contar o caso, pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de "berro d'água" incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas. Entrara ele na venda de Lopez, simpático espanhol, na parte externa do mercado. Freguês habitual, conquistara o direito de servir-se sem auxílio do empregado. Sobre o balcão viu uma garrafa transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E o berro inumano cortou a placidez da manhã no mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte, de um homem traído e desgraçado:

- Águuuuua!

Imundo, asqueroso espanhol de má fama! Corria gente de todos os lados, alguém estava sendo com certeza assassinado, os fregueses da venda riam às gargalhadas. O "berro dágua" de Quincas logo se espalhou como anedota, do Mercado ao Pelourinho, do largo das Sete Portas ao Dique, da Calçada a Itapoã. Quincas Berro d'Água ficou ele sendo desde então, e Quitéria do Olho Arregalado, nos momentos de maior ternura, dizia-lhe "Berrito" por entre os dentes mordedores."

"Quando um homem morre, ele se reintegra em sua respeitabilidade mais autêntica, mesmo tendo cometido loucuras em sua vida. A morte apaga, com sua mão de ausência, as manchas do passado e a memória do morto fulge como diamante. Essa a tese da família, aplaudida por vizinhos e amigos. Segundo eles, Quincas Berro d'agua, ao morrer, voltara a ser aquele antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da Mesa de Rendas Estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sob o braço, ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a política, jamais visto num botequim, de cachaça caseira e comedida."

"No fim da tarde, quando as luzes se acendiam na cidade e os homens abandonavam o trabalho, os quatro amigos mais intimos de Quincas Berro d'agua; Curió, Negro Pastinha, Cabo Martim e Pé-de-Vento, desciam a ladeira do Tabuão em caminho do quarto do morto. Deve-se dizer, a bem da verdade, que não estavam eles ainda bêbedos. Haviam tomado seus tragos, sem dúvida, na comoção da notícia, mas o vermelho dos olhos era devido às lágrimas derramadas, à dor sem medidas, e o mesmo pode-se afirmar da voz embargada e do passo vacilante. Como conservar-se completamente lúcido quando morre um amigo de tantos anos, o melhor dos companheiros, o mais completo vagabundo da Bahia?"

( A morte e a morte de Quincas Berro D'Agua- Amado, Jorge- Editora Record )


sábado, novembro 24, 2007

Pierre Verger, o fotógrafo da Baía

Pierre Verger - "Festa dos Navegantes" (Salvador 1948)

http://www.unicamp.br/~everaldo/bahia/verger/index.html

sexta-feira, novembro 23, 2007

Um saltinho à Baía...

(Aguarelas de Turner)

Nesta semana de ausência, o trabalho levou-me até à Baía. Gostei de contemplar aquela magnífica Baía de Todos os Santos
com os seus poderosos navios, os seus barcos à vela e, também, as suas cascas de noz...O prazer de descobrir novos lugares.


quinta-feira, novembro 22, 2007

VINICIUS de MORAES

quarta-feira, novembro 14, 2007

"PARAGEM TÉCNICA"

(Aguarelas de Turner)

"Elas" sempre me fizeram bem. Deram-me sombra, vigor, recolhimento, renovação, sonho, esperança.... Verdadeiras"esculturas da alma", estas amigas. Este imenso cedro, descobri-o no jardim do Palácio de Mateus.
Nesta minha "paragem técnica" deixo-o, num dos seus múltiplos ângulos, como um braço amigo que se estende neste lugar virtual...Usem-no bem,
criem com ele as vossas estórias

terça-feira, novembro 13, 2007

CRISTINA BRANCO canta SHAKESPEARE

segunda-feira, novembro 12, 2007

Leve-me para o fim do sonho...

O chapéu do poeta Fernando Pessoa,1979, óleo s/tela de Costa Pinheiro

Sonho de Fernando Pessoa, poeta e fingidor


Na noite de sete de Março de 1914, Fernando Pessoa, poeta e fingidor, sonhou que acordava. Tomou o café no seu pequeno quarto alugado, fez a barba e vestiu-se com esmero. Enfiou a gabardina, porque lá fora chovia. Quando saiu faltavam vinte minutos para as oito, e às oito em ponto estava na estação do Rossio, na plataforma do comboio com destino a Santarém. O comboio partiu pontualmente às oito e cinco. Fernando Pessoa tomou lugar num compartimento onde estava sentada uma senhora aparentando cinquenta anos, que lia. Era a sua mãe e não era a sua mãe, e estava imersa na leitura. Fernando Pessoa pôs-se também a ler duas cartas que lhe tinham chegado da África do Sul e lhe falavam de uma infância longínqua.
Fui como uma erva e não me arrancaram, disse a certo ponto a senhora que aparentava cinquenta anos. A frase agradou a Fernando Pessoa, que a anotou num caderninho. Entretanto, diante deles, passava a paisagem plana do Ribatejo, com arrozais e campinas.
Quando chegaram a Santarém, Fernando Pessoa apanhou uma tipóia. Sabe onde fica uma casa isolada caiada de branco? perguntou ao cocheiro. O cocheiro era um homenzinho anafado, com o nariz vermelho de álcool. Claro disse, é a casa do senhor Caeiro, conheço-o bem. E fustigou o cavalo. O cavalo começou a trotar na estrada principal ladeada de palmeiras. Nos campos viam-se palhotas com um ou outro preto à porta.
Mas onde estamos nós?, perguntou Pessoa ao cocheiro, para onde me leva?
Estamos na África do Sul, respondeu o cocheiro, e estou a levá-lo a casa do senhor Caeiro.
Pessoa tranquilizou-se e apoiou-se às costas do assento. Ah, estava então na África do Sul, era mesmo isso que queria. Cruzou as pernas com satisfação e viu os seus tornozelos nus, dentro de umas calças à marinheiro. Compreendeu que era um rapazinho, o que muito o alegrou. Era bom ser um rapazinho que viajava para a África do Sul. Pegou num maço de cigarros e acendeu com volúpia. Ofereceu também um ao cocheiro, que aceitou avidamente.
Caía o crepúsculo quando avistaram uma casa branca que ficava numa colina ponteada de ciprestes. Era uma típica casa ribatejana, comprida e baixa, com telhas vermelhas com beirais. A tipóia entrou na alameda de ciprestes, o cascalho rangeu debaixo das rodas, um cão ladrou no campo. À porta da casa estava uma velhota com óculos e uma touca branca. Pessoa percebeu subitamente que se tratava da tia-avó de Alberto Caeiro, e erguendo-se em bicos dos pés, beijou-a nas faces.
Não me canse muito o meu Alberto, disse a velhota, tem uma saúde tão fraca.
Afastou-se para o lado e Pessoa entrou na casa. Era uma sala ampla, mobilada com simplicidade. Havia um fogão de sala, uma pequena estante, um aparador cheio de pratos, um sofá e duas poltronas. Alberto Caeiro estava sentado numa poltrona e tinha a cabeça inclinada para trás. Era o Headmaster Nicholas, o seu professor da High School.
Não sabia que Caeiro era o senhor, disse Fernando Pessoa, e fez um ligeiro cumprimento com a cabeça. Alberto Caeiro fez-lhe um gesto fatigado para entrar. Entre, caro Pessoa, convoquei-o aqui porque queria que soubesse a verdade.
Entretanto a tia-avó chegou com uma bandeja com chá e bolinhos. Caeiro e Pessoa serviram-se e pegaram nas chávenas.
Pessoa lembrou-se de não espetar o dedo mindinho, porque não era elegante. Ajeitou a gola do seu fatinho à marinheiro e acendeu um cigarro. O senhor é o meu mestre, disse.
Caeiro suspirou e depois sorriu. É uma longa história, disse, mas é inútil contar-lha de fio a pavio, você é inteligente e compreenderá mesmo se eu saltar algumas passagens. Saiba apenas isto, que eu sou você.
Explique-se melhor, disse Pessoa.
Sou a sua parte mais profunda, disse Caeiro, a sua parte obscura. Por isso sou o seu mestre.
Um campanário, na aldeia vizinha, deu as horas.
E eu, o que devo fazer?, perguntou Pessoa.
Deve seguir a minha voz, disse Caeiro, ouvir-me-á na vigília e no sono, às vezes hei-de perturbá-lo, outras vezes não quererá ouvir-me. Mas terá de escutar-me, deverá ter a coragem de escutar esta voz, se quer ser um grande poeta.
Fá-lo-ei, disse Pessoa, prometo-lhe.
Levantou-se e despediu-se. A tipóia esperava-o à porta. Agora tornara-se de novo adulto e tinha-lhe crescido o bigode. Para onde quer que o leve?, perguntou o cocheiro. Leve-me para o fim do sonho, disse Pessoa, hoje é o dia triunfal da minha vida.
Era o dia oito de Março, e pela janela de pessoa entrava um sol tímido.

(António Tabucchi) Sonhos de Sonhos
http://omj.no.sapo.pt/O_dia_triunfal_de_Fernando_Pessoa.pdf

domingo, novembro 11, 2007

Reflexos do Olhar VI- " O rio da minha aldeia "

(Aguarelas de Turner) aqui ainda se pesca...
(Aguarelas de Turner)

sábado, novembro 10, 2007

VEJAM se ainda vão a tempo - é Segunda no Coliseu...

Cada coisa tem o seu fulgor...

(Miró)


CADA COISA

Cada coisa tem o seu fulgor,
a sua música.
Na laranja madura canta o sol,
na neve o melro azul.
Não só as coisas,
os próprios animais
brilham de uma luz acariciada;
quando o inverno
se aproxima dos seus olhos
a transparência das estrelas
torna-se fonte da sua respiração.
Só isso faz
com que durem ainda.
Assim o coração.

(Eugénio de Andrade)

sexta-feira, novembro 09, 2007

Nada de especial...

(Aguarelas de Turner)

Que silêncio tão grande. No interior do silêncio mais silêncio e no interior do mais silêncio um relógio minúsculo a anunciar
- Já é tarde, já é tarde
de forma que nem reparamos nos ponteiros. Para quê se o relógio insiste
-Já é tarde, já é tarde
e nós a olharmos uns para os outros, inquietos
- O que diz o relógio?
apesar de termos ouvido perfeitamente a sua vozinha apressada, nós de súbito com medo
- Tarde?
e o que significa tarde meu Deus? o que pretende o relógio? Mesmo tapando as orelhas com as mãos a teimosia permanece
- Já é tarde
mesmo não escutando mais nada escutamos o
- Já é tarde
não sabemos se no relógio se no interior da gente, olhamos em volta, olhamos para dentro à procura, achamos episódios antigos, um triciclo, um avô a espantar-se
- O que tu cresceste
um colar de pérolas
(de quem?)
numa tacinha, achamos a nossa vida de hoje, o que fazemos com ela, dias atrás de dias, o supermercado, o jantar no restaurante aos domingos, a maçada das crianças às vezes e não era bem isto que nos apetecia, não era bem isto o que tínhamos desejado, falta qualquer coisa, onde é que errámos, o que falhámos, não somos infelizes mas também não temos o que secretamente ansiávamos, os anos vão passando
( - o que tu cresceste)
e não temos o que secretamente ansiávamos, de vez em quando momentos tão vazios, de vez em quando, mesmo no meio dos outros, uma solidão tão grande, um desamparo, uma sensação de queda, esta dificuldade em respirar, porque a mobília sufoca, que vem e desaparece e volta, de vez em quando, sem motivo, vontade de chorar, não lágrimas grandes, não soluços, uma coisa vaga, uma pergunta
E agora?
sem resposta, caras familiares que se tornam estranhas, se te abraçar continuo sozinho, o que se passa comigo, o que se passa connosco, o relógio prossegue
- Já é tarde
monótono, acusador, implacável, os objectos quietinhos sem nos ajudarem
- Porque não nos ajudam?
Nada nos ajuda, é tarde, tentamos conversar e é tarde, fazemos amor e é tarde apesar de termos feito amor na esperança que não seja tarde e depois, em lugar do prazer, ou misturado com o prazer, ou mais forte que o prazer, uma espécie de amargura que persiste, se não dilui, persiste, o
- E agora?
sem resposta aumenta, um
- E agora?
imenso, que horror, um
- E agora?
que nos preenche inteiros, se nos pegassem ao colo, fugissem connosco, nos garantissem
- Não é tarde ainda
e pudéssemos acreditar que não é tarde ainda, tranquilizar-nos afirmando
- Não é tarde ainda
embora cientes que mentimos
-Não é tarde ainda
e tornar a mentira verdade,que outra coisa fizemos para além de tentarmos transformar as mentiras em verdades, não há ninguém mais crédulo que um desesperado
- O que tu cresceste
e em que direcção cresci não dou por ter crescido, lá está o triciclo, lá está o avô, lá está o colar, os frascos de perfume que cheirávamos às escondidas, os cigarros que fumávamos secretamente no quintal, cresci para onde, cresci como, se nos metermos no carro, se almoçarmos fora, se te pegar na mão melhoramos e contudo
ficamos parados
a teimar no silêncio
(que silêncio tão grande)
- Já é tarde
e não é o relógio, somos nós
- Já é tarde
não noite ainda e contudo tão tarde, aproximamo-nos da janela, os prédios de costume na rua
(esperavas outros prédios, outro bairro?)
e tão tarde, ganas de apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, de que serve apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, no espelho a nossa cara
- O que tu cresceste
diferente, a nossa cara diferente, porquê diferente, porquê diferente, porquê diferente, porquê diferente, o que é isto nos olhos, o que é isto na boca a ecoar
-Tarde
todo o corpo a afirmar
-Tarde
e quando o
-Tarde
diminui o
E agora?
a dilatar-se nele, o
-E agora
imenso, sentamo-nos no sofá com uma revista, o jornal, um livro e as mãos vazias, apertamo-las uma na outra, espreitamos o triciclo, a certeza que se pedalássemos muito depressa não seria tarde, pedalar mais depressa que o relógio, os episódios antigos, aquela parente que nos oferecia rebuçados cujo papel não descolava e se prendia aos dentes, tentávamos retirar o papel com a unha e não saía, ainda nos lembramos do gosto do papel na língua, largamos a revista, o jornal, o livro, e ficamos no sofá, tanto tempo passado, com papel na língua, a mastigá-lo, a mastigá-lo, a mastigá-lo, no fundo da gente nós mesmos a acusarmo-nos
- Porque me tornaste nisto?
o silêncio aumentou tanto que o relógio se calou, uma palma no nosso ombro
- O que foi?
e construímos peça a peça um sorriso difícil
(custa tanto um sorriso)
que responde por nós
- Não foi nada.

(António Lobo Antunes) Crónica publicada no nº766(8 de Novembro 2007)revista Visão

quinta-feira, novembro 08, 2007

Reflexos do Olhar V (2ª série)

(Aguarelas de Turner) a força da natureza... (Jardim de José do Canto. Ilha Terceira)

quarta-feira, novembro 07, 2007

Os homens já não se lembram desta verdade...








O principezinho foi ver as rosas outra vez.
- Vocês não são nada parecidas com a minha rosa! Vocês ainda não são nada- disse-lhes ele.-Ninguém vos cativou e vocês não cativaram ninguém. São como a minha raposa era, uma raposa perfeitamente igual a outras cem mil raposas. Mas eu tornei-a minha amiga e ela passou a ser única no mundo. E as rosas ficaram bastante arreliadas.
- Vocês são bonitas, mas vazias-insistiu o principezinho.-Não se pode morrer por vocês. Mas, sozinha, é muito mais importante do que vocês todas juntas, porque foi ela que eu reguei. Porque foi ela que eu abriguei com o biombo. Porque foi ela que eu matei as lagartas ( menos duas ou três, por causa das borboletas). porque foi ela que eu ouvi queixar-se, gabar-se e até, às vezes, calar-se. Porque ela é a minha rosa.

Depois voltou para o pé da raposa e despediu-se:
- Adeus...
-Adeus- despediu-se a raposa. - Agora vou-te contar o tal segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos...
- O essencial é invisível para os olhos- repetiu o principezinho, para nunca se esquecer.
- Foi o tempo que tu perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa...repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
- Os homens já não se lembram desta verdade- disse a raposa.- Mas tu não te deves esquecer dela. Ficas responsável para todo o sempre por aquilo que cativaste. Tu és responsável pela tua rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa...-repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.

(Antoine de Saint-Éxupéry) O Principezinho http://www.saint-exupery.org/

terça-feira, novembro 06, 2007

A noite abria a frescura dos campos todos molhados...

(Vallotton)

NOITE

Húmido gosto de terra,
cheiro de pedra lavrada,
-tempo inseguro do tempo!-
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.

Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,
-lábio da voz sem ventura!-
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.

A noite, abria a frescura
dos campos todos molhados,
- sozinha, com o seu perfume!-
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados

Bem que a vida estava quieta
Mas passava o pensamento...
- de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrelas e o vento.

(Cecília Meireles) Viagem

segunda-feira, novembro 05, 2007

Reflexos do Olhar IV (2ª série)

(Aguarelas de Turner) janela da Igreja de S.Gonçalo.Amarante

domingo, novembro 04, 2007

sábado, novembro 03, 2007

Pobres das flores ...dos jardins regulares...

( Aguarelas de Turner) Palácio Mateus (jardins)

XXXIII

Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas1 que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso2 antigo
Que tiveram à solta para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam....3

Alberto Caeiro ( O Guardador de Rebanhos)

XXXIII
1 Var.a «boas»; »certas»
2Var. a »sorriso»; «colorido»
3 Vars. a « Para ver se elas falavam...»; « Para ver se elas mudavam»/ « Para ver o que elas faziam...»/ Para ver a quem pertenciam...»/ « Para as ver com o tacto (os dedos) também...»

REFLEXOS DO OLHAR III (2ª série)

(Aguarelas de Turner) A minha cerejeira

sexta-feira, novembro 02, 2007

Conversa à volta de....um Texto

(Aguarelas de Turner) Teixeira de Pascoaes. Amarante.

Fome! Fome! Eis aí uma palavra que enegrece as conversas de café e os artigos dos jornais. E, todavia, entre nós, a fome não existe. Há barrigas que dão horas como um relógio, estômagos vazios, todos os sinais da miséria, mas fome verdadeira não existe. Não existe infelizmente. Fome de pão, fome de Deus, frases débeis entre nós. Sentimos, quanto muito, o apetite, uma fome educada e atenuada, Fome de pão significa apetite de pão. Fome de Deus quer dizer a mesma cousa, a mesma imagem céptica da fome.
Na língua castelhana, é que esta palavra encontra a sua expressão potente e verdadeira: Hambre! Hambre é como a nossa fome negra de outros tempos, esse fantasma de Camões a desenhar o Adamastor.
Hambre! A violência da palavra amarrada ao H, crucificada em duas cruzes, escurece-lhe e afunda-lhe o sentido. Nós precisamos de acrescentar ao substantivo fome o adjectivo negro. Pintamos o trágico vocábulo. Mas a tinta desvaneceu.
O português não sente essa palavra- hambre! Nem os próprios famintos a sentem, na verdade. Morrem com o estômago vazio, mas não de fome. Daí, a sua inércia, aquela mortal indiferença que os mobiliza ante a estiagem que lhe queima as searas, o traficante que lhe rouba o último centavo e o traficante-mor de Lisboa que lhes vai pondo no prego, em benefício próprio, o continente e as colónias.
É certo que, neste século, alguns portugueses sofreram a fome negra: Mouzinho de Albuquerque, João de Freitas...D. Carlos e Sidónio. Sanguinolentas mãos os libertaram da terrível angústia!
E há dois portugueses ainda que sentiram a fome negra de voar. Negra ou azul? E há ainda Correia de Oliveira, esse faminto da terra e céu, esse povo português como Gil Vicente; e Raul Brandão, esse genial faminto russo, como Tolstoi ou Dostoievski. Graças a Deus!
Dum modo geral, o nosso compatriota não sente fome, a pior das misérias! E até os cães têm fome e ladram à lua! É fome, de sol ou de amor, que faz cantar os pássaros. Ruge o tigre com fome de carne viva! Os tigres e os espíritos. Mas, ai, o português é o único animal que não tem fome! E por isso, perdeu a voz que canta e a voz que ruge.
Ficou-lhe apenas aquela tagarelice que se dispersa, em sons articulados e vazios, no ambiente sujo dos cafés e das gazetas.
Ai de nós! Não temos fome! A maldita saciedade mostrando os dentes inofensivos! Que tragédia! Sim. O dente lusitano é uma figura de retórica, um imaginário de marfim para enfeitar sorrisos de donzelas...Não sabemos morder, nem mastigar. Debicamos...Fastio, fastio e só fastio e uma cor parda e, muitas vezes, de pardal, na colecção de fisionomias exposta por essas ruas.
Satisfazemos o pálido apetite, não ingerindo alimentos, mas emitindo palavras, palavras e palavras! A carne, o arroz, o bacalhau aumentam o preço a todo o instante? Que importa? Vingamo-nos falando. Falamos nos botequins e nos jornais. No Princípio era o Verbo e o Verbo se fez Carne. Eis a razão por que não morrem de fome os portugueses. Uma razão transcendente, capaz de quebrar a cabeça a mil filósofos! É pena Bergson e Euken não visitarem Portugal. O Diário Notícias bem poderia cá trazê-los, se a sua acção diplomática se alongasse ao domínio do pensamento.
Nem só de pão vive o homem, diz a Bíblia. E há homens que vivem só de palavras, como nós. Por isso as câmaras resolvem a crise das subsistências, distribuindo discursos à plebe.
O português prefere ser escravo, dizendo-se livre, do que ser livre com nome escravo. A palavra é tudo para ele. Tudo: o Pão, Deus , o Amor.
A palavra bem-educada e bem vestida, sem ideia na cabeça, eis aí a sua deusa, a Vénus destes romanos falsificados pelos Negros da Guiné.

(Teixeira de Pascoaes ) A NOSSA FOME - III (1923)

quinta-feira, novembro 01, 2007

Schubert e Maria João Pires



Franz Schubert (1797-1828)
Improviso Nº 4, La b maior, Op. 90, D 899

Maria João Pires (piano)

França, 1986