terça-feira, dezembro 30, 2008

Será feita de aves......

(Picasso)
Será feita de aves a primeira sensação da manhã
ser-nos-ão concedidos os dons do voo e do sonho permanente
juntos descobriremos a fonte do nocturno bosque
e a sabedoria do estritamente necessário
despojar-nos-emos dos corpos
dos objectos acumulados na memória

do sonho e do ouro utópico chegará a metamorfose
o tempo será rigorosamente prolongado a cada enxertia dos pomares
da mesma árvore derramar-se-ão frutos diferentes
quando os dias se tornarem mais nítidos

o regresso é demorado
avança manhã adiante
com o crescimento das mãos e da sageza.

(Al Berto- Vigílias)

domingo, dezembro 28, 2008

Ele é um dos eternos mensageiros...


(Munch)

Celebrar, sim! Eleito a celebrar
surgiu como o minério do silêncio
da pedra. Ó coração, mortal lagar
de um vinho inesgotável para os homens.

A nenhum pó a sua voz falhou
se o exemplo divino dele se apossa
Tudo se faz vinhedo e se faz uva
amadurada no seu Sul sensível.

Nem nas criptas dos reis a podridão
poderá desmentir seu celebrar,
ou sombra que dos deuses caír possa.

Ele é um dos eternos mensageiros
que ainda pra lá dos umbrais dos mortos
erguem taças de frutos gloriosos.

(Rainer Maria Rilke-Sonetos a Orfeu)

Bach. Cantata BWV 147. 1

O ser humano não se compadece com os males a que não assiste

(Escher)
XV Uma civilização de compartimentos estanques

(...)
Oscar Wilde escreveu em qualquer parte que o pior crime é a falta de imaginação: o ser humano não se compadece com os males que não experimenta directamente ou a que não assiste. Pensei muitas vezes que as carruagens blindadas e os muros bem construídos dos campos de concentração asseguraram a extensão e a duração dos crimes contra a humanidade, que teriam acabado bem mais cedo se tivessem sido efectuados ao ar livre e à vista de todos. O hábito, nas praças públicas da Idade Média e do Grande Século, entorpecia talvez certos espectadores; mas sempre restavam alguns para se comoverem, ou até para protestar, e o seu murmúrio acabou por ser ouvido. Os executantes de tais obras hoje em dia são mais cuidadosos nas suas precauções.(...)

(Marguerite Yourcenar-1972-O Tempo esse grande escultor)

sábado, dezembro 27, 2008

Da consciência-perdoem-me- mas desconfio...

(Magritte)

ESPERAR O INESPERADO

Esperar o inesperado é uma expectativa que se abre sem limites definidos, sem trajectória, sem apostar seja no que for. A esperança não tem nada a ver com este exercício permanente de disponibilidade. Nem, propriamente, a surpresa. Esperança e surpresa estão demasiado contaminadas de humano para poderem participar nesta disponibilidade para o que vier de um lá que nem sabemos onde se situa, onde terá vigência. E, no entanto, a busca do inesperado impõe-se, não pode reduzir-se àquela expectativa que eu tentei traduzir num texto poético: «Amadonada vitralesca, a Noiva do Bairro morreu de doce expectoração à janela.» Foi Heraclito quem muito bem formulou essa imposição: «Se não buscas o inesperado não o encontrarás, que é penoso e difícil encontrá-lo.» Portanto, não esperar mas buscar, o que implica, por parte do agente, um moto próprio. E como buscar o inesperado, ir ao encontro dele, conseguir que ele aceda a nós? Praticando uma estratégia, por assim dizer, do vazio? Não ter e não esperar nada para buscar tudo? Estar aberto, vácuo, livre? Aceitar o que nos chega como se de inesperado sempre se tratasse? Explorar o chamado acaso objectivo, essa forma de manifestação da necessidade exterior que abre um caminho até ao inconsciente humano, como alguém o definiu?
Usando de um prudente relativismo, penso que todas estas interrogações se podem reduzir a uma: que fazer do desejo?
Hoje a maioria de nós vive presa a formas martelantes de vida ( família, trabalho, consumo, cultura), como preservar o nosso desejo naquilo que ele tem de mais imperativo? Porque é através desse potente motor que nós, para nos salvarmos da rotina no que ela tem de mortal, poderemos avançar para mais liberdade.

Da consciência-perdoem-me-mas desconfio. Ela está tão ocidentalmente conformada que não raro, se confunde com a culpa, o remorso, a espiação ou então, com a vaidade, o orgulho, a prepotência. Através do desejo, poderemos buscar o inesperado e encontrá-lo. Parece-me ser a única forma autêntica de libertação. Mas que, nestas filosofâncias, fique bem claro que, quando penso em desejo, não estou a pensar em termos exclusivamente sexuais. O desejo é mais que o apetite. É como o amor: uma forma de sexualidade alargada. Não há comportamento humano que lhe escape.

(Alexandre O'Neill- Uma coisa em forma de assim)

sexta-feira, dezembro 26, 2008

Agora sim...agora não....Os Deolinda




 Estou deliciada com este disco. Se ainda não o conhecem não percam a oportunidade. Um grupo, radicalmente original, capaz de inovar no plano musical/instrumental e no plano da letra. Esta canção caracteriza, genialmente, a nossa resistência à mudança.

quinta-feira, dezembro 25, 2008

Lisboa não é a cidade perfeita-Os Deolinda

quarta-feira, dezembro 24, 2008

Hoje é Noite de Natal

(Aguarelas de Turner)

Esta noite a lareira vai estar sempre acesa. Se a família tem o seu lugar cativo, os amigos, qualquer que seja a hora, podem sempre entrar... Sei que também estão à volta da mesa, que os risos se redobram no reencontro com os imprescindíveis bacalhau e couves, que só neste jantar especial sabem tão bem. Mas se lá pela madrugada ou no acordar da manhã quiserem dar aqui uma saltada (ainda que virtual) vão encontrar por aqui as brasas que nunca deixaram de ser atiçadas para vos receber. E agora uma palavra especial para o meu querido mano, que já não sei há quantos anos, foi recriar a magia do outro lado do Oceano. Sentimos sempre a tua falta!

terça-feira, dezembro 23, 2008

A pena não acode ao gesto seu...


Soneto de natal

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"

(Machado de Assis)

segunda-feira, dezembro 22, 2008

Não podemos ignorar...

(Henri Rousseau)

Cantata da Paz


Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.

(Sophia de Mello Breyner Andersen)

domingo, dezembro 21, 2008

Aznavour - Noel à Paris

sábado, dezembro 20, 2008

quinta-feira, dezembro 18, 2008

Nada do que é convencional...


Esta árvore foi encontrada acidentalmente numa missão abandonada e semi-destruida pela guerra e pelo abandono dos homens - MISSÃO DE BOROMA- perto de Tete. Achei-a como quem acha um tesouro. Olhei-a e, ainda hoje a olho, como símbolo da vitória da vida sobre a morte. É esta,pois, a Árvore de Natal que trago para todos.(19/12/2005-Addiragram)


Não há pinheiros nem há neve,

Nada do que é convencional,

Nada daquilo que se escreve

Ou que se diz... Mas é Natal.

Que ar abafado! A chuva banha

A terra, morna e vertical.

Plantas da flora mais estranha,

Aves da fauna tropical.

Nem luz, nem cores, nem lembranças

Da hora única e imortal.

Somente o riso das crianças

Que em toda a parte é sempre igual.

Não há pastores nem ovelhas,

Nada do que é tradicional.

As orações, porém, são velhas

E a noite é Noite de Natal.


(Cabral do Nascimento)



quarta-feira, dezembro 17, 2008

Se fosses mágico...

(Eastman)

Versos de Natal

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu reflectes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exacto e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até ao fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

Manuel Bandeira ( Lira dos cinquent' anos)


terça-feira, dezembro 16, 2008

Conta uma história de Natal do teu país...


(Les Halles-vista de noite)
(....)
Mais tarde, muito mais tarde, eu estava no exílio. Na noite de Natal os revolucionários ficavam tristes e nostálgicos. Talvez recordassem outras avós, outros presépios, outros lugares. Reuniam-se em casa deste ou daquele, improvisava-se uma árvore de Natal, trocavam-se presentes. Mas ninguém, nem mesmo os mais duros, os que faziam gala em dizer que o Natal para eles não significava nada, nem mesmo esses conseguiam disfarçar uma sombra no olhar. Saudade, dir-se-á. Mas talvez fosse mais do que saudade e solidão e o pior de todos os exílios que é o de se sentir estrangeiro no mundo. Talvez fosse a consciência de que, para lá de todas as crenças ou não crenças, havia um irremediável sentimento de perda. Muitas vezes me perguntei o que seria. Mas não conseguia responder. Sentia o mesmo aperto, o mesmo buraco por dentro, o mesmo sentimento de algo para sempre perdido.
Uma noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do Porto, mas não fui capaz de bebê-la assim, completamente só, num quarto de criada de um sexto andar numa velha rua do Quartier Latin. Peguei na garrafa e fui até aos Halles. Procurei o bistrot onde costumava comer uma omelete de fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia mais três solitários no bistrot, um velho de grandes barbas, um tipo com cara de eslavo, um africano. Convidei-os para partilharem comigo a garrafa de Porto, que não resistiu muito tempo. Encomendámos outras bebidas.
- Conta uma história de Natal do teu país, pediu o velho.
- Só se for a do presépio da minha avó.
- Então conta.
Eu contei. Era já muito tarde e o patrão disse-nos que queria fechar. Chegados à rua o africano apontou o céu e disse-me: Olha.
E eu vi. Uma estrela que brilhava mais que as outras estrelas. Era uma estrela de prata. A estrela da avó. Brilhava no céu, brilhava outra vez dentro de mim, quase posso jurar que brilhava dentro dos outros três.
Então eu perguntei ao africano como se chamava. E ele respondeu:
- Baltazar.
Perguntei ao velho e ele disse:
- Melchior.
E sem que sequer eu lhe perguntasse o eslavo disse:
- O meu nome é Gaspar.
Era noite de Natal e talvez ainda por magia da avó eu estava na rua, em Les Halles, com os três reis do Oriente, Magos, diria o meu pai.
- E agora? perguntei a Baltazar.
- Agora, respondeu o africano apontando a estrela, agora vamos para Belém.

(Manuel Alegre)



segunda-feira, dezembro 15, 2008

Balthazar na Barbearia

(Aguarelas de Turner)
A Barbearia do Senhor Luís abriu, uma vez mais, um importante concurso neste Natal de 2008, dedicado, desta vez, a Balthazar, que merece as honras de quase primeira página. Sabemos que nenhum dos concorrentes conseguirá transpor a difícil barreira posta logo à partida:-"o-cheio-de-magia-Balthazar" trazido de tempos imemoriais e tão acarinhado pela sua progenitora. Contudo, como a vida é feita de acasos, poder-se-á dar o caso de a Sorte bafejar um dos correntes. Eis a razão porque "Aguarelas de Turner" não quis deixar de apresentar a sua obra a concurso. Ela foi realizada a partir da "prata da casa", reunindo as luzes de um Natal em Lisboa com o Balthazar, tão acarinhado pelo filhote.
"Aguarelas de Turner" apresenta votos de uma escolha lúcida, apaixonada, e independente.

(Addiragram)

Para isso fomos feitos...

(Elsheimer) http://en.wikipedia.org/wiki/Adam_Elsheimer#Life_and_work


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos-
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos-
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai-
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte-
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos imensamente.

(Vinicius de Morais- Antologia Poética)

domingo, dezembro 14, 2008

A minha estrelinha de Natal

(Aguarelas de Turner)



Wild Child - Enya

sábado, dezembro 13, 2008

Só bonito na lembrança...

( Daumier)
Coimbra, Natal de 1974


Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal na fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.

(Miguel Torga- Diário XII-Antologia Poética)

sexta-feira, dezembro 12, 2008

Olho, já não vejo nada...

(Georgia O'Keefe)
Natal das Ilhas. Aonde
O prato de trigo novo,
A camélia imaculada,
o gosto no pão do povo?
Olho, já não vejo nada.
Chamo, ninguém me responde.


Natal das Ilhas. Serão
Ilhas de gente sem telha,
Jesus nascido no chão
Sobre alguma colcha velha?


Burra de cigano às palhas,
Vaca com língua de pneu,
Presépio girando em calhas
Como o eléctrico, tu e eu.


Natal das Ilhas. Já brilha
Nas ondas do mar de inverno
O menino bem lembrado,
Que trouxe da sua ilha
O gosto do peixe eterno
Em perdão do seu passado.

( Vitorino Nemésio- Antologia Poética)

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Todos estes pastores são jovens tecnocratas...


(Manet)

Em vez da consoada há um baile de máscaras
Na filial do Banco erigiu-se um Presépio
Todos estes pastores são jovens tecnocratas
que usarão dominó na próxima década


Chega o rei do petróleo a fingir de Rei Mago
Chega o rei do barulho e conserva-se mudo
enquanto se não sabe ao certo o resultado
dos que vêm sondar a reacção do público

Nas palhas do curral ocultam microfones
O lagedo em redor é de pedras da Lua
Rainhas de beleza hão-de vir de helicóptero
e é provável até que se apresentem nuas

Eis que surge no céu a estrela prometida
Mas é para apontar mais um supermercado
onde se vende pão já transformado em cinza
para que o ritual seja muito mais rápido

Assim a noite passa. E passa tão depressa
que a meia-noite em vós nem se demora um pouco
Só Jesus no entanto é que não comparece
Só Jesus afinal não quer nada convosco.

(David Mourão-Ferreira- Cancioneiro de Natal -1969)

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Mas o natal da minha mãe é ainda o meu natal

(Rei Mago de Barcelos)

A abstracção não precisa de mãe nem pai
nem tão pouco de tão tolo infante

mas o natal de minha mãe é ainda o meu natal
com restos de Beira Alta

ano após ano via surgir figura nova nesse
presépio de vaca burro banda de música


ribeiro com patos farrapos de algodão muito
musgo percorrido por ovelhas e pastores


multidão de gente judaizante estremenha pela
mão de meu pai descendo de montes contando


moedas azenhas movendo água levada pela estrela
de Belém

(João Miguel Fernandes Jorge)


Como habitualmente, dedico estes dias aos poetas e escritores que, inspirando-se no Natal, também o pensaram ou questionaram através da lente dos seus afectos.
Uma maneira de O festejar...à minha maneira.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

O meu Natal


(Aguarelas de Turner)

Não escapo ao colectivo desta época, ainda que ambicione não me deixar devorar pela fúria consumista que nos assola, e acaba por nos deprimir, naqueles derradeiros dias em que nos vemos a entrar desesperada e furiosamente na última loja para comprar o último presente...mais um, aquele que ainda faltava. Sem uma tradição católica pessoal entro neste período do ano, como quem regressa ao mágico da infância e procura continuar a recriar para filhos e netos momentos de encantamento e encontro.
Em pequena, os ruídos simulados pelos meus pais, na chegada atribulada do Pai Natal, que tinha de conseguir, antes da descida, o "milagre do emagrecimento", procurando pôr à prova a lógica infantil (mamã se o Pai Natal é tão gordo como é que consegue descer?), deixavam-me quase sem sono, e numa imensa e misteriosa alegria. As primeiras madrugadas que fiz foram seguramente estas. Corria para a chaminé da cozinha, que fora cuidadosamente preparada para este dia tão nosso, ainda a luz mal se via. Os sapatinhos, meus e do meu irmão, engraxados a preceito, lá tinham sido postos de véspera, na esperança de que as nossas cartas, escritas com antecipação bastante, dando conta do nosso bom comportamento e das nossas preocupações com a saúde do Pai Natal ( que tinha de desenvolver tão árduos esforços para continuar a assegurar a tempo e horas esta imensa distribuição) tivessem chegado ao seu destino e fossem reconhecidas como sinceras.
Essas cartas incluíam sempre o pedido de livros, jogos, brincadeiras com as bonecas, construções e, muito raramente, qualquer peça de vestuário. Lembro-me, no entanto, de ter descoberto numa das minhas investigações, olhando o topo superior dos armários, um chapéu de chuva azul, de cabo de metal dourado fosco, espreitando para fora do seu embrulho. Era um verdadeiro chapéu de princesa! Como me senti orgulhosa de o poder abrir junto das minhas amigas!
Foi, contudo, esse chapéu que quebrou o encantamento e que revelou, de um forma tangível, a terrível verdade. O Pai Natal não mais transporia de trenó milhares de kilómetros numa só noite, não mais se mascararia a descer a estreita chaminé, não mais receberia aquelas cartas escritas e decoradas com tanto cuidado. A descoberta, contudo, se trouxera a realidade, fizera-me sentir guardiã de um segredo. Só eu sabia. O meu irmão continuava a ouvir os ruídos da chegada do Pai Natal e a lutar com os colegas da escola que se atreviam a dizer que o Pai Natal não existia.
A partir do ano seguinte já nada ficou como era, mas em nós ficou, para sempre, o encantamento que se vivia em casa naqueles dias. Os presentes nunca eram muitos, mas eram o bastante para nos levar a sonhar. Nas manhãs do dia vinte cinco o relógio quase parava, esperando que mostrássemos aos nossos pais todas aquelas maravilhas!
Ainda hoje o prazer de oferecer está ligado ao encantamento que procuro criar naqueles para quem escolho os presentes. Entretenho-me a imaginar o prazer que poderão encontrar no desembrulhar, ora cuidadoso ora precipitado, dos maravilhosos embrulhos. No que a mim diz respeito, alegro-me muito, quando descubro, através de um presente, por mais minúsculo que seja, como me souberam adivinhar...

domingo, dezembro 07, 2008

MANOEL DE OLIVEIRA - Aniki Bóbó

"A única coisa eterna é o presente, o passado é memória"( Manoel de Oliveira em entrevista à revista Visão)




Admiro em Manoel Oliveira a imensa capacidade de viver com prazer. A existência de permanentes projectos é disso a prova. Vejam-no a filmar por aí e a sonhar novos filmes. A poucos dias dos seus magníficos cem anos apetece-me dizer: Obrigada Manoel!


sábado, dezembro 06, 2008

No meio está uma fogueira...


V

Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre com suas
lâmpadas todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
-E nós estamos dentro, subtis, e tensos
na música.
[....]

(Herberto Helder- As Musas Cegas)

sexta-feira, dezembro 05, 2008

...é trabalho de séculos...




"Criar uma pequena flor é trabalho de séculos"

(William Blake -50 provérbios do Inferno, The Marriage of Heaven and Hell
)

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Acompanhamos a ficção como acontece ...no sonho

(Vieira da Silva)

[Em Toda a Biblioteca há Espíritos ]
Penso que em toda a biblioteca há espíritos. Esses são os espíritos dos mortos que só despertam quando o leitor os busca. Assim, o acto estético não corresponde a um livro. Um livro é um cubo de papel, uma coisa entre coisas. O acto estético ocorre muito poucas vezes, e cada vez em situações inteiramente diferentes e sempre de modo preciso. (...) Detenhamo-nos nesta ideia: onde está a fé do leitor? Porque, para ler um livro, devemos acreditar nele? Se não acreditamos no livro, não acreditamos no prazer da leitura. (...) Acompanhamos a ficção como acontece, de alguma maneira, no sonho.


(Jorge Luís Borges, in "Camões, por Jorge Luis Borges", jornal O Estado de São Paulo)

in http://barcosflores.blogspot.com/

segunda-feira, dezembro 01, 2008

...é sempre uma novidade ver a pessoa amada...


Quando amamos fortemente, é sempre uma novidade ver a pessoa amada; após um momento de ausência, damos pela sua falta no coração. Que alegria, a de a reencontrarmos! Sentimos de imediato um cessar de inquietações. É necessário todavia que esse amor esteja já muito avançado; porque quando é nascente e não fizemos progresso algum, sentimos com efeito um cessar de inquietações, mas outras sobrevêm.
Ainda que os males se sucedam assim uns aos outros, não deixamos de desejar a presença da amada na esperança de sofrermos menos; contudo quando a vemos, cremos sofrer mais do que antes. Os males passados já não ferem, os presentes tocam-nos, e é pelo que toca que ajuizamos. Um amante neste estado não é digno de compaixão?

(Blaise Pascal- Discurso sobre as Paixões do Amor-Ed. Fenda)