terça-feira, junho 30, 2009

A história das coisas




Há dias, JRD, trouxe-me à lembrança um video notável, sobre a catástrofe que o consumo desenfreado traz a esta nossa querida Terra. De imediato, senti o desejo de aqui trazer, também, este video. É que todos nós temos vindo a ser deseducados nestes últimos 50 anos... Vamos fazer qualquer coisa para contrariar esta tendência. Sejamos engenhosos e sonhadores e coloquemos no lugar das coisas o prazer de pensar, de sonhar, de descobrirmos o encanto de tudo o que nos rodeia... Não é fácil, mas alimenta mil vezes mais
!

segunda-feira, junho 29, 2009

era um navio que se balança ali à minha espera...

(Tomasini- 1832-1902-Barcos no Tejo perto de S.Julião da Barra. Museu da Marinha)



Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar a âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.

Lisboa, Cadeia do Aljube, 1 de Janeiro de 1940

(Miguel Torga)

domingo, junho 28, 2009

De Sábado para Domingo um filme- O Pianista




Gosto muito de cinema, do bom cinema ( este" bom" é o meu, claro), o único que considero cinema. Infelizmente nem sempre guardo na memória os filmes de que gostei. Há alguns, contudo, que escapam ao meu esquecimento. O Pianista de Roman Polanski é um deles. Recordem-no comigo.

sábado, junho 27, 2009

Louis Armstrong - Uma noite com música




Hoje, apetece-me ficar a ouvir Armstrong...

quinta-feira, junho 25, 2009

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo

(Valloton)

A maior solidão é a do ser que não ama

A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.

(Vinicius de Morais)

quarta-feira, junho 24, 2009

Fotógrafos de Sempre- Imogen Cunningham


Imogen Cunningham- Phoenix Recumbent

http://pt.wikipedia.org/wiki/Imogen_Cunningham

http://photography-now.net/listings/index.php?option=com_content&task=view&id=631&Itemid=249


Imogen Cunningham teve uma longa vida como mulher e como fotógrafa. Dizem que pouco tempo antes de morrer, aos 93 anos, ainda fotografava. Os nus, as flores, as plantas nas suas diferentes texturas, deixaram-nos uma beleza inconfundível e tocante que exerce sobre o observador um efeito quase hipnótico. Phoenix Recumbent é o seu nu mais notável. O equilíbrio entre as curvas do corpo e do cabelo a par de uma doce luminosidade que tudo banha, fazem desta fotografia um ícone da beleza feminina e da sensualidade.
Percorrer a obra desta fotógrafa, deparando-nos com diferentes fases, diferentes preocupações, é um verdadeiro prazer. Para lá de um olhar, sempre tão especial, as qualidades técnicas estão verdadeiramente "montadas" ao serviço do efeito que procura obter. Antes de se dedicar, de alma e coração, à fotografia Imogen Cunningham estudou aprofundamente os processos químicos subjacentes à fotografia.

segunda-feira, junho 22, 2009

Fazer ....da flor de linho um espelho

Maria Dias flor de linho selvagem

Fazer de uma palavra um barco
é todo o meu trabalho
ou da flor do linho um espelho
onde a luz do rosto cai
excessiva.

(Eugénio de Andrade- O peso da sombra)

domingo, junho 21, 2009

De Sábado para Domingo um filme-Amazing Grace



http://www.imdb.com/title/tt0454776/

http://www.brycchancarey.com/abolition/wilberforce.htm

"Amazing Grace" é um filme nos conta a história da luta de William Wilberforce pela abolição da escravatura no Império Britânico, uma luta que deparou contra os mais violentos obstáculos por parte daqueles que tudo fizeram para perpetuar os seus negócios de açúcar e de venda de escravos. Durante cerca de trinta anos lutou na Câmara dos Comuns pela aprovação da lei, que era vista como crime de lesa pátria em relação ao poderio britânico.
John Newton, capitão de navio negreiro arrependido, foi seu professor e mentor espiritual. Thomas Clarkson, autor do famoso ensaio contra a escravatura, foi seu companheiro de luta.
Ver este filme faz-nos bem.Entramos de alma e coração na história de um homem que toda a sua vida lutou pela dignificação dos que viviam em sofrimento e em desvantagem. Outras lutas suas se seguiram à aprovação da lei anti-esclavagista.
Romanceado ou não, o filme dá-nos conta como a existência de um amor poderoso e cúmplice, trouxe a Wilberforce a energia para resistir, quer aos ataques externos, quer aos ataques internos provenientes de uma doença intestinal extremamente dolorosa. Um Hino à Vida com sentido!
Vejam, se ainda não viram!

sábado, junho 20, 2009

Concha Perfumada...


Ladainha

Concha perfumada
Pórtico real
Princesa das flores
Porta misteriosa
Pérola vermelha
Coração de peónia
Pegada de gazela
Pórtico de jade
Palácio de púrpura
Delta negro
Pote de mel
Botão de lótus
Gruta de canela
Porta alada
Flor da lua

Rogai por nós.

(Jorge de Sousa Braga- A Ferida Aberta)

sexta-feira, junho 19, 2009

Ao entrar no jogo da sinceridade...criou o personagem que hoje conhecemos...


A ilusão da eternidade, dizia-me Rosa quando lhe confessei o meu amor: queres que o nosso abraço nos iluda quanto a uma entrega de ambos a esse sentimento que se confunde com a vida; mas não vês que o amor não passa de uma relação física, de algo que serve apenas os interesses da reprodução da força de trabalho, e quanto muito uma distracção das verdadeiras preocupações de amar a revolução? Talvez essa revolução, que tinha o fulgor abstracto da palavra proibida, não fosse mais do que uma outra designação de Cristo, ou de qualquer um dos deuses a quem os homens entregaram a sua existência? Se eu lhe tivesse falado de Antónia Margarida, ver-se-ia ela no lugar dessa mulher que abandonou a situação social que tinha, a família, o nome, para se transformar numa serva anónima de um convento, condenada a ser um número inscrito numa laje de pedra onde os seus ossos iriam ficar para sempre, como sinais de uma existência inútil para o mundo exterior? Pensa, diz-me ela, naqueles que entram numa manifestação de massa, nos que saem às ruas para enfrentar a polícia? Quantos não morrem, depois desse acto? E os seus corpos são recolhidos, tão anónimos como os desses religiosos de que falas. O que importa é o sonho, e não quem acredita nele; e se o seu sacrifício é necessário para que a luta avance, devem entregar-se sem hesitação, e abdicar por completo de tudo o que se pareça com uma individualidade, um projecto pessoal.
Anos mais tarde, quando me disseram que a Rosa vivia sozinha, que procurava alunos para explicações que lhe permitissem sobreviver, que bebia para esquecer a solidão, tive dificuldade em acreditar. Mas lembrei-me que os tempos mudaram; e hoje a utopia já não tem lugar. Por isso Antónia Margarida(1) se refugiara no convento; e ao entrar no jogo da sinceridade, escrevendo e reescrevendo a sua vida para que os confessores pudessem compreender os nexos das suas acções, criou o personagem que hoje conhecemos, sempre com a dúvida sobre se é realidade ou ficção o que estamos a ler(....)

(Nuno Júdice-os passos da cruz)

(1)-http://www.aph.pt/uf/uf_0504.html

quarta-feira, junho 17, 2009

Fotógrafos de Sempre- Cartier Bresson

(Henry Cartier-Bresson)

Por estes dias dei por mim a pensar que sendo o "Aguarelas " um lugar onde vou inscrevendo muitas das minhas preferências culturais, que sentido faria deixar de fora os Fotógrafos?Tornou-se-me então premente criar essa rubrica, injustamente esquecida. Assim, às 4ªs feiras, passarei a trazer uma fotografia de um fotógrafo que, tanto quanto possível, tentarei comentar.
Dei a Cartier-Bresson as honras de abertura. Ele foi o "meu" primeiro fotógrafo. Quando me iniciei na fotografia, como amadora, era nele que buscava inspiração. Com uma Pentax e um rolo a preto e branco percorria zonas antigas de Lisboa, tentando captar instantes do nosso quotidiano, que depois revelava num laboratório doméstico. Emoções que ficaram para sempre impressas.
Mas voltemos a Cartier-Bresson.
O que vemos quando olhamos uma fotografia de Cartier-Bresson?
Para além dos aspectos técnicos, que não me sinto capaz de comentar, encontro-me sobretudo com o Homem que soube olhar, com o coração, cada instante que captou. Quem pega numa máquina sabe que o instante do disparo nada tem de aleatório. Ele pretende reter no interior da câmara a projecção do que no interior de cada fotógrafo "dança". Cruzam-se emoções com personagens e lugares e nasce (quando tudo se conjuga, até mesmo o aleatório...) a fotografia. Os fotogramas de Cartier-Bresson tornaram-se de tal modo "únicos" que transformaram cada momento captado num instante perpétuo que conquistou uma existência própria
. Nesse sentido a fotografia, quando salta a fronteira do banal, não é diferente de uma qualquer tela que nos comova ou que os agite. Bresson teve o génio de transformar o instante captado numa "escrita" que nos cria a ilusão de termos nós, também um pouco, essa costela de fotógrafo-pintor.

http://www.magnumphotos.com/archive/C.aspx?VP=XSpecific_MAG.Biography_VPage&AID=2K7O3R14T50B

http://wwwfiaposdepalavras.blogspot.com/2009/04/entrevista-com-henri-cartier-bresson.html

terça-feira, junho 16, 2009

Era preciso agradecer às flores...


(Aguarelas de Turner)
Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.

(Sophia de Mello Breyner Andersen-No Tempo Dividido)

segunda-feira, junho 15, 2009

Eu porém....não me interessava pelos vivos...

(Barbier)

Quando vou sozinho a conduzir, em viagens mais longas, dou-me conta de que se desenterram da memória coisas que pareciam esquecidas para sempre, submersas sob o aluvião de acontecimentos que nos enche a existência. De facto, eu estava a pensar então em Rosa que tinha conhecido, num distante Verão, estava eu ainda a acabar o meu curso. o que nos levou um até ao outro foi o saber ela que eu gostava de literatura; e embora eu trabalhasse num assunto que nada lhe dizia- a vida de uma obscura fidalga da segunda metade do século dezassete, que quase ninguém conhecia então, e que muitos hoje continuam sem conhecer- fez-me perguntas acerca dela, e do que eu sabia da sua vida.
É verdade que a vida de alguém que viveu há trezentos anos é assunto mais para ratos de biblioteca do que para quem queira viver no presente. Eu, porém, nesse fim de adolescência, que é a altura em que se deveriam descobrir as mais profundas sensações e conhecer os outros na sua parte mais emotiva, não me interessava pelos vivos, preferindo mortos, com quem se convive no silêncio das salas de leitura, mesmo que alguém tenha dito que estas são os lugares eróticos por excelência. Depois mudei de opinião; mas lembro-me de ter defendido, perante a reprovação da Rosa, o meu intolerante princípio. (cont.)

(Nuno Júdice- Os passos da cruz)

domingo, junho 14, 2009

sábado, junho 13, 2009

Nisso somos bons: os campeões da sardinha

(Dali- A caravela)
O português gosta de enganar pela calada aqueles que mandam nele. Mandar é um verbo antigo, vasto, totalitário e infantil, que em princípio da idade adulta devia ser substituído por verbos de maior eficiência e capacidade democrática, como coordenar e gerir.
Verbos que cheiram a trabalho e responsabilidade- e o português tem o olfacto muito apurado. Assim prefere a clareza do mando, ao qual faz vénias mansas, com os dedos cruzados atrás das costas. Figas, diabo. De modo que é um povo resistente às sondagens, como mais uma vez provaram as últimas eleições europeias. A não ser essa explicação, teríamos de dizer que as empresas de sondagens são governamentalizadas. Podemos atribuir a discrepância entre as sondagens e os resultados a um gosto nacional pela surpresa ou pelo prazer de enganar. Ou ainda, à volubilidade de um povo habituado a viver como se fosse eterno.
Divertiu-me a rapidez com que, logo que se conheceu a vitória do PSD, apareceu uma sondagem da Eurosondagem a demonstrar que, se a eleição fosse para as legislativas, o resultado seria diferente, e o PS ganharia-sondagem essa realizada antes das eleições europeias. Brincamos com os números; talvez seja uma forma de lembrar aos povos mais calhados com as matemáticas que nada é exacto nem definitivo neste mundo. Gostamos mais de especular do que fazer contas- o que, não sendo o melhor método de governação, é um excelente modo de passar o tempo.
Nunca há derrotados, nas eleições portuguesas-pelo menos não no sentido clássico, que é o de reflectir sobre a derrota e tirar dela lições. José Sócrates, que tem um perfil de liderança mais frontal do que todos que tivémos a oportunidade de experimentar- incluindo o recém-ressuscitado Salazar, que adoptava o estilo de cordeiro sacrificial que melhor se coaduna com os complexos de inferioridade nacionais -, teve pelo menos a originalidade de assumir a derrota. Usou mesmo o verbo assumir-mas acrescentou de imediato que não viu nela nenhum sinal de inversão de marcha, pelo que o Governo prosseguirá na mesmíssima linha, e os portugueses compreenderão o seu esforço de combate à crise.
Eu gostava de ter essa mesma fé na generosidade dos portugueses-mas acho difícil que uma população que perdeu dezenas de regalias nos últimos anos, sem ver sequer um fósforo de justiça no fundo do tal túnel, já infinito, possa ter essa boa vontade. Atrevo-me, por isso, a sugerir ao primeiro ministro que considere umas correcções na linha. As reformas são necessárias, mas deveriam contemplar a realidade das pessoas, para lá da abstracção dos números. É difícil implantar uma cultura do mérito enquanto os chefes continuarem a enriquecer e os índios a empobrecer. É difícil entender que falte o dinheiro para o essencial (habitação, educação, justiça) e que os administradores da coisa pública, em particular aqueles cujo mérito é reconhecidamente nulo, ganhem pelo menos o triplo do salário do próprio primeiro ministro. É difícil de aceitar investimentos milionários em comboios ou museus enquanto pessoas não tiverem condições de vida mínimas, e os aposentados forem atirados para os braços financeiros dos filhos que já têm os próprios filhos a sustentar.
Ao longo da noite eleitoral, ouvimos comentadores de todos os quadrantes puxarem a brasa à sua sardinha. Nisso somos bons: os campeões da sardinha. Mas entre uma brasa e outra, conviria perceber que o voto, num país que é líder mundial da cortiça e que habituou a navegar à bolina, traz recados. Um dos recados, que o PSD ganharia em entender, é que Paulo Rangel não é a Manuela Ferreira Leite. O segundo recado, que os outros partidos precisam de entender, é que votar contra o Governo não significa ter visto a verdade e a luz na oposição. O terceiro recado, que Sócrates precisa mesmo de entender, é que não basta, por falta de melhor alternativa ( o que já não é pouco) continuar a ser primeiro-ministro: é preciso ter condições para governar. Mandar com jeito, usando a gratidão e o respeito que amolece a manha dos povos velhos. Foi devagar que construímos os barcos, criámos receitas e escrevemos as páginas que nos tornaram admirados no mundo. Anunciamos:"estou a fazer tempo", como se fôssemos deuses, e pudéssemos fabricar o tempo á medida dos nossos desejos. Dizemos: "há tempo...". E acabamos por nos desenrascar, quando é preciso. Mas tem de valer a pena. Somos sonsos, mas não somos parvos.

(Inês Pedrosa- O país onde se faz tempo. Os recados eleitorais de um povo que não compra o tempo já feito) in Revista Única- 13/06/09)

sexta-feira, junho 12, 2009

O que é esta dor sem mágoa?

(Dali)
Aguarela

Quando o barco passa na água
Faz as vezes de ilusão...
O que é esta dor sem mágoa
Que há um pouco em meu coração?

Quando o barco vai no rio
A gente põe-se a pensar...
Mas nem se pensa a frio,
Porque pensar é sonhar.

Quando o barco vai da vista
Há uma tristeza que vem.
Quem quer que a vida exista?
Meus sonhos não são ninguém...

(Fernando Pessoa-6/11/1928)

quinta-feira, junho 11, 2009

Trafic- Jacques Tati



Revejam e deliciem-se. Um "monumento"!

quarta-feira, junho 10, 2009

livros que não se lêem, cartas que não se escrevem...


Humildade


Tanto que fazer!
livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.

E os pássaros detrás de grades de chuva,
e os mortos em redoma de cânfora.

(E uma canção tão bela!)

Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê.

(Cecília Meireles- Inéditos)

segunda-feira, junho 08, 2009

Será alguém um dia...


Variação sobre o mesmo tema

Será alguém um dia
levado a pensar em mim
pelo cheiro de laranjeiras
quando eu também já for
«alguém há muito tempo»?

Shunzei (1114-1204) in Rosa do Mundo- 2001 Poemas para o Futuro

domingo, junho 07, 2009

Escrevi teu nome no vento- Carminho




Uma amiga que vai partir trouxe-me ontem este presente. Oiçam-no comigo.

Eu era eureka para aqueles olhos...

(Botticelli)

Aconteceu-me

Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado.
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez fossem como eu os vi
e ainda que não o fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.

(Almada Negreiros -Poemas)

quinta-feira, junho 04, 2009

Feito à imagem das aves o aparo


Canto do Aparo

Quando a minha mão, como as crianças,
era de uma estrela rósea as cinco pontas
eu louvava o estreito aparo de pena
que traçava os traços sinuosos da música
própria das esferas e das coisas.

Feito à imagem das aves o aparo
tinha o bico bífido, e os cantos
que a mão com ele soltava inscreviam-se
ao longo das linhas caligráficas.
Do tinteiro bebia o bico a cor
que escrevia o som de cada letra.
Filhos meus não sentiram depois
na sua mão também de astros
o afago deste gesto de pássaros,
mas uma noção nova obsessiva
do gasto e do poupar do Tempo
por um artefacto hábil
que em si entesourou a tinta.

Porém, ao lembrar o lento tempo,
não só relembro o meu aparo sereno,
como aquele que foi de Vânia, o Tio,
no silêncio raspando a sua angústia,
porque todos os contrários são unidos.

(Fiama Hasse Pais Brandão- Cantos do Canto)

segunda-feira, junho 01, 2009

Por exemplo, o que é a saudade?

(Magritte)
Não é fácil a arte de recordar, porque a recordação, no momento em que é preparada, pode modificar-se, enquanto a memória se limita a flutuar entre lembrança certa e lembrança errada. Por exemplo, o que é a saudade? É vir à recordação algo que está na memória. A saudade gera-se simplesmente pelo facto de se estar ausente. Arte seria conseguir sentir-se saudade sem se estar ausente. Para tanto é preciso estar-se treinado em matéria de ilusão. Viver numa ilusão, em que o crepúsculo é contínuo e nunca se faz dia, ou alguém ver-se reflectido numa ilusão, não é tão difícil como alguém reflectir-se para dentro de uma ilusão e ser capaz de deixá-la agir sobre si, com todo o poder que é o da ilusão, apesar de se ter pleno conhecimento disso. A magia de trazer até si o passado não é tão difícil como a de fazer desaparecer o que está presente em benefício da recordação. É aqui que reside no fundo a arte da recordação e a reflexão elevada à segunda potência.

(Kierkegaard- In vino veritas. Antígona)