domingo, abril 29, 2012

Carta ao meu filho que faz hoje 20 anos


    (foto de Ana Guedes)

Carta ao meu filho que faz hoje 20 anos

Ainda envolta na nuvem da longa anestesia perguntei à voz que no meu canto superior esquerdo balbuciava algumas palavras que logo me pareceram"impossíveis".
-ele é bonito?
Sossegaram-me com sorrisos afirmativos  de circunstância, mas, de imediato descobri como iria ser longa a espera para nosso encontro.
Vi-te em fotografia ainda nesse dia. O teu pai e a tua irmã apressaram-se a
mover céus e terras junto do fotógrafo para conseguir "trazer-te" na visita da tarde. Foi assim que te "vi" pela primeira vez, acompanhando os relatos detalhados de tudo o que se passava.Eras quase o bebé mais lindo que já alguma vez vira e os meus olhos mergulhavam dentro da fotografia na esperança de o tempo poder ser acelarado.
Ao 3º dia, depois daquela peripatética viagem em cadeira de rodas, lá nos pudemos finalmente tocar. Eu, muito a medo, já que aquela cabina complexa, fazia-me temer mexer em algum sítio vital. Uma festinha ao de leve, primeiro no braçinho, depois na cabeça, de novo no braçinho...para finalmente te tirarem da câmpanula para te colocarem no meu cólo. Saberia eu pegar-te, envolvido que estavas naquele emaranhado complexo? Se aquele primeiro instante nunca poderia corresponder ao sonho que longos meses me acompanhara, foi, todavia, inesquecível. A memória desses instantes gravou-se totalmente no meu corpo. Sabes, são aquelas memórias que nunca nos deixam e que se constituem como alicerces da nossa vida. Nunca deixes de as querer "recolher". Só nas experiências emocionais e com elas, conseguimos constituir a nossa "biblioteca para a vida", aquela que nos momentos conturbados faz as vezes dos carinhos dos nossos pais.Guarda-as sempre no teu cofre mais seguro.
Mas a nossa vez não tinha chegado ainda naquele dia. Deves ter dito de ti para ti: a minha mãe quase se parece como estes doutores, mal chega vai-se logo embora. Será que isto vai ser sempre assim?
Chegou finalmente o sábado. E foi tudo de repente. A enfermeira ,lesta e insensível, aproximou-se da cama e disse-me: se quiser ver o seu bebé vista-se e venha ao berçário! Acredita que não sabia! Fui numa atrapalhação, depois de percorrer um longo e difícil corredor. Chegada, olho-te no colo da enfermeira que te pegava. Foi um instante! Quando nos olhámos reconhecemo-nos como velhos conhecidos.Tudo a partir daí me pareceu mais fácil. Finalmente  podias descer  do ramo da árvore para a concha dos meus braços e encontrar enfim o teu lugar.
Façamos agora um salto de gigante no tempo. Hoje no teu metro e oitenta e muitos, lutas cada dia contra os teus obstáculos. Por vezes apetece-te dizer à maneira do Paul Nizan: Eu tenho 20 anos. Não consentirei que ninguém diga que é a idade mais bela da vida ...
  É que a descoberta de que a concha tecida à tua volta progressivamente tem de dar lugar às tuas próprias construções é uma descoberta inevitavelmente difícil.Pensa-se sempre que, sem rede, nunca se conseguirá largar. Quer-se construir o mundo com uma determinação ainda oscilante, que ora sonha "o caminho marítimo", ora espera que a vida venha desaguar na praia.      
 Todos sabemos que os actuais horizontes fazem, muitas vezes, temer o sucesso da viagem. Os escolhos são muitos e aos teus olhos eles podem ter a dimensão de uma montanha atribulada.Lembra-te contudo que os dois vencemos à partida a batalha mais importante- a batalha pela vida e pelo amor à vida.
Nada a partir daqui será verdadeiramente complicado, já que de então até cá, pudeste guardar já no teu cofre muitos e muitos momentos que te acompanham.  
Um grande beijo de Parabéns, querido filho.
   
Esta foi a carta que escrevi nos teus 18 anos.Nada de novo tem para ti. A sua republicação é o meu sinal de que tudo o que lá está é a nossa história linda. Obrigada Filho por tudo o que me tens dado.




sábado, abril 28, 2012

Os meus sonhos de viagens...



Chegar tão longe, «ser tão bem-sucedido», parecia-me fora de todas as possibilidades. Este sentimento estava ligado à estreiteza e à pobreza das nossas condições de vida durante a minha juventude. E certamente os meus sonhos de viagens expressavam também o desejo de escapar à atmosfera familiar, esse mesmo desejo que impulsiona as fugas de tantos adolescentes. Tinha descoberto há muito tempo que uma boa parte da minha vontade de viajar se ligava ao desejo assim de uma vida livre ou, por outras palavras, ao descontentamento que experimentava no seio da minha família. Quando vemos o mar pela primeira vez, atravessamos oceanos e contemplamos  cidades e paisagens reais com que sonhámos durante muito tempo como se fossem coisas longínquas e inacessíveis, fazemos perante nós próprios a figura de um herói que consuma proezas incríveis.

(Freud- correspondência-1936)

quarta-feira, abril 25, 2012

COLORIR ABRIL



Naquela estremunhada manhã acordou-se cedo. Um telefonema de uma conhecida distante atravessou o sono e do lado de lá perguntou o que acontecera do lado de cá do rio. Uma sua amiga viera do Barreiro no primeiro barco da manhã e ao chegar ao Terreiro de Paço só vislumbrara chaimites. 
Foi assim que o 25 de Abril bateu à minha porta. Ligar de seguida o rádio, descobrir os comunicados emitidos  do Estado Maior das Forças Armadas, intercalados com Grândola e demais canções, deixou-nos mergulhados por momentos num sentimento de irrealidade. Os sinais que vinham até nós eram de facto A mudança que tanto sonháramos ? Não haveria o perigo de os olharmos como quem olha uma miragem na areia do deserto que se desfaz no preciso momento em que nos aproximamos ?
Aos poucos fomo-nos dando conta que a música permanecia a par dos avisos à população para evitar sair de casa. O desejo de sair, de ir "cheirar o ar" impôs-se mais e mais.
Nesses tempos a minha primeira morada ficava a poucas centenas de metros do quartel da Legião Portuguesa. Saí, máquina em punho, e fui ao encontro desses poderosos chaimites que fechavam o acesso ao quartel. Guardo ainda essas fotografias coloridas, que o tempo desbotou, sentindo-as como momentos vivos de memória que nada fará apagar.  
 No alcatrão da Morais Soares as lagartas dos tanques tinham deixado a sua marca.
A "conquista" da cidade ia-se fazendo cautelosamente procurando ler sinais da revolução. A alegria era grande mas contida, sempre temendo que algum retrocesso pudesse acontecer. Os anos de ditadura com a sua polícia política e civil, desmanchando sempre todas as veleidades de mudança fazia-nos  temer o pior.
Mas o dia ia caminhando, as notícias do cerco ao quartel do Carmo eram vividas minuto a minuto através da televisão e, já mais para o fim do dia, sentíamos que podíamos finalmente festejar.
Estávamos todos em festa. Esse grupo de oficiais das Forças Armadas-os Capitães de Abril- traziam-nos, generosamente, a Liberdade.
Restava-nos, tão só, construir novas formas de viver que fizessem jus aos princípios de Abril. Tudo o mais tinha sido feito.
Assim os nossos Capitães não são (ao contrário do que diz a arrogante ignorância) pessoas que querem sobressair. São sim Homens que se deram por causa e que, podem e devem dizer, como Abril está já completamente desbotado.
Vamos colori-lo de novo!

terça-feira, abril 24, 2012

Miguel Portas e Abril

Infelizmente, no momento presente, são raros os políticos que consigo admirar. Lastimo profundamente não conseguir encontrar pessoas que se dediquem à causa pública que sinta que o fazem com amor, com paixão, com o sentido de melhor fazer pela pólis . Miguel Portas, que nunca conheci pessoalmente, era um daqueles em que sempre ouvi falar o coração. A força, a frontalidade e a coragem que colocou em todos os seus combates deixou sempre em mim uma enorme admiração.
O seu desaparecimento na véspera de um aniversário de Abril, tão triste e vilmente apagado, só nos pode deixar a vontade de não fazer morrer as sementes que o Miguel nos deixou.
Obrigada Miguel! Façamos viver Abril!


domingo, abril 22, 2012

Eu fazia-me dança e fazia-me prece...

            (Renoir)
Se eu pudesse fazia-te princesa,
rainha dos gatos, madressilva,
encontro à noite numa auto-estrada,
flor de lótus a nascer do sangue.
Ou então ravina de onde a ave presa
do canto voasse à mais alta ogiva,
tomar por sua a lua incendiada
até que o voo interrompesse exangue.
Se soubesse, ao menos se soubesse,
na tua boca um beijo ir acender,
eu fazia-me dança e fazia-me prece,
ou fazia-me chama, rosa do amanhecer,
príncipe da treva que a razão desconhece.
Se soubesse, fazia-te mulher.



(Bernardo Pinto de Almeida)

sábado, abril 14, 2012

Que um gesto em ser gesto real se meça...

                       

Só nos Pertence o Gesto que Fizemos  


Só nos pertence o gesto que fizemos
não o fazê-lo como, iludida,
a divindade que em nós já trouxemos
supõe errada (e não) por convencida.

Porque o traçado nosso em breve cessa,

para que outro o recomece e não progrida;
que um gesto em ser gesto real se meça,
não está em nós fazê-lo, mas na Vida.

Assim o nada a sagra quando finda

porque o que é, só é o não ainda.


Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'

segunda-feira, abril 09, 2012

E correram, correram as crianças à procura da maçã...

 (Courbet)
 Desejo 


Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.


Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço á boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.


Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.


(Três canções do Epiro)