terça-feira, dezembro 31, 2013

Poema para o Novo Ano














DESINFERNO II

Caísse a montanha e de oiro o brilho
O meigo jardim abolisse a flor
A mãe desmoesse as carnes do filho
Por botão de vídeo se fizesse amor

O livro morresse, a obra parasse
Soasse a granizo o que era alegria
A porta do ar se calafetasse
Que eu de amor apenas ressuscitaria

(Luiza Neto Jorge)

domingo, novembro 10, 2013

A natureza revolucionária da felicidade...

(Turner)
    
A Natureza revolucionária da felicidade

                  Quem deixou sobre o coração
                            Um feixe de luz
                            Não cega nunca

(valter hugo mãe)


                             
 

domingo, novembro 03, 2013

Os loucos, os fantasmas somos nós...

     (Magritte)
                                            Perfilados de medo, agradecemos
                              o medo que nos salva da loucura.
                              Decisão e coragem valem menos
                              e a vida sem viver é mais segura.

                              Aventureiros já sem aventura,
                              perfilados de medo combatemos
                              irónicos fantasmas à procura
                              do que não fomos, do que não seremos.

                             Perfilados de medo, sem mais voz,
                             o coração nos dentes oprimido,
                             os loucos, os fantasmas somos nós.

                             Rebanho pelo medo perseguido,
                             já vivemos tão juntos e tão sós
                             que da vida perdemos o sentido...

                   (Alexandre O' Neill)


                    

terça-feira, outubro 29, 2013

É dentro de ti que toda a música é ave..




               (Redon)
      
Encostas a face à melancolia e nem sequer
ouves o rouxinol. Ou é a cotovia? Suportas mal o ar, dividido
entre a fidelidade que deves

à terra da tua mãe e ao quase branco
azul onde a ave se perde.
A música, chamemos-lhe assim,
foi sempre a tua ferida, mas também

foi sobre as dunas a exaltação.
Não ouças o rouxinol. Ou a cotovia.
É dentro de ti 
que toda a música é ave.


(Eugénio de Andrade)


sexta-feira, outubro 25, 2013

Que importam pontes..



                                              
                                Que importam pontes 
                                imponderáveis
                                unindo sombras
                                galgando escarpas
                                compondo um todo
                                articulado
                                de ombros com ombros
                                braços com braços


                               se vem a noite
                               enregelar-nos
                               pôr-nos defronte
                               desta verdade
                               de nem as pontes
                               recuperarem
                               braços sem ombros
                               ombros sem braços

(David Mourão-Ferreira)


                         

quinta-feira, outubro 24, 2013

O Aguarelas era assim...há oito anos..

          (Cassat)



O Aguarelas de Turner era assim há oito anos. 


A recordação traz consigo sentimentos antagónicos que nos confrontam inevitavelmente com a perda. Há uma dor associada a um tempo que jamais voltará a ser percorrido. 
Resta o mel do encanto inicial com que começámos. "Malgrè tout" apeteceu-me percorrer os traços desse passado, através dos quais, fui fazendo conhecidos e amigos, com os quais fui partilhando ideias, afectos e diferentes saberes. 
Evoco aqui, com muita saudade, dois deles que entretanto, partiram: Amélia Pais e Torquato da Luz, que trouxeram a este canto tantos momentos de plena de generosidade.
Um dia destes virá em que o Aguarelas chegará ao seu termo. Não poderei  nunca deixar de estar grata a todos aqueles com quem me cruzei neste espaço virtual. 


segunda-feira, outubro 21, 2013

Presos ao apagar do mesmo pavio...



 Eléctrico
XLII

E se eu de súbito gritasse
nesta voz de lágrimas sem face!:

Eh! companheiros da plataforma
presos ao apagar do mesmo pavio!
Porque não nos amamos uns aos outros
e damos as mãos
- sim as nossas mãos
onde apodrecem aranhas de bafio?

Eh! companheiros da plataforma
(Não empurrem Irmãos.)

(José Gomes Ferreira)

sexta-feira, outubro 18, 2013

o grito que em tristeza cai lá fora...

                        (Edvard Munch)
           
                                                            O grito que se solta      
                                        espaço a espaço

                                       que se afunda
                                       mole e aderente

                                       que se adivinha
                                       curvo e apertado

                                       que é atmosfera
                                       inconsistente

                                       o grito que se insinua
                                       pela tarde

                                       se insinua mudo
                                       incoerente

                                       no vértice do mar
                                       no espelho em face

                                      na face que recorda
                                      e se pressente

                                     o grito que se sabe antigo
                                      imenso

                                      que ao sol se alastra
                                       levemente


                                       e levemente oscila
                                       e se contorna
                                       assim e devagar 
                                       serenamente

                                       serenamente finge
                                       e ignora

                                      serenamente nu

                                      serenamente

                                     o grito que em tristeza
                                     cai lá fora
                                     no espaço que da chuva se
                                    desprende.

(Maria Teresa Horta-Amor Habitado)  
                                                        
                                     
                                                              


                            

quinta-feira, outubro 17, 2013

Esse é que é o segredo..



Onde estão os meus Presentes?


Os melhores presentes são os inesperados. Têm de ser bons mas, graças à surpresa, podem não ser tão bons como os esperados.
Dizemos: "É só uma lembrança" e pensamos que estamos a ser hipócritas, porque não é possível esquecer a obrigação horrível de dar presentes. Achamos que dizer: É só uma lembrança" é a tradução exacta de "Desculpa lá, não tenho dinheiro para te comprar um presente melhor; contenta-te com isto, que já tens sorte; o que é que compraste para mim?"
No entanto, a lembrança é uma bela palavra. Não é souvenir ou recuerdo. Não significa só: "Não me esqueci de ti". A lembrança é o acto de lembrar, no sentido mais espontâneo, sem obrigação ou vontade.
A minha Mãe sabe dar presentes. Quando dá diz sempre: " Eu estava na loja tal, vi este não-sei-quê e lembrei-me logo de ti. Tive de comprar para te dar, claro".
Em inglês, o sentido é mais nítido: aquela coisa: remind me of you. Foi o próprio objecto que lhe fez um favor: trouxe-lhe à memória uma pessoa amada. A única maneira de retribuir essa amabilidade é comprando-o. E oferecendo-o à pessoa que faz lembrar. Não porque nos lembrámos dela mas porque trazíamos esquecida aquela pessoa e aquela coisa lembrou-nos quanto a amávamos- e o prazer que deu lembrarmo-nos dela.
(...)
Amar alguém é não poder passar sem ela. Como dependemos dessa pessoa e queremos que ela dependa de nós, oferecemos (ou não oferecemos) presentes que reforçam a dependência e desencorajam a autonomia. Quem ama oferece lembranças: objectos que revelam quanto se conhece e quantas coisas nos fazem lembrar a pessoa amada.
As bilionárias oferecem jóias aos toy boys e os bilionários oferecem iates às amantes porque são convertíveis em cash. Oferecem autonomia. Oferecem o poderes viver sem mim. Tão pouco mostra amor estar muito tempo a pensar no presente que se vai dar a uma pessoa, para que se adeque à sua personalidade. Esse trabalho podemos nós encomendar a outra pessoa.
(...)
Mas o amor não é assim que funciona. Amar é não poder abrir uma revista ou ler um livro ou dar um passeio sem se estar sempre a se interrompido por associações de coisas e experiências à pessoa amada: "Tenho de lhe contar, tenho de lhe dar, quero saber o que pensaria, que pena não poder ver..."
A verdade é que não são interrupções. Nós já estávamos a pensar nela. Mesmo que não à superfície. Esse é que é o segredo. Aquelas coisas apenas nos chama a atenção porque nos permitem trazer a pessoa amada à superfície, para a nossa frente.
Este serviço, escusado será dizer, nenhuma empresa consegue oferecer. Quando se trata de comprar presentes para as pessoas que amamos, nós temos essa vantagem gigantesca. É verdade que nos parece sempre pouco e que essa sensação de não ter conseguido  dar muito mais- tudo o que se queria dar- faz sofrer. E não é pouco.
Mas não sofre, senão de comoção, a pessoa que recebe o que lhe damos. Não é "só uma lembrança": É uma verdadeira lembrança. É só um dos muitos incidentes de associação. Uma das coisas que faz quem nos ama é ser capaz de enumerar e descrever ao pormenor todos os outros presentes em que se pensou, onde os viu, no que se pensou em cada altura, tudo.
"Era para te comprar...mas depois não sabia...e só havia aquele tamanho...e depois entrei na loja X e vi um não sei-quantos-lindo-de-morrer mas custava..."
Estas récitas que parecem uma sequência de compras frustradas são muito mais do que isso: são declarações de amor. Mostram como nos sentimos pequenos diante da pessoa amada, incapazes de igualá-la ou representá-la num simples presente.
(...)
Está certo que seja assim: os presentes, entre pessoas que se amam, não dependem do dinheiro que se gaste neles.Dependem do amor. E são sempre bem escolhidos porque foram dificeis de escolher, com a dificuldade que só custa a quem ama.
Já os outros presentes, que não tenham essa ajudinha, é outra questão. Nesses casos, o melhor presente é o dinheiro. Vivo. E quanto mais, melhor. Para nós gastarmos conforme nos apetecer. Sem chatices, vales e com trocas.
Há que ser frio- ou muito quentinho- nestas coisas.

(Miguel Esteves Cardoso -Como é linda a puta da vida)


quarta-feira, setembro 18, 2013

O poema é o que no homem para lá do homem se atreve...

     (Turner-Aurora)
O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.

É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.

Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.

E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.

Natália Correia, in "Poemas (1955)"

quinta-feira, agosto 22, 2013

Murmurei-a a uma cisterna de turvas águas antigas...

A palavra que te disse,
talvez por ser tão pequena,
em tais desprezos perdeu-se
que não deixou nem pena.

Murmurei-a a uma cisterna
de turvas águas antigas
e foi-se de cova em cova
em múltiplas cantigas.

Amadores deste mundo,
nas águas vosso amor ponde;
que elas vos darão resposta,
quando ninguém responde


 Cecília Meireles in ' Retrato Natural'

sábado, julho 20, 2013

E é por elas que subo lentamente cada monte...

                  (Magritte)                   
    
 A segurança destas paralelas
— a beira da varanda e o horizonte;
assim me pacifico, e é por elas
que subo lentamente cada monte.

O tempo arrefecido, e só soprado
por uma brisa tarda que do mar
torna este minuto leve aconchegado,
traz mansas as certezas de se estar.

E vêm novos nomes: são as fadas,
gigantes e anões, que são assim
alegres de o serem — parcos nadas

que enchendo de silêncios este sim
dele fazem brinquedos, madrugadas...
Agora eu estou em ti e tu em mim.

Pedro Tamen, in “Tábua das Matérias” 

terça-feira, junho 25, 2013

O verão que perdemos...



                            O Verão Novo



                 O verão que perdemos
                 não poderá fazer-nos
                 perder o verão novo

                Há-de voltar o corpo
                e o mar será o mundo
                revolto que já foi

              O outono o inverno
              serão se nós quisermos
              o verão que perdemos


          ( Gastão Cruz)

            

sábado, junho 15, 2013

O Poema...

   (Monet)


Reflexo


Como um lago o poema
não repete reflecte

Gastão Cruz- As Pedras Negras

domingo, junho 02, 2013

Não sei o que dizer...


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

(Herberto Helder)

domingo, maio 05, 2013

Aninha-me em teu colo como outrora...

                                William-Adolphe Bouguereau 

 Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora.  Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe. 

Vinicius de Moraes

quinta-feira, maio 02, 2013

Pernoito na precária vida do fogo...

(Addiragram-Faial)
   
Os Barcos são a imagem que resta para fugir
mas só as palavras nos embriagam
são labareda que devora os barcos e a memória
onde nos movíamos
esquecemos o que nos ensinaram
e se por acaso abríssemos os olhos
um para o outro
encontraríamos outra imobilidade outro abismo
outro corpo hirto
latejando na imperceptível ferida nocturna

pernoito na precária vida do fogo
este rumor de mãos ao de leve pelo corpo
adormecido na superfície do espelho
assalta-me o desejo incerto de te acordar
e o medo de querer de novo tudo reinventar

(Al Berto - Vigílias)


quinta-feira, abril 25, 2013

Outros Abris hão-de nascer...



Viemos com o peso do passado e da semente
Esperar tantos anos torna tudo mais urgente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela calada
Só se pode querer tudo quando não se teve nada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
habitação
saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir


(Sérgio Godinho)

Quem viveu Abril "sabe" que outros Abris não deixarão de acontecer. A nossa memória colectiva saberá não tolerar o intolerável.

domingo, abril 14, 2013

A Eternidade e o desejo são duas coisas parecidas....

Addiragram- S.Salvador da Baía

A Eternidade e o desejo, são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam com a mesma figura. Os Egípcios nos seus Geroglíficos, e antes deles os Caldeus, para representar a Eternidade pintaram um O: porque a figura circular não tem princípio, nem fim; e isto é ser eterno. O desejo ainda teve melhor pintor, que é a natureza. Todos os que desejam, se o afecto rompeu o silêncio e do coração passou à boca, o que pronunciaram naturalmente é O.

Cesso de ver. Os espíritos desmoronam-se e eu regresso às minhas trevas. A música dos atabaques conduz-me, porém, para longe da angústia. Alguém pede licença para se sentar ao meu lado. Conheço-o pelo aroma, conheço-o quando lhe sinto a sua coxa encostada à minha, já o conhecera quando a sua voz me diz boa noite, menina Clara. Emanuel. Sussurra-me que conhece a mãe-de-santo que me abraçou. Mãe Marianinha. Diz-me que ela quer falar comigo. Que ela é, desde há muito tempo, a sua guia espiritual, e está curiosa comigo. Curiosa? E porquê comigo? Emanuel murmura que lhe falou de mim. E que eu não vim à Bahía só atrás da talha dourada e das histórias de outros séculos. Diz-me que há mais coisas debaixo do céu. Respondo-lhe que sim, que falarei com ela. Não aqui, não agora cicía Emanuel. Depois.Noutra hora.Vira-me a palma da mão, põe-me qualquer coisa pegajosa e fria. Diz que é ebo, o alimento do orixá, milho branco cozido só com água, sem temperos. Diz-me que coma, que me vai fazer bem. Como.

(Inês Pedrosa- A Eternidade e o Desejo)

sábado, abril 06, 2013

colorida, vai batendo como a própria vida....


Costa Vicentina. Addiragram
Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...



(Alexandre O'Neill)

domingo, março 31, 2013

No fundo do mar há brancos pavores...

Addiragram. Creta


No fundo do mar há brancos pavores
Onde as plantas são animais
E os animais são flores

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas
Abrem-se rindo conchas redondas.
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho.
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa,
leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

sexta-feira, março 29, 2013

À Memória de Torquato da Luz

Addiragram. O bote.


                        O bote

Não passa de um bote na margem do rio,
pachorrento e sereno,
sem ambições de ser navio
mas também sem traumas de ser pequeno.
E, no entanto, preso e abandonado,
decerto à espera de nos ver voltar,
parece ter mais calado
que algum paquete no alto mar.
Ou não estivesse ancorado
à poesia do lugar.

(Torquato da Luz)


 Um dia o seu blog deixou de publicar. Interroguei-me e escrevi-lhe. E veio a notícia. Estava a lutar com a doença que lhe tinha batido à porta, sem avisar. Todos os dias lá voltava perguntando-me se a tempestade já amainara e, um dia, a poesia voltou a cantar. Do lado de cá alegrei-me e disse para os meus botões: desta vez não será...Voltámos a ler-nos e a "visitar mo-nos" até que há pouco tempo senti que alguma coisa se passava. Fui ao blog, fui ao facebook...Nem sempre nos apetece escrever, dizia para me enganar. Hoje, subitamente, descobri o que não queria ver. Torquato tinha mesmo partido...
Por isso deixo aqui o poema com que, generosamente, um dia ilustrou uma fotografia minha.
Obrigada AMIGO por esta  nossa tão curta viagem.
Fica um beijo e um sorriso. 

sexta-feira, março 22, 2013

E por que não galgar sobre os telhados....

(Foto de Addiragram. O Tejo visto do Aqueduto)
Poema da Memória

 Havia no meu tempo um rio chamado Tejo
que se estendia ao Sol na linha do horizonte.
Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia
exactamente um espelho
porque, do que sabia,
só um espelho com isso se parecia.

De joelhos no banco, o busto inteiriçado,
só tinha olhos para o rio distante,
os olhos do animal embalsamado
mas vivo
na vítrea fixidez dos olhos penetrantes.
Diria o rio que havia no seu tempo
um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte,
onde dois grandes olhos,
grandes e ávidos, fixos e pasmados,
o fitavam sem tréguas nem cansaço.
Eram dois olhos grandes,
olhos de bicho atento
que espera apenas por amor de esperar.

E por que não galgar sobre os telhados,
os telhados vermelhos
das casas baixas com varandas verdes
e nas varandas verdes, sardinheiras?
Ai se fosse o da história que voava
com asas grandes, grandes, flutuantes,
e poisava onde bem lhe apetecia,
e espreitava pelos vidros das janelas
das casas baixas com varandas verdes!
Ai que bom seria!
Espreitar não, que é feio,
mas ir até ao longe e tocar nele,
e nele ver os seus olhos repetidos,
grandes e húmidos, vorazes e inocentes.
Como seria bom!

Descaem-se-me as pálpebras e, com isso,
(tão simples isso)
não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.

António Gedeão, in 'Poemas Póstumos'

quarta-feira, março 20, 2013

Abro mão da primavera...

(Foto de Addiragram. Delfos)
Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.

Pablo Neruda

segunda-feira, março 11, 2013

Para quê...para que servem os poetas em tempo de indigência?



   (foto Addiragram)

Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
Dois séculos corridos sobre a hora
Em que foi escrita esta meia linha,
Não a hora do anjo, não: a hora
Em que o luar, no monte emudecido,
Fulgurou tão desesperadamente
Que uma antiga substância, essa beleza
Que podia tocar-se num recesso
Da poeirenta estrada, no terror
Das cadelas nocturnas, na contínua
Perturbação, morada da alegria;»

Hélia Correia (in Terceira Miséria)


sábado, março 09, 2013

Não consegue lembrar de quando começou....

    (Edvard Munch)

A Dor-tem um elemento de vazio-
Não consegue lembrar
De quando começou-ou se houve
Um tempo em que não existiu-

Não tem Futuro-para lá de si própria-
O seu Infinito contém
O seu Passado-iluminado para aperceber
Novas Épocas -de Dor.

Emily Dickinson, in "Poemas e cartas"( tradução de Nuno Júdice)

terça-feira, janeiro 01, 2013

Pode ser uma casa ou uma rede...das que têm malhas largas...


A minha saudade tem o mar aprisionado
na sua teia de datas e lugares.
É uma matéria vibrátil e nostálgica
que não consigo tocar sem receio,
porque queima os dedos,
porque fere os lábios,
porque dilacera os olhos.
E não me venham dizer que é inocente,
passiva e benigna porque não posso acreditar.
A minha saudade tem mulheres
agarradas ao pescoço dos que partem,
crianças a brincarem nos passeios,
amantes ocultando-se nas sebes,
soldados execrando guerras.
Pode ser uma casa ou uma rede
das que não prendem pássaros nem peixes,
das que têm malhas largas
para deixar passar o vento e a pressa
das ondas no corpo da areia.
Seria hipócrita se dissesse
que esta saudade não me vem à boca
com o sabor a fogo das coisas incumpridas.
Imagino-a distante e extinta, e contudo
cresce em mim como um distúrbio da paixão.


José Jorge Letria, in "A Metade Iluminada e Outros Poemas"