Naquela tarde de brumas e chuva míuda, Clara Barceló roubou-me o coração, a respiração e o sono. Ao abrigo da luz enfeitiçada do Ateneo, as suas mãos escreveram na minha pele uma maldição que havia de me perseguir durante anos. Enquanto eu a contemplava arrebatado, a sobrinha do livreiro explicou-me a sua história e como ela tinha tropeçado, também por casualidade, nas páginas de Julián Carax. O seu pai, advogado de prestígio ligado ao gabinete do presidente Companys, tinha tido a clarividência de mandar filha e mulher para casa da irmã do outro lado da fronteira no início da guerra civil. Não faltou quem opinasse que aquilo era um exagero, que em Barcelona não ia acontecer nada e que em Espanha, berço e pináculo da civilização cristã, a barbárie era coisa dos anarquistas, e estes, de bicicleta e com remendos nas peúgas, não podiam ir muito longe. Os povos nunca se vêem ao espelho, dizia sempre o pai de Clara, e muito menos com uma guerra à frente do nariz. O advogado era um bom leitor da história e sabia que o futuro se lia nas ruas, nas fábricas e nos quarteis com mais clareza do que na imprensa da manhã. Durante meses escreveu-lhes todas as semanas. Ao princípio fazia-o do escritório da Rua Diputación, mais tarde sem remetente e, finalmente, ás escondidas, de uma cela no castelo de Montjuic onde, como tantos, ninguém o viu entrar e de onde nunca voltou a sair. (cont.)
(Carlos Ruiz Zafón- A Sombra do Vento)
(Carlos Ruiz Zafón- A Sombra do Vento)
Creio que deste livro a citação seria integral! Um dos melhores que li vai para 3 anos.
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