segunda-feira, maio 31, 2010

Quando Maio se despede...

                                 (Aguarelas de Turner)

Quando Maio se despede e as ruas de Lisboa
ainda se vestem de flores de jacarandá,
o ar exala um cheiro que já não há
em mais qualquer lugar e me atordoa.
É um aroma doce que embebeda
cedo pela manhã e não sossega
já noite dentro, até de madrugada.
Um odor que me parece querer dizer
que, enquanto ele durar, não tenho nada
que deva temer.


(Torquato da Luz) 


Atrevo-me a dizer que se Torquato da Luz é um  poeta do Amor, é também um dos  poetas da cidade de Lisboa. E  se  Lisboa tem as cores todas da vida, tem uma, inesquecível, o belo lilás perfumado  do Jacarandá. 
Dias há, em que  as cores, os aromas e os poetas são, por demais, necessários. Eles fazem-nos crer que a réstia de luz, que tudo atravessa,  tem uma força imensa.
Como não me foi possível estar no lançamento do novo livro de T.L.- "Espelho íntimo", deixo aqui esta pequena nota de amizade.

sábado, maio 29, 2010

e não soubemos ir até ao fundo da verdura...

  
                              (Aguarelas de Turner)

A mão no arado

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.


(Rui Belo)

terça-feira, maio 25, 2010

Poisei na margem desta folha uma candeia...

Uma candeia

Poisei na margem desta folha uma candeia, para que se tornassem mais claras as palavras deste texto. Uma candeia também ela feita de palavras e que, contrariamente às aparências, não está na margem mas dispersa nas palavras, de tal forma que, se eu falar das praias, por exemplo, o próprio olhar dos leitores torna visíveis os contornos dos banhistas.


(Luís Miguel Nava- O céu sob as entranhas, 1989)

domingo, maio 23, 2010

o cão de colo que me perdoe...

                                       (Lucien Freud)

(...)                                    
é esquecer o que acabou de se fazer

é dar as costas à felicidade e o virar de cara ao
infortúnio

ser razoável é ser medíocre e ser medíocre é pior que
mau

é melhor que bom

e é igual a qualquer coisa

dá-me antes outro murro para retomar os sentidos e
me lembrar que no extremo está a virtude

nos pólos está mais frio e as criaturas são mais brancas

mais pretas

com mais chifres

e mais longe de casa porque abominam o que é
doméstico

o cão de colo que me perdoe mas sou o urso polar
o esquimó fresquinho que o menino não chega a
lamber porque está no fundo da arca para além do rio
mais gelado e do pingo do nariz

chamar-me a mim razoável é chamar ao homem
selvagem e à mulher      mulher dele

chamar-me a mim razoável é chamar a vós também
que levais os ouvidos tapados

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que não há hipótese de mudar isto para melhor

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que não há hipótese de mudar isto para pior

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que estamos a mudar tudo para mais ou menos

exijam o murro em plena face
gritem pelo murro

façam o abaixo-assinado pelo murro

mil milhões de assinaturas pelo murro em plena face

recebamo-lo com um sorriso com menos dentes
e sangue a escorrer livre

e o sangue que nos escoa da boca vai dar cor a isto

vai-vos sujar os casaquinhos imaculados que se
venderão a preços simbólicos nas feiras e por maquias
estratosféricas nas lojas de haute-couture

e      na impossibilidade de encontrar o equilíbrio

o conforto

o quentinho

o meio

encontramos a humanidade que é feita de defeitos

amores impossíveis

rotas ocasionais

céus carregados

searas em chama

florestas virgens

assomos de bravura

loucuras temporárias

e tranquilidades passagueiras


e tu     que levas os dentes partidos só porque alguém
não te quis perfeito     sabes agora a importância  de
saber

tu           que lavas a boca no chafariz na despedida do
incisivo     sabes agora ao que vens

ao que venho

ao que vimos

sabes agora que somos

somos tudo

somos completamente tudo

somos o que sobra do sorriso depois dos dentes se
afogarem pela rapidez do rio

( João Negreiros- A Verdade dói e pode estar errada)

O "Murro" de João Negreiros não mereceria nunca uma incompleta transcrição. Leiam-no até ao fim e depois, voltem a lê-lo uma vez mais. Creio que nunca mais se irão esquecer dele. Tenho quase a certeza.

sábado, maio 22, 2010

ontem disseram-me que eu era razoável...

O murro

ontem disseram-me que eu era razoável e eu parti
todos os dentes a quem me disse tal coisa

é que não aguentei

 porque não insultou  a minha mãezinha e seus hábitos
conjugais como eu estava à espera?

porque não insultou a minha mãezinha afirmando
que todos os homens do globo poderiam ser o meu
paizinho?

porque não me disse que cheirava mal?

porque não me inventou uma corcunda?

porque não aproveitou       conjugando as duas
correntes    e descreveu minha mãezinha como
um ser desprovido de higiene e com protuberâncias
dorsais que rivalizariam com os picos da Europa?

chamar-me a mim razoável?

eu que sou extraordinário de tão ruim

eu que estou nos pólos com os iões

eu que faço tudo para me destacar

violo meninas em plena avenida para depois salvar
o mundo

dou o antídoto aos venenos e o veneno sem antídoto

mato pessoas que idolatro e amo tudo a quem não
gosto


eu que sou magnânimo na intermitência da ruindade

eu     rei dos povos e súbdito dos mendigos

eu sou o contrário do razoável

ninguém me ama com medo de se apaixonar

todos me batem com jeito de açoitar o puro-sangue
que se habituou ao cheiro da glória que não se quer
render á vida para procriar

eu sou o Deus triste que está na lama das estrelas

o imperador de palácios vazios

o vagabundo de séquito interminável

a divindade a quem faltam promessas

o risco sem medo

a justiça sem pecador

vivo para lá da lei na origem dos decretos

chamar-me a mim razoável quando sou limpo
sem razuras

sem razão

chamar coerente a quem inventou a loucura é dar pão
aos patos quando o mar está revolto

dá-me antes um murro em plena face
resvalando a jeito de me partir o nariz para depois
me tratares
com curativos pintados de bonecos de infância que
estava no armário dos medicamentos

ser razoável é pior que mau

é melhor que bom


e é igual a mais ou menos

ser razoável é nem sequer estar

é estar sem querer

é comer sem gosto

é borrar sem cheiro

é morrer sem choro

é cantar sem alma

é estragar  o que está precisamente maduro

(...)

(João Negreiros- A verdade dói e pode estar errada)

Descobri, infelizmente, a poesia de João Negreiros, há pouco mais de duas semanas. Infelizmente, porque cada dia que passa de desconhecimento relativamente a uma obra que se impõe, que "rasga" o espantoso universo poético que temos, para aí encontrar poiso, é um dia perdido. Hoje não poderia deixar de alertar os que aqui vêem para este poema-grito do qual deixo apenas uma amostra. Procurem-no, leiam-no, descubram-no, como eu estou a fazer. E desculpem os leitores e o poeta, por ter deixado, irrazoavelmente este grande "murro" por transcrever na íntegra. João Negreiros está de parabéns!

sexta-feira, maio 21, 2010

o ar é mais doce....

Intervalo

o ar é mais doce nos intervalos da água
mas para o peixe a água é mais doce nos  intervalos
                                                                    (do ar
mas para o peixe de água doce a água é mais doce nos
                                                   ( intervalos do mar

 (João Negreiros- a verdade dói e pode estar errada)

quarta-feira, maio 19, 2010

Schubert na voz de Nana Mouskouri

domingo, maio 16, 2010

Sentir como quem olha, pensar como quem anda....

                                                     
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe o paladar,
E se a terra fosse uma cousa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade como a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

(Alberto Caeiro -  O Guardador de Rebanhos XXI)

sábado, maio 15, 2010

o tempo guarda cápsulas indestrutíveis...

                              (Noronha da Costa)
eu respondi que o tempo não é linear. preparem-se os sofredores do mundo, o tempo não é linear. o tempo vicia-se em ciclos que obedecem a lógicas distintas e que se vão sucedendo uns aos outros repondo o sofredor, e qualquer outro indivíduo, novamente num certo ponto de partida. é fácil de entender, quando queremos que o tempo nos faça fugir alguma coisa, de um acontecimento, inicialmente contamos os dias, às vezes até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses e depois os didácticos anos. mas para chegarmos aí temos de sentir o tempo também de outro modo. perdemos alguém, e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos os nossos aniversários, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas molha tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião, as notícias sobre o brasil, enfim, tudo. e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós, o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fizemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez, as janelas qu abrimos. a sopa que preparamos para comermos, um livro que se lê no absoluto silêncio, o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamene porque nessa cápsula se injecta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas resurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome ou, mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões do mundo.

(valter hugo mãe- a máquina de fazer espanhóis)

quinta-feira, maio 13, 2010

Os amigos podem-se servir à vontade...


A "idade da razão" está à porta... Hoje, porém, tenho ainda aquela dose de fantasia e de pequena loucura que me faz brincar e sonhar...Venham daí festejar...

quarta-feira, maio 12, 2010

talvez voasse uma andorinha...

                                 (Aguarelas de Turner)


                            Se ele pudesse dizer
                            essa palavra
                            que nunca disse
                            beiral

                           talvez voasse uma andorinha
                           e ao fundo
                           houvesse um monte
                           tranquilamente um monte

(António Ramos Rosa- A intacta ferida, 1991)

terça-feira, maio 11, 2010

Notas Soltas de Viagem- Praça Navona

                             (Aguarelas de Turner)
                             (Aguarelas de Turner)
                              (Aguarelas de Turner)

Deixo para trás o Vaticano e a as suas grandiosas colecções, para me despedir de Roma na Praça Navona. O Sol e a temperatura primaveril inundavam toda a praça. Todos os seus visitantes saboreavam num non fare  niente  os diferentes recantos da Praça. A esplanada era tentadora e tinha chegado a hora do almoço...

domingo, maio 09, 2010

Notas Soltas de Viagem- Os Museus do Vaticano

                                         (Aguarelas de Turner)
                                     (Aguarelas de Turner)
                               (Aguarelas de Turner)

A caminho da Capela Sistina, deixei-me tomar de encanto pela Sala dos Animais. Trata-se de uma colecção vastíssima, dominada por muitas peças onde  a luta entre animais de espécies  e força diferentes se destaca- provável metáfora da necessidade dos homens justificarem o seu desejo de domínio. Foi contudo nas esculturas onde a ternura e a singeleza são uma nota dominante que mais gostei de fixar o meu olhar.

sábado, maio 08, 2010

Notas Soltas de Viagem- Os Museus do Vaticano

                               (Aguarelas de Turner)
                            
                                (Aguarelas de Turner)
                              (Aguarelas de Turner)

As coincidências nem sempre comportam escolhas inconscientes...O facto de vos levar até aos museus do Vaticano, agora, quer apenas dizer que esta foi a parte final da viagem a Itália. Qual quer semelhança com a actual realidade será pura coincidência...
Vou então descer pela famosa escada de dupla hélice e  tentarei  cruzar-me  com aqueles amigos que chegaram atrasados e vão, só agora, entrar no museu. Lembro-me agora que tenho comigo o guia que eles já não tiveram tempo de comprar...Se o conseguisse entregar-lhes  em mãos era capaz de lhes dar muito jeito...Vou dar uma corrida...
Olha lá vão eles...vou tentar apanhá-los...
 Descubro agora que à medida que julgo aproximar-me me afasto mais e mais...
Este arquitecto pregou-nos  mesmo uma genial partida. 
Vão mesmo ter de fazer a visita sem o meu guia...

quarta-feira, maio 05, 2010

Notas Soltas de Viagem- Pompeia


                                                   (Aguarelas de Turner)
                              (Aguarelas de Turner)

                                            (Aguarelas de Turner)

Percorrer Pompeia é  o revisitar não só de um Tempo que se presentifica, como descobrir as transformações que ele mesmo operou. Gosto não só de imaginar o que está ausente,   como usar, também, o presente transformado para pesquisar simetrias e relações das partes com o todo. Há aqui sempre uma busca de complementaridade.

domingo, maio 02, 2010

Notas Soltas de Viagem- Pompeia

                              
                                                       (Aguarelas de Turner)
                                                       (Aguarelas de Turner)
                                            (Aguarelas de Turner)
 Ao chegar a Pompeia, que nunca visitara, vivi um misto de sentimentos contraditórios. O fascínio por poder descobrir uma quase "intacta" cidade romana, de poder percorrer o seu empedrado largo, os seus passeios estreitos e altos, de "adivinhar" a diversidade de gentes e a vida intensa que fervilharia por todas aquelas ruas, de observar  a beleza dos espaços, trouxe-me a sensação de quase poder "tocar" aquele ano de 67...afinal não tão distante assim dos nossos dias . O outro lado que nunca consegui deixar de ter presente foi o drama que ali ocorreu e que ainda se encontra "vivo" e "escrito" por todos aqueles recantos e lugares. Olhando o silencioso Vesúvio, e a nova Pompeia que por ali se reinstalou, tive a certeza que tudo vai voltar a acontecer. Impossível não questionar também esta teimosia humana.
 

sábado, maio 01, 2010

Notas Soltas de Viagem- Florença

                               ( Aguarelas de Turner)

                              (Aguarelas de Turner)

 Neste dia "madruguei" e, pelas nove da manhã já me encontrava por estas paragens, na esperança de poder aproximar-me do Duomo sem me "diluir" nas multidões de turistas. Deu resultado e durante a hora de espera para poder entrar pude procurar, com alguma liberdade, os diferentes ângulos que me "chamaram". O belo Campanile, desenhado por Giotto , merece uma longa observação em pormenor.