sábado, dezembro 22, 2012

Este Mar que levou na ressaca...

http://pam-patrimonioartesemuseus.com/m/photo/large?id=5497686%3APhoto%3A82943

O Mar. O mar novamente à minha porta.
Vi-o pela primeira vez nos olhos
da minha mãe, onda após onda,
perfeito e calmo, depois,

contra as falésias, já sem bridas.
Com ele nos braços, quanta,
quanta noite dormira,
ou ficara acordado ouvindo

seu coração de vidro bater no escuro,
até a estrela do pastor
atravessar a noite talhada a pique
sobre o meu peito.

Este mar, que de tão longe me chama,
que levou na ressaca, além dos meus navios?

(Eugénio de Andrade- Branco no Branco)

quinta-feira, dezembro 20, 2012

Natal de 2012


 Esta árvore foi encontrada acidentalmente numa missão abandonada e semi-destruida pela guerra e pelo abandono dos homens - MISSÃO DE BOROMA- perto de Tete. Achei-a como quem acha um tesouro. Olhei-a e, ainda hoje a olho, como símbolo da vitória da vida sobre a morte. É esta, pois, a Árvore de Natal que trago para todos. Mais do que nunca, a publicação desta fotografia, é para mim completamente oportuna. 
Somos hoje um pouco esta árvore, mas seremos também capazes de não nos deixarmos esmagar pela tirania económica e social que sobre nós se abateu.
 Deixem aqui as vossas mensagens  que tentarei dispor nos seus ramos mais delicados.

 Um Natal caloroso para todos os amigos que por aqui vão passando...


terça-feira, dezembro 04, 2012

Por isso a cada vulto os sentidos reagem...


                                 (Aivazovsky)


INSCRIÇÃO SOBRE AS ONDAS

Mal fora iniciada a secreta viagem
um deus me segredou que eu não iria só.

Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que deus me segredou.
 
 
 (David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem")


sábado, dezembro 01, 2012

Invoca o fogo, a claridade, a música...

  (Bourguereau)

                                  Faz uma chave, mesmo pequena,
                       entra na casa.
                       Consente na doçura, tem dó
                       da matéria dos sonhos e das aves.

                       Invoca o fogo, a claridade, a música
                       dos flancos.
                       Não digas pedra, diz janela.
                       Não sejas como a sombra.

                       Diz homem, diz criança, diz estrela.
                       Repete as sílabas
                       onde a luz é feliz e se demora.

                      Volta a dizer: homem, mulher, criança.
                      Onde a beleza é mais nova.

(Eugénio de Andrade- Branco no Branco)
Happy Glassday

segunda-feira, novembro 26, 2012

Por amor talvez espreitasse de novo nas mangas do mundo....




As palavras começam a ficar velhas: têm
dores nas articulações e rangem, de vez
em quando, sem razão; reclamam óleos
e resinas, tempo e açúcares mais lentos.

Mas também eu estou velha demais para
oficinas, tão cansada de livros e papéis,
morta por viver outras coisas – por amor,

talvez espreitasse de novo nas mangas do
mundo e escrevesse uma fiada de búzios
no pulso da areia. Mas quantos dos teus
beijos perderia? Perdoem-me os que

ainda esperam por mim. Não sei se volto.

Maria do Rosário Pedreira -[in Poesia Reunida, Quetzal, 2012]

domingo, novembro 18, 2012

Um homem tão grande tem tudo o que quer...



Filipe II tinha um colar de oiro
tinha um colar de oiro com pedras
rubis.
Cingia a cintura com cinto de coiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz.


Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.


Andava nas salas
forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.



Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.
Na mesa do canto
vermelho damasco
a tíbia de um santo
guardada num frasco.


Foi dono da terra,
foi senhor do mundo,
nada lhe faltava,
Filipe Segundo.


Tinha oiro e prata,
pedras nunca vistas,
safira, topázios,
rubis, ametistas.


Tinha tudo, tudo
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.


Um homem tão grande
tem tudo o que quer.


O que ele não tinha
era um fecho éclair.


(António Gedeão)

sábado, outubro 13, 2012

O que é preciso é gente...

     (Aguarelas de Turner) Maria do Céu Guerra- Praça de Espanha


O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que não seja decente

nem docente
nem docemente


nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unha e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer
ser dominada por gente

NENHUMA!

A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"

quinta-feira, outubro 04, 2012

Só quero um sítio onde poisar a cabeça...

   (Millet)
Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.


(Manuel António Pina)

segunda-feira, setembro 03, 2012

Este o nosso destino: amor sem conta...



               Brassai
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.


(Carlos Drummond de Andrade)

domingo, agosto 26, 2012

Foi em Florença que descobri...

 

   ("Aguarelas de Turner"- Florença. 2010)
" Foi em Florença, portanto, que descobri que ela ultrapassara todas as minhas esperanças.
A fonte inesgotável da minha- como dizer?- nova paixão por ela foi, evidentemente o calor. Ela dizia:« Eu gosto do calor.» Ou : « interesso-me por tudo que esqueço o calor.» Descobri que não era verdade, que era impossível um ser humano apreciar aquele calor, que se tratava da sua mentira de sempre, a mentira optimista, que as coisas só a interessavam porque assim decidira e por ter banido da sua vida essas liberdades que tornam o humor perigosamente variável. Que se ela um dia duvidasse de que o calor era, de facto, bom, acabaria por duvidar do resto, por exemplo, das esperanças depositadas em mim serem tão fundamentadas quanto era o seu desejo. Que não sofria pelo facto de duvidar do que quer que fosse neste mundo, para além da dúvida que considerava "criminosa". Por muito pequenas que fossem, que pudessem parecer, descobri por fim, eu, o campeão da mentira, que as suas mentiras eram muito diferentes das minhas.
- Até mesmo os peixes morrem com este calor-dizia-lhe eu.
Ela ria-se. Eu nunca insistia, evidentemente. Descobri ainda que se mantivera sempre mais estranha para mim durante todo o tempo em que viveramos juntos do que, por exemplo, os peixes francamente mortos do Arno que empestavam na realidade o ar da cidade. Ela nunca foi vê-los. Afirmava não sentir o seu espantoso fedor canicular. Eu então aspirava o seu perfume como se fosse um ramo de rosas. Descobri que nem mesmo quanto ao estado do tempo estivéramos de acordo. "

( Marguerite Duras- O marinheiro de Gibraltar)

sábado, agosto 25, 2012

Continuam as noites e os poentes...




 (Addiragram)
 
Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.



(Sophia de Mello Breyner Andresen)
 

sábado, agosto 18, 2012

Chegamos, não chegamos?

                                     (Kroyer)                             
                                  
Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos, não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos?
Partimos. Vamos. Somos. 

                                (Sebastião da Gama)


terça-feira, julho 24, 2012

Assim tecem e bordam as mulheres....




                                 Há os que passam o tempo
                                 desenrolando sobre a mesa
                                 tapetes de paciências.

                                Assim Tolstoi
                                de noite se aquietava
                                após as suas homéricas
                                batalhas contra o invasor.

                                Assim calma e dignamente
                                tecem e bordam as mulheres.

                            
                       António Osório ( A raíz afectuosa, 1972)

quarta-feira, julho 04, 2012

Mas sobem-me a cotação da metáfora...

Emprestem-me as palavras do poema; ou dêem-me
sílabas ao desbarato, para que as ponha a render
no mercado. Mas sobem-me a cotação da metáfora,
para que me limite a imagens simples, as mais
baratas, as que ninguém quer: uma flor? Um perfume
do campo? Aquelas ondas que rebetam, umas
atrás das outras, sem pedir juros a quem as vê?


É que as palavras estão caras. Folheio dicionários
em busca de palavras pequenas, as que custem
menos a pagar, para que não exijam reembolsos
se as meter, de gorjeta, no fim do verso. O
problema é que as rimas me irão custar o dobro,
e por muito que corra os mercados o que me
propõem está acima das minhas posses, sem recobro.


E quando me vierem pedir o que tenho de pagar,
a quantos por cento o terei de dar? Abro a carteira,
esvazio os bolsos, vou às contas, e tudo vazio: símbolos, 
a zero; alegorias, esgotadas; metáforas, nem uma.
A quem recorrer? Que fundo de emergência poética
me irá salvar? Então, no fim, resta-me uma sílaba- o ar-
ao menos com ela ninguém me impedirá de respirar.


(Nuno Júdice- Fórmulas de uma luz inexplicável)

(ilustração de Claudio Dagna)

sábado, junho 30, 2012

Fizeste com que eu...desse pelo toque de vésperas...

    (Millet)

Os sinos tocaram como se os sinos 
ainda tocassem para anunciar as matinas
e vésperas. Quem os ouve já não ouve sequer
os sinos tocarem, e perdeu a memória do tempo
em que os sinos tocavam, e o tempo dos homens 
era conduzido pelo  toque dos sinos
que já ninguém ouve, atravessaste a rua e
fizeste com que eu, sem ouvir os sinos,
desse pelo toque de vésperas que soou
na minha cabeça, e me fez esperar que
as pessoas, ao longo da rua, parassem como
os lavradores do quadro de millet. E a rua
transformou-se num imenso campo; as searas
ocuparam o alcatrão; e os prédios foram como 
as colinas verdejantes do fundo. Então,
voltaste-te para mim, do outro lado da rua, quando
os sinos deixaram de tocar, e
eu esqueci-me do tempo em que
o tempo era contado pelos sinos para
continuar o meu caminho, levando comigo
a tua imagem de camponesa no angelus
de millet.


(Nuno Júdice- Fórmulas de uma luz inexplicável)

sábado, junho 09, 2012

Troquei as sombras por um sol lavado...

    (Aguarelas de Turner)

ARTE POÉTICA

Surdo às palavras dos poetas fáceis.
Cego às imagens e ao mistério inútil.
Troquei as sombras por um sol lavado,
enjôo as cores da beleza fútil.

Poesia é - se a crio - a do real.
(Real o sonho, e sonho o descobri-lo.)
Prefiro este sabor de o tatear
às horas podres gastas a iludi-lo.

Sei pelo esforço o que a magia ignora.
Tenho asas tão leves nos sentidos
como as que nuvens de evasão vagueiam
por espaços só delas pressentidos.

Encontro em cada coisa o que é comum.
Reparto cada instante mais pequeno
da intimidade oculta dos meus gestos.
Sereno escrevo e a vós me dou sereno.

Sais o eco e o som da minha voz.
Amais a claridade e eu sou claro.
Dispo-me inteiro se preciso for
e no que é simples é que busco o raro.

 (José Augusto Seabra)

quarta-feira, junho 06, 2012

Vai-me a essas rimas.....e torce-lhes o pescoço



 (Miró)
                

    Bom e expressivo          
                                                 
Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito.


Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,

tal como o outro pedia

se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: — Não é poesia!,

diz-lhe que não, que não é,

que é topada, lixa três,
serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pe-

dra que rola na pedra...

Mas também da rima «em cheio»
poderás tirar partido,
que a regra é não haver regra,

a não ser a de cada um,

com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo...

Alexandre O'Neill, in 'De Ombro na Ombreira'

segunda-feira, maio 28, 2012

Adeus Amelia...Fica a tua luz...


Infelizmente conheci Amélia Pais já tarde. Esse privilégio foi dado pelo tempo dos blogs. "Aguarelas de Turner" era uma criança recém-nascida quando foi visitado ou lhe desaguou no cais "Ao longe barcos de flores".
Nascia assim um conhecimento que se fazia através das escolhas que cada uma de nós fazia. Eu, uma simples amante da poesia, ela, uma Senhora que tratava por tu as letras, com uma escolha de textos e poemas, onde se misturavam sensibilidade e saber. 
A pouco e pouco a simpatia entre nós foi crescendo e dela decorreram alguns contactos mais pessoais. Através do seu blog fui podendo sentir como amou e continuava a amar o ensino no verdadeiro sentido da palavra, isto é, pelas sementes que pode deixar às gerações que por ela passaram. Amélia Pais fazia-me lembrar a minha professora de português dos anos sessenta não só pela estatura física como também pela estatura ética. Cheguei a dizer-lhe isto  não exactamente por estas palavras.
E como todas as pessoas que gostamos pensamos que as teremos sempre ao nosso lado.
 Ultimamente este meu lugar de poesia tem andado um tanto ou quanto descurado, mas não faz ainda muito tempo que Amélia me disse como continuava a gostar de vir aqui. Li o seu comentário com um sorriso e um brilho nos olhos...Ela estava a dizer-me, pensei eu, que gostaria que este meu  barquito continuasse a navegar. Disse-lhe (sem lhe dizer) que estava à espera que a maré o ajudasse e que seguramente, apesar de andar um pouco pela borda de água qualquer dia  ele se faria de novo ao mar da poesia. 
Não sei agora como terminar esta nossa  conversa...Talvez recordando o seu último comentário ao texto-poema de José Luís Peixoto : "e eu aqui a lembrar-me da Valsinha

Adeus Amelia, até  sempre...Fica a tua luz.


quarta-feira, maio 23, 2012

O enigma da poesia...

 
    (Édipo e a esfinge)
A poesia é expressão de origens. Solicitado pela noite animal e a plenitude solar, um poeta talhou na rocha uma forma visível da sua condição. Compreender a Esfinge, compreender a poesia é olhá-la sem a tentação de lhe perguntar nada. E aceitar o núcleo de silêncio donde todas as formas se destacam. A obra vale pela densidade de silêncio que nos impõe. Por isso os poetas que imaginam dizer tudo são tão vãos como as estátuas gesticulantes.
Agora é fácil compreender como pôde nascer o mistério da esfinge. O enigma da poesia. Ele existe para homens incapazes de acolher esse silêncio original. Gente que não compreende, enquanto não substitui a irredutível figura de uma obra, a ímpar forma de um poema, por uma palavra, por um discurso. Só o criador sabe que no lugar de uma forma não havia outra forma e que o dicionário é impotente para os filólogos quanto mais para os poetas. Mas há os outros, os arqueólogos do coração e da inteligência, ‘outros’ que podem ser os próprios poetas quando deixam de estar vigilantes. Assim aconteceu ao criador da Esfinge (daquilo a que os ‘outros’ chamariam Esfinge).
É humano sentir-se cansado ao fim duma obra. O nosso poeta cansou-se e adormeceu entre as patas poderosas da sua criatura. Durante a noite o vento do deserto (e todos os criadores serão conduzidos ao deserto em certas horas, como o Cristo) arrastou a areia e cobriu com ela as raízes da criatura e o seu criador».

 In Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Gradiva, Lisboa, 2003.

sábado, maio 19, 2012

Que tristes os caminhos, se não fora...



    (Henrique Pousão)

Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não querê-las.
Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!

Mário Quintana 

terça-feira, maio 15, 2012

Onde pousas as tuas mãos...

   (Picasso)
 
Onde tu pousas as mãos, 
naturalmente 
eu vou pousar as minhas. Um silêncio
faz-se pela casa, uma luz coada vem da janela
e cobre os móveis de uma poalha 
doirada. Os objectos estão quietos 
como nunca. 

Onde tu pousas as mãos,
onde tu pousas mesmo se brevemente as mãos,
torna-se íntima a percepção que se tem de cada hora, 
de cada amanhecer, 
de cada exacto momento. O entardecer
é só um vasto campo que se abre,
um rumor de folhas que restolham no jardim.

Escrever é ler,
ler é escrever - eu sei isso
porque em cada sítio onde [do meu corpo] tu pousaste as tuas mãos
ficou escrito - eu vejo-o:  nítido - 
sobre o mais frágil espelho dos sentidos, uma palavra que se lê 
de trás para diante. Quando te deitas eu sinto-lhe o perfume, 
que é o da noite que entra pela janela.

E onde tu pousas as tuas mãos faz-se um rio
de prata e de quietude mesmo nas minhas mãos 
que pousam onde as tuas foram antes procurar
a quietude, procurar as tuas mãos. São exactas as tuas mãos,
são necessárias, têm dedos
que são os filamentos de gestos que descrevem na penumbra
desenhos tão perfeitos que surpreendem.

Onde tu 
pousares as tuas mãos
eu quero estar.
Exactamente como a sombra 
cai na sombra. A água
na água. O pão  
nas mãos.

(Bernardo Pinto de Almeida)



domingo, maio 13, 2012

Sete anos...

                                 

Cortar o tempo

Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,

a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.

Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.


Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.

Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente



Carlos Drumond de Andrade

sexta-feira, maio 11, 2012

Escutemos em silêncio...

segunda-feira, maio 07, 2012

A felicidade aparece para aqueles que choram...



     (Bouguereau)


O sonho

Sonhe com aquilo que você quer ser,

porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.

Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

As pessoas mais felizes não tem as melhores coisas.

Elas sabem fazer o melhor das oportunidades
que aparecem em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.

Para aqueles que se machucam
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passaram por suas vidas.



Clarice Lispector

domingo, maio 06, 2012

Maternidade...

                      (Picasso)

sábado, maio 05, 2012

O mundo parou...

O Primeiro Beijo

  Durante todas as noites desse verão, as estrelas foram líquidas no céu. Quando eu as olhava, eram pontos líquidos de brilho no céu. Na primeira vez, encontrámo-nos durante o dia: eu sorri-lhe, ela sorriu-me. Dissemos duas ou três palavras e contivemo-nos dentro dos nossos corpos. Os olhos dela, por um instante, foram um abismo onde fiquei envolto por leveza luminosa, onde caía como se flutuasse: cair através do céu dentro de um sonho.

Naquela noite, fiquei a esperá-la, encostado ao muro, alguns metros depois da entrada da pensão. As pessoas que passavam eram alegres. Eu pensava em qualquer coisa que me fazia sentir maior por dentro, como a noite. As folhas de hera que cobriam o cimo do muro, e que se suspendiam sobre o passeio, eram uma única forma nocturna, feita apenas de sombras. Primeiro, senti as folhas de hera a serem remexidas; depois, vi os braços dela a agarrarem-se ao muro; depois, o rosto dela parado de encontro ao céu claro da noite. E faltou uma batida ao coração.

O mundo parou. Sombras pousavam-lhe, transparentes, na pele do rosto. O ar fresco, arrefecido, moldava-lhe a pele do rosto. E o mundo continuou. Ajudei-a a descer. Corremos pelo passeio de mãos dadas. A minha mão a envolver a mão fina dela: a força dos seus dedos dentro dos meus. Na noite,os nossos corpos a correrem lado a lado. Quando parámos: as nossas respirações, os nossos rostos admirados um com o outro: olhámo-nos como se nos estivéssemos a ver para sempre. Quando os meus lábios se aproximaram devagar dos lábios dela e nos beijámos, havia reflexos de brilho, como pó lançado ao ar, a caírem pela noite que nos cobria.

José Luís Peixoto, in 'Cemitério de Pianos'

terça-feira, maio 01, 2012

Como se a fome alheia não fosse fome de comer...

    (Júlio Pomar)                                                                  
porco trágico I

conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.

a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito de si
e pouco ou nada dos outros.

o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também. 
(Alberto Pimenta)

domingo, abril 29, 2012

Carta ao meu filho que faz hoje 20 anos


    (foto de Ana Guedes)

Carta ao meu filho que faz hoje 20 anos

Ainda envolta na nuvem da longa anestesia perguntei à voz que no meu canto superior esquerdo balbuciava algumas palavras que logo me pareceram"impossíveis".
-ele é bonito?
Sossegaram-me com sorrisos afirmativos  de circunstância, mas, de imediato descobri como iria ser longa a espera para nosso encontro.
Vi-te em fotografia ainda nesse dia. O teu pai e a tua irmã apressaram-se a
mover céus e terras junto do fotógrafo para conseguir "trazer-te" na visita da tarde. Foi assim que te "vi" pela primeira vez, acompanhando os relatos detalhados de tudo o que se passava.Eras quase o bebé mais lindo que já alguma vez vira e os meus olhos mergulhavam dentro da fotografia na esperança de o tempo poder ser acelarado.
Ao 3º dia, depois daquela peripatética viagem em cadeira de rodas, lá nos pudemos finalmente tocar. Eu, muito a medo, já que aquela cabina complexa, fazia-me temer mexer em algum sítio vital. Uma festinha ao de leve, primeiro no braçinho, depois na cabeça, de novo no braçinho...para finalmente te tirarem da câmpanula para te colocarem no meu cólo. Saberia eu pegar-te, envolvido que estavas naquele emaranhado complexo? Se aquele primeiro instante nunca poderia corresponder ao sonho que longos meses me acompanhara, foi, todavia, inesquecível. A memória desses instantes gravou-se totalmente no meu corpo. Sabes, são aquelas memórias que nunca nos deixam e que se constituem como alicerces da nossa vida. Nunca deixes de as querer "recolher". Só nas experiências emocionais e com elas, conseguimos constituir a nossa "biblioteca para a vida", aquela que nos momentos conturbados faz as vezes dos carinhos dos nossos pais.Guarda-as sempre no teu cofre mais seguro.
Mas a nossa vez não tinha chegado ainda naquele dia. Deves ter dito de ti para ti: a minha mãe quase se parece como estes doutores, mal chega vai-se logo embora. Será que isto vai ser sempre assim?
Chegou finalmente o sábado. E foi tudo de repente. A enfermeira ,lesta e insensível, aproximou-se da cama e disse-me: se quiser ver o seu bebé vista-se e venha ao berçário! Acredita que não sabia! Fui numa atrapalhação, depois de percorrer um longo e difícil corredor. Chegada, olho-te no colo da enfermeira que te pegava. Foi um instante! Quando nos olhámos reconhecemo-nos como velhos conhecidos.Tudo a partir daí me pareceu mais fácil. Finalmente  podias descer  do ramo da árvore para a concha dos meus braços e encontrar enfim o teu lugar.
Façamos agora um salto de gigante no tempo. Hoje no teu metro e oitenta e muitos, lutas cada dia contra os teus obstáculos. Por vezes apetece-te dizer à maneira do Paul Nizan: Eu tenho 20 anos. Não consentirei que ninguém diga que é a idade mais bela da vida ...
  É que a descoberta de que a concha tecida à tua volta progressivamente tem de dar lugar às tuas próprias construções é uma descoberta inevitavelmente difícil.Pensa-se sempre que, sem rede, nunca se conseguirá largar. Quer-se construir o mundo com uma determinação ainda oscilante, que ora sonha "o caminho marítimo", ora espera que a vida venha desaguar na praia.      
 Todos sabemos que os actuais horizontes fazem, muitas vezes, temer o sucesso da viagem. Os escolhos são muitos e aos teus olhos eles podem ter a dimensão de uma montanha atribulada.Lembra-te contudo que os dois vencemos à partida a batalha mais importante- a batalha pela vida e pelo amor à vida.
Nada a partir daqui será verdadeiramente complicado, já que de então até cá, pudeste guardar já no teu cofre muitos e muitos momentos que te acompanham.  
Um grande beijo de Parabéns, querido filho.
   
Esta foi a carta que escrevi nos teus 18 anos.Nada de novo tem para ti. A sua republicação é o meu sinal de que tudo o que lá está é a nossa história linda. Obrigada Filho por tudo o que me tens dado.




sábado, abril 28, 2012

Os meus sonhos de viagens...



Chegar tão longe, «ser tão bem-sucedido», parecia-me fora de todas as possibilidades. Este sentimento estava ligado à estreiteza e à pobreza das nossas condições de vida durante a minha juventude. E certamente os meus sonhos de viagens expressavam também o desejo de escapar à atmosfera familiar, esse mesmo desejo que impulsiona as fugas de tantos adolescentes. Tinha descoberto há muito tempo que uma boa parte da minha vontade de viajar se ligava ao desejo assim de uma vida livre ou, por outras palavras, ao descontentamento que experimentava no seio da minha família. Quando vemos o mar pela primeira vez, atravessamos oceanos e contemplamos  cidades e paisagens reais com que sonhámos durante muito tempo como se fossem coisas longínquas e inacessíveis, fazemos perante nós próprios a figura de um herói que consuma proezas incríveis.

(Freud- correspondência-1936)

quarta-feira, abril 25, 2012

COLORIR ABRIL



Naquela estremunhada manhã acordou-se cedo. Um telefonema de uma conhecida distante atravessou o sono e do lado de lá perguntou o que acontecera do lado de cá do rio. Uma sua amiga viera do Barreiro no primeiro barco da manhã e ao chegar ao Terreiro de Paço só vislumbrara chaimites. 
Foi assim que o 25 de Abril bateu à minha porta. Ligar de seguida o rádio, descobrir os comunicados emitidos  do Estado Maior das Forças Armadas, intercalados com Grândola e demais canções, deixou-nos mergulhados por momentos num sentimento de irrealidade. Os sinais que vinham até nós eram de facto A mudança que tanto sonháramos ? Não haveria o perigo de os olharmos como quem olha uma miragem na areia do deserto que se desfaz no preciso momento em que nos aproximamos ?
Aos poucos fomo-nos dando conta que a música permanecia a par dos avisos à população para evitar sair de casa. O desejo de sair, de ir "cheirar o ar" impôs-se mais e mais.
Nesses tempos a minha primeira morada ficava a poucas centenas de metros do quartel da Legião Portuguesa. Saí, máquina em punho, e fui ao encontro desses poderosos chaimites que fechavam o acesso ao quartel. Guardo ainda essas fotografias coloridas, que o tempo desbotou, sentindo-as como momentos vivos de memória que nada fará apagar.  
 No alcatrão da Morais Soares as lagartas dos tanques tinham deixado a sua marca.
A "conquista" da cidade ia-se fazendo cautelosamente procurando ler sinais da revolução. A alegria era grande mas contida, sempre temendo que algum retrocesso pudesse acontecer. Os anos de ditadura com a sua polícia política e civil, desmanchando sempre todas as veleidades de mudança fazia-nos  temer o pior.
Mas o dia ia caminhando, as notícias do cerco ao quartel do Carmo eram vividas minuto a minuto através da televisão e, já mais para o fim do dia, sentíamos que podíamos finalmente festejar.
Estávamos todos em festa. Esse grupo de oficiais das Forças Armadas-os Capitães de Abril- traziam-nos, generosamente, a Liberdade.
Restava-nos, tão só, construir novas formas de viver que fizessem jus aos princípios de Abril. Tudo o mais tinha sido feito.
Assim os nossos Capitães não são (ao contrário do que diz a arrogante ignorância) pessoas que querem sobressair. São sim Homens que se deram por causa e que, podem e devem dizer, como Abril está já completamente desbotado.
Vamos colori-lo de novo!

terça-feira, abril 24, 2012

Miguel Portas e Abril

Infelizmente, no momento presente, são raros os políticos que consigo admirar. Lastimo profundamente não conseguir encontrar pessoas que se dediquem à causa pública que sinta que o fazem com amor, com paixão, com o sentido de melhor fazer pela pólis . Miguel Portas, que nunca conheci pessoalmente, era um daqueles em que sempre ouvi falar o coração. A força, a frontalidade e a coragem que colocou em todos os seus combates deixou sempre em mim uma enorme admiração.
O seu desaparecimento na véspera de um aniversário de Abril, tão triste e vilmente apagado, só nos pode deixar a vontade de não fazer morrer as sementes que o Miguel nos deixou.
Obrigada Miguel! Façamos viver Abril!


domingo, abril 22, 2012

Eu fazia-me dança e fazia-me prece...

            (Renoir)
Se eu pudesse fazia-te princesa,
rainha dos gatos, madressilva,
encontro à noite numa auto-estrada,
flor de lótus a nascer do sangue.
Ou então ravina de onde a ave presa
do canto voasse à mais alta ogiva,
tomar por sua a lua incendiada
até que o voo interrompesse exangue.
Se soubesse, ao menos se soubesse,
na tua boca um beijo ir acender,
eu fazia-me dança e fazia-me prece,
ou fazia-me chama, rosa do amanhecer,
príncipe da treva que a razão desconhece.
Se soubesse, fazia-te mulher.



(Bernardo Pinto de Almeida)

sábado, abril 14, 2012

Que um gesto em ser gesto real se meça...

                       

Só nos Pertence o Gesto que Fizemos  


Só nos pertence o gesto que fizemos
não o fazê-lo como, iludida,
a divindade que em nós já trouxemos
supõe errada (e não) por convencida.

Porque o traçado nosso em breve cessa,

para que outro o recomece e não progrida;
que um gesto em ser gesto real se meça,
não está em nós fazê-lo, mas na Vida.

Assim o nada a sagra quando finda

porque o que é, só é o não ainda.


Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'

segunda-feira, abril 09, 2012

E correram, correram as crianças à procura da maçã...

 (Courbet)
 Desejo 


Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.


Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço á boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.


Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.


(Três canções do Epiro)

sábado, março 31, 2012

É o leito da borboleta...

aceita
o vôo é o leito
da borboleta

 (Joca Reiners Terron)


































quarta-feira, março 28, 2012

Leve-me para o fim do sonho...

Na Noite de sete de Março de 1914, Fernando Pessoa, poeta e fingidor, sonhou que acordava. Tomou o café no seu pequeno quarto alugado, fez a barba e vestiu-se com esmero. Enfiou a gabardina, porque lá fora chovia. Quando saiu faltavam vinte minutos para as oito, e ás oito em ponto estava na estação do Rossio, na plataforma do comboio com destino a Santarém. O comboio partiu pontualmente às oito e cinco. Fernando Pessoa tomou lugar num compartimento onde estava sentada uma senhora aparentando cinquenta anos, que lia. Era a sua mãe e não era a sua mãe, e estava imersa na leitura. Fernando Pessoa pôs-se também a ler. Naquele dia tinha de ler duas cartas que lhe tinham chegado da África do Sul e lhe falavam de uma infância longínqua.
Fui como uma erva e não me arrancaram, disse a certo ponto a senhora que aparentava cinquenta anos. A frase agradou a Fernando Pessoa, que a anotou num caderninho. Entretanto, diante deles, passava a paisagem plana do Ribatejo, com arrozais e campinas.
Quando chegaram a Santarém, Fernando Pessoa apanhou uma tipóia. Sabe onde fica uma casa isolada caiada de branco?, perguntou ao cocheiro. O cocheiro era um homenzinho anafado , com um nariz vermelho de álcool. Claro, disse, é a casa do senhor Caeiro, conheço-a bem. E fustigou o cavalo. O cavalo começou a trotar na estrada principal ladeada de palmeiras. Nos campos viam-se palhotas com um ou outro preto à porta.
Mas onde estamos nós ?, perguntou Pessoa ao cocheiro, para onde me leva?
Estamos na África do Sul, respondeu o cocheiro, e estou a levá-lo a casa do senhor Caeiro.
Pessoa tranquilizou-se e apoiou-se às costas do assento. Ah, então estava então na África do Sul, era isso mesmo que eu queria. Cruzou as pernas com satisfação e viu os seus tornozelos nus, dentro de umas calças de marinheiro. Compreendeu que era um rapazinho, o que muito o alegrou. era bom ser um rapazinho que viajava para a África do Sul. Pegou num maço de cigarros e acendeu com volúpia. Ofereceu também um ao cocheiro, que aceitou avidamente.
Caía o crepúsculo quando avistaram uma casa branca que ficava numa colina ponteada de ciprestes. Era uma típica casa ribatejana, comprida e baixa, com as telhas vermelhas com beirais. A tipoia entrou na alameda de ciprestes, o cascalho rangeu debaixo das rodas, um cão ladrou no campo. À porta percebeu subitamente que se tratava da tia-avó de Alberto Caeiro, e erguendo-se em bicos dos pés, beijou-a nas faces. Não me canse muito meu Alberto, disse a velhota, tem uma saúde tão fraca.
Afastou-se para o lado e Pessoa entrou na casa. Era uma sala ampla, mobilada com simplicidade. Havia um fogão de sala, uma pequena estante, um aparador cheio de pratos, um sofá e duas poltronas. Alberto Caeiro estava sentado numa poltrona e tinha a cabeça inclinada para trás. Era o Headmaster Nicholas e o seu professor  da High School.
Não sabia que Caeiro era o senhor, disse Fernando pessoa, e fez um ligeiro cumprimento com a cabeça. Alberto Caeiro fez-lhe um gesto fatigado para entrar. Entre, caro Pessoa, convoquei-o aqui porque queria que soubesse a verdade.
Entretanto  tia-avó chegou com uma bandeja com chá e bolinhos. Caeiro e Pessoa serviram-se e pegaram nas chávenas.
Pessoa lembrou-se de não espetar o dedo mindinho, porque não era elegante.Ajeitou a gola do seu fatinho à marinheiro e acendeu um cigarro. O senhor é o meu mestre, disse.
Caeiro suspirou e depois sorriu. É uma longa história, disse, mas é inútil contar-ta de fio a pavio, você é inteligente e compreenderá mesmo se eu saltar umas passagens. Saiba apenas isto, que eu sou você.
Explique-se melhor, disse Pessoa.
Sou a sua parte mais profunda, disse Caeiro, a sua parte obscura. Por isso sou o seu mestre. 
Um campanário, na aldeia vizinha, deu as horas.
E eu, o que devo fazer?, perguntou Pessoa.
Deve seguir a minha voz, disse Caeiro, ouvir-me-á na vigília e no sonho, às vezes hei-se perturbá-lo, outras não quererá ouvir-me. Mas terá de escutar-me, deverá ter a coragem de escutar esta voz, se quer ser um grande poeta.
Fá-lo-ei, disse Pessoa, prometo-lhe.
Levantou-se e despediu-se. A tipóia esperava-o à porta. Agora tornara-se de novo adulto e tinha-lhe crescido o bigode. Para onde quer que o leve?, perguntou o cocheiro. Leve-me para o fim do sonho, hoje é o dia triunfal da minha vida.
Era o dia oito de Março, e pela janela de Pessoa entrava um sol tímido.

Antonio Tabucchi (Sonhos de sonhos)

Tabucchi deixou-nos cedo demais.
 Fica connosco um romancista original e um grande apaixonado por Pessoa e Portugal.