sábado, fevereiro 25, 2012

Iremos pelos campos à procura do silente lume das cassiopeias..

Vêm sôfregos os peixes da madrugada
beber o marítimo veneno das grandes travessias
trazem nas escamas a primavera sombria do mar
largam minúsculos cristais de areia junto à boca
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos


vem deitar-te comigo no feno dos romances
para que a manhã não solte o ciúme
e de novo nos obrigue a fugir
vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça
ergue-te e regressa
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicarem o outono no sumo das amoras


iremos pelos campos
à procura do silente lume das cassiopeias.




( Al Berto- Vigílias)

segunda-feira, fevereiro 20, 2012

Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares...

A Flor


" Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mesmes moyens. Et après, si que j'ai fait n'est pas bon, je n'en suis responsable. C' est que je ne peux vraiment pas faire mieux".
 Henri Matisse

Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!


(Almada Negreiros)

quarta-feira, fevereiro 15, 2012

Por que tanta apatia no senado?

    (Ulpiano Checa)


À ESPERA DOS BÁRBAROS

O que esperamos na ágora reunidos?

      É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

      É que os bárbaros chegam hoje.
      Que leis hão de fazer os senadores?
      Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

      É que os bárbaros chegam hoje.
      O nosso imperador conta saudar
      o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
      um pergaminho no qual estão escritos
      muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

      É que os bárbaros chegam hoje,
      tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

      É que os bárbaros chegam hoje
      e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

      Porque é já noite, os bárbaros não vêm
      e gente recém-chegada das fronteiras
      diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

                    [Antes de 1911]
 
(Konstantinos Kaváfis)

sábado, fevereiro 11, 2012

Mais do que sonho: comoção...



 


 
Penélope

Mais do que sonho: comoção!
sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço melhores dias
do nosso amor.

               David Mourão-Ferreira

 
 
 

quarta-feira, fevereiro 08, 2012

Como havemos de nos explicar a um Primeiro-Ministro?



                    (foto " Aguarelas de Turner"- exposição Zé Povinho. Centro Cultural das Caldas da Rainha)

Hoje " Aguarelas de Turner" dedica este post a um texto excelente publicado por André Barata no seu blog : "No Reino da Dinamarca".

"Como havemos de explicar a um Primeiro-Ministro que a sua eleição não é resultado de nenhuma vontade dos portugueses em sofrerem maus-tratos?
Não, senhor Primeiro-Ministro, não o elegemos, com o voto de muitos, e sem o meu confesso, para que fosse instrumento de um povo com desejos de se auto-infligir correctivos. Se alguma vez o pensou, está enganado, nós portugueses, como qualquer povo, não gostamos que nos depreciem, muito menos que nos deprecie quem nos governa. Nem por gestos, nem por palavras." (...)
Não deixem de o ler na íntegra.

sábado, fevereiro 04, 2012

O pássaro que canta é uma palavra...


 (Frederick Childe Hassan)
HERZOG
     Sofrer é outro mau hábito.
       (palavras de Ramona em Herzog, de Saul Bellow)

A minha desforra são palavras.
Levanto-me de manhã amarrotado
pelo peso inclemente das mentiras
e vazo no real outro real
das letras que ninguém vislumbrará.
O pássaro que canta é uma palavra,
é uma carta escrita a este, àquele,
que me saiu do lápis da amargura;
tudo se refaria se jamais feita fosse
alguma coisa que a minha mão não desse.
Desforro-me sem gosto. Desforro-me sem gasto,
acorrentado ao que me vem de trás
e ao que virá e que não sei se quero.
  Pedro Tamen     [in Analogia e Dedos, Oceanos, 2006]