segunda-feira, novembro 30, 2009

sábado, novembro 28, 2009

A ruiva rosa sonora...

                            

                                            Com sua agulha sonora
                                             borda o pássaro o cipreste:
                                             rosa ruiva da aurora,
                                             folha celeste.

                                             E com tesoura sonora
                                             termina o bordado aéreo.
                                             Silêncio. E agora
                                             parte para o mistério.

                                             A ruiva rosa sonora
                                             com sua folha celeste
                                             imperecível mora
                                             no cipreste.
                             
       (Cecília Meireles)

                   

quinta-feira, novembro 26, 2009

...apressamo-nos a destruí-las...


(René Magritte)
Quando queremos arrombar com êxito as portas abertas, não nos devemos esquecer de que elas têm sólidas ombreiras; este princípio, que o velho professor sempre seguira, não é mais do que uma exigência do sentido do real. Mas se existe  um sentido do real e temos de admitir que ele tem direito à existência, deve também haver qualquer coisa a que se possa chamar sentido do possível.
O homem que o possui, por exemplo, nunca dirá: isto aconteceu, deve acontecer, vai acontecer isto ou aquilo; antes imagina: poderia ou deveria acontecer isto ou aquilo; e quando lhe dizem que uma coisa é como é, ele pensa que também poderia ser de outra maneira. Assim podemos definir o sentido do possível como sendo a faculdade de pensar tudo o que « também» poderia ter acontecido  e não conceder  mais importância àquilo que é do que àquilo que não é. Vemos que as consequências desta disposição criadora podem ser notáveis; infelizmente, não é raro que façam aparecer como falso o que os homens admiram e como lícito aquilo que els proíbem, ou que tanto faz uma coisa como outra...Esses homens do possível vivem, como aqui se diz, numa trama mais fina, uma trama de fumo, de imaginações, de divagações, de conjuntivos; quando se descobrem numa criança tendências desse tipo apressamo-nos a destruí-las, dizemos-lhe que esses indivíduos tão sonhadores, extravagantes, fracos, eternos descontentes, que sabem tudo melhor que os outros.

(Robert Musil- O homem sem qualidades)

quarta-feira, novembro 25, 2009

Olhar o rio que é de tempo e água...

                           


                              Olhar o rio que é de tempo e água
                              E recordar que o tempo é outro rio,
                              Saber que nos perdemos como o rio
                              E que os rostos passam como a água.

                             Sentir que a vigília é outro sono
                             Que sonha não sonhar e que a morte
                              Que teme a nossa carne é essa morte
                              De cada noite, que se chama sono.

                              Ver no dia ou até no ano um símbolo
                               Quer dos dias do homem quer dos anos,
                              Converter a perseguição dos anos
                               Numa música, um rumor e um símbolo,

                               Ver só na morte o sono, no ocaso
                               Um triste ouro, assim é a poesia
                               Que é imortal e pobre. A poesia
                                Volta como a aurora e o ocaso.

(Jorge Luis Borges)
                    

segunda-feira, novembro 23, 2009

A delicada questão do dinheiro...


                                               (Dario Castillejos, «Cagle Cartoons»)

  Já no final de um discurso extremamente importante
  O grande homem de Estado
  numa bela frase oca
  escorrega
  e desamparado de boca escancarada
  sem fôlego
  mostrando os dentes
  e a cárie dentária dos seus pacíficos raciocínios
  deixa exposto o nervo da guerra:
  a delicada questão do dinheiro.


(Jacques Prévert- Paroles- trad. de Manuela Torres)

domingo, novembro 22, 2009

Porquê?



...Descobrir que todos abrigamos nos nossos corações o selvagem, o criminoso e o animal não nos torna mais alegres.
- Qual è a sua objecção aos animais? replicou Freud- Eu prefiro infinitamente a companhia dos animais à companhia humana.
- Porquê?
- Porque são mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do Ego, que resulta da tentativa do homem de se adaptar a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, tal como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade pelas restrições que ela impõe. Este desejo de vingança anima o reformador profissional e o intrometido. O selvagem pode cortar-lhe a cabeça, pode comê-lo, pode torturá-lo, mas irá poupar-lhe as contínuas alfinetadas que tornam a vida numa comunidade civilizada por vezes quase intolerável. Os mais desagradáveis hábitos e idiossincrasias do homem, a sua dissimulação, a sua cobardia, a sua falta de reverência, são gerados pelo seu ajustamento incompleto a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre os nossos instintos e a nossa cultura. Como são mais agradáveis as emoções simples, directas e intensas de um cão, quando abana a cauda ou ladra o seu desprazer! As emoções de um cão- acrescentou Freud pensativamente- lembram-nos os heróis da Antiguidade. Talvez seja essa razão pela qual inconscientemente damos aos nossos cães nome de heróis antigos como Aquiles e Heitor.
- O meu próprio cão- disse eu-é um doberman pincher chamado Ajax.
Freud sorriu.
(...)

(Entrevista dada por Freud a George Sylvester Viereck.))

sexta-feira, novembro 20, 2009

Brel, sempre...

quarta-feira, novembro 18, 2009

Desfalecem, na sombra, as suas asas...



                  Fragmentos

                      I

Quando arrefece o coração das pombas
desfalecem, na sombra, as suas asas...

(Safo-secVII-VI a.C. Fragmento 42 Lobel-Page)

segunda-feira, novembro 16, 2009

Será dos meninos o tempo e a casa



                                             (Maluda)
 Cidade Branca

Dorme já, plenamente, a cidade!
O silêncio é de ouro e os homens
todos o procuram de mãos dadas.
Os velhos, de olhos semicerrados,
amparam-se ao bordão da memória;
emudeceram, no solar dos senhores,
o chicote, o ódio sem disfarce.

Dorme já, plenamente, a cidade!
Aproxima-se o dia. As mulheres,
amadas e repousadas, cantam
em seu sono. Abre-se, em concha,
a mão da madrugada. Lábios e rosas.
Amanhã, ao acordar, a cidade renovada
será dos meninos o tempo e a casa.


(Casimiro de Brito)

sábado, novembro 14, 2009

Com elas nos pensamos...


Das Palavras

As palavras mais simples
foram as que te dei;
o amor não sabe outras,
só estas fazem lei.
As palavras de uso
mais comum e vulgar
são as que amor conhece.
Com elas nos pensamos;
é nelas que tememos
desacertos, enganos;
se nelas triunfamos,
já delas nos perdemos.
Com palavras vulgares
se diz o mal de amor,
seu riso, seu espelho,
o que fica da dor.
E todos os mistérios
que se fazem promessa
e se perdem nos versos
e dos corpos nasceram
são aqui cerimónia
evidente e secreta
nas mais simples palavras
que conhece o poeta.

Luis Filipe Castro Mendes, in "Os Amantes Obscuros"

"Aguarelas de Turner", "sempre"...



                        ( Turner- Norhan Castle Sunrise)

Enquanto a solução não chega, só me resta evocar, uma vez mais, este espantoso quadro- Norhan Castle Sunrise .

sexta-feira, novembro 13, 2009

Como isto aconteceu?



Sinto-me como me tivessem "despejado" da minha casa e tivessem decidido mudar a chave sem o meu conhecimento ou consentimento. No lugar do título e da belíssima aguarela de Turner surgiu essa  coisa que se apropriou indevidamente de um lugar e de um espaço. Desconheço o que é e como isto acontece. Sei só que estou muito zangada e não descansarei  enquanto não resolver o problema.
Quero, além de mais perceber, como estas coisas acontecem.
Uma surpresa francamente desagradável.

quinta-feira, novembro 12, 2009

No Largo das Necessidades havia um terraço...



                               (Palácio da Necessidades)
No Largo das Necessidades havia um terraço, todo em vermelho de tijolo, como se o colorisse uma inquietação transparente. Daquele terraço, via a praça toda à volta, o Palácio das Necessidades com as suas arcadas amarelas, colunas de pássaros regulares como as janelas, e por de trás das janelas homens desejando vitórias e derrotas. Do palácio amarelo, de um lado da praça, escadas longas e ligeiras, feitas de fragmentos cinzentos mesclados de azul em desenhos de verão, de navios e bandeiras, degraus de um patchwork de sereias, como se por debaixo estivesse o mar. Em vez do mar, um jardim, mínimo, porque o Largo das Necessidades é afinal estreito, um pátio com laivos de praça. No jardim, pequeno, há ao abrigo das árvores um banco e outro, mais alguns jogos  montados para crianças. Uma rotunda ao meio, onde podes escrever o que quiseres, e a sombra às seis da tarde. Todo o resto é chuva, nichos, um estrado de madeira do lado de fora de um café, uma cabina telefónica à inglesa, flores de buganvília, fotografias.
O que encontras aqui são os rumores de um mundo que inventa as suas cores, enquanto as pinta. Um realizador que procura a deixa para a protagonista de um filme mudo, um motorista de táxi bêbado que te pergunta o caminho para voltar a casa, uma rapariga que se enfurece porque está apaixonada e ao lado um homem que tem medo dela. Pombos, voo de pássaros e vento quando cai o sol, um jardineiro vestido de Inverno e uma rapariguinha que finge ser Primavera. Na rotunda, alguns velhos jogam um velho jogo de cartas.
Depois chega a noite, a Primavera volta para casa juntamente com todos os demais, excepto nós.
Uma das costelas do jardim, na esquina com a Travessa dos Prazeres, era um prédio cor de morango e mirtilo. Juntos. E a seguir, ao alto, um terraço que parecia feito de inquietação. De um vermelho amargo, forte, obstinado. Excessivo.
Número 22: no terceiro andar ficava a nossa casa. Muito antes de ser a Beirabismo. E na casa havia um corredor, longo como uma memória tenaz.

(Paola D' Agostino- Largo das Necessidades- Fenda Edições)

quarta-feira, novembro 11, 2009

Ouçamos...

terça-feira, novembro 10, 2009

A Morte é a companheira do Amor. Juntos regem o mundo.


 (...)
É possível- respondeu Freud, que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Tal como o amor e o ódio por uma pessoa habitam o nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de se manter e um desejo ambivalente da sua própria destruição- Tal como um pequeno elástico esticado tende a assumir a sua forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, anseia por recuperar a completa e absoluta inércia da existência inorgânica. A pulsão de vida e a pulsão de morte habitam lado a lado dentro de nós. A Morte é companheira do Amor. Juntos regem o mundo. É esta a mensagem do meu livro Para Além do Princípio do Prazer. No início a psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância. Hoje sabemos que a Morte é igualmente importante.(...)

(Entrevista dada por Freud a George Sylvester Viereck.)

segunda-feira, novembro 09, 2009

...estremecendo como as letras nas folhas de outra cor



                     (Carlos Helder Leitão Macedo)


Em silêncio descobri essa cidade no mapa
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa-
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos ulmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol-
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.

Era a minha cidade ao norte do mapa,
numa velocidade chamada
mundo sombrio. Seus peixes estremeciam
como letras no alto das folhas,
poeiras de outra cor: girassol que se descobre
como uma gota no mundo
Descobri essa cidade, aplainando tábuas
lentas como rosas vigiadas
pelas letras dos espinhos. Era em silêncio
como uma gota
de seiva lenta numa tábua aplainada.

Descobri que tinha asas como uma pêra
que desce. E a essa velocidade
voava para mim aquela cidade do mapa
Eu batia como os peixes batendo
dentro do sangue-peixes
em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia,
aplainando na tábua
todo o meu silêncio. E a seiva
sombria, vinha escorrendo do mapa
desse girassol, no mapa
do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo
como as letras nas folhas
de outra cor.

Cidade que aperto, batendo as asas-ela-
no ar do mapa. E que aperto
contra quanto, estremecendo em mim com folhas,
escrevo no mundo.
Que aperto com o amor sombrio contra
mim: peixes de grande velocidade,
letra monumental descoberta entre poeiras.
E que eu amo lentamente até ao fim
da tábua por onde escorre
em silêncio aplainado noutra cor;
como uma pêra voando,
um girassol do mundo.

(Herberto Helder)

domingo, novembro 08, 2009

sexta-feira, novembro 06, 2009

Uma vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu



O cenário da nossa conversa foi a casa de Verão de Freud no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos onde Viena elegante gosta de se encontrar. Eu vira o pai da  psicanálise pela última vez na sua casa despertenciosa na capital austríaca. Os poucos anos decorridos entre a minha última visita e a actual tinham multiplicado as rugas na sua fronte. Tinham intensificado a sua palidez escolástica. A sua face estava tensa, como se sentisse dor. A sua mente estava alerta, o seu espírito firme, a sua cortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala alarmou-me.
Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitara de ser operado. Desde então, Freud usa uma prótese para facilitar a fala. Isso não é em si pior do que usar óculos. A presença do aparelho metálico embaraça mais Freud do que os seus visitantes. Ao fim de algum tempo, é quase imperceptível para quem conversa com ele. Nos seus dias bons, não é sequer detectável. Mas para Freud é motivo de permanente irritação.
- Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho consome tanta energia preciosa. No entanto, prefiro um maxilar mecânico a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção.
- Talvez os deuses sejam gentis connosco-prosseguiu o pai da psicanálise- tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte parece menos intolerável do que os múltiplos fardos que carregamos.
Freud recusa-se a admitir que o destino lhe reserva algum mal especial.
- Por que razão- disse calmamente- deveria eu esperar um tratamento especial? A velhice, com os seus desconfortos manifestos, chega a todos. Atinge uma pessoa aqui, outra ali. O seu golpe atinge sempre um ponto vital. A vitória final pertence sempre ao Verme conquistador.
Apagam-se, apagam-se as luzes- todas se apagam!
E sobre cada forma trémula
O pano, uma mortalha fúnebre
Cai, com o ímpeto de uma tempestade.
E os anjos, pálidos e exangues,
Erguendo-se, desvelando-se, afirmam
Que a peça é a tragédia 'Homem'
E o seu herói, o Verme Conquistador. (1)
- Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal- continuou o mais importante analista do cérebro humano- vivi mais de setenta anos. Tive comida suficiente. Apreciei muitas coisas- a companhia da minha mulher, os meus filhos e os poentes. Vi as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Uma vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso pedir?
- O senhor teve fama- disse eu. - A sua obra influi na literatura de todos os países. Por sua causa o homem olha para a vida e para si mesmo com outros olhos. E recentemente, no seu septuagésimo aniversário, o mundo uniu-se para o homenagear- à excepção da sua própria Universidade!- Se a Universidade de Viena me tivesse demonstrado reconhecimento, teria acabado apenas por envergonhar-me. Não há razão para que me aceitem a mim ou à minha doutrina, pelo facto de eu ter setenta anos. Eu não atribuo qualquer importância insensata aos decimais. A fama chega apenas quando morremos e, francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. A minha modéstia não é uma virtude.
- Para si não tem qualquer significado o facto do seu nome sobreviver?
- Absolutamente nenhum, mesmo que sobreviva, o que não é de modo algum uma certeza. Estou bastante mais interessado no destino dos meus filhos. Espero que a vida deles não seja tão difícil. Não posso torná-la muito mais fácil. A guerra liquidou praticamente a minha modesta fortuna, a poupança de uma vida inteira. No entanto, felizmente, a idade ainda não é um fardo demasiado pesado. Posso continuar! O meu trabalho ainda me dá prazer.(cont.)
(1) -Poe, Edgar Allan in " The Conqueror Worm", 1843)
( O original desta entrevista foi publicada no livro de George Sylvester Viereck. "Glimpses of de Great", 1930, editado simultâneamente em Nova Yorque, Londres e Berlim, e reeditada em "Psychonalysis and the future. A centenary commemoration of birth of Sigmund Freud". New York; National Psychological Assotiation for Psychoanalysis, Inc., 1957. pag 1-11- trad. Vasco Tavares dos Santos e Sofia Castro Rodrigues)

terça-feira, novembro 03, 2009

Só necessito que tu existas


                                            (Fantin-Latour)
Afogo no teu ombro
tudo o que não te digo
o pânico do sonho
o resplendor do risco

É de ti que me escondo
Em ti é que me firmo
Antes de já ser ontem
sentir que estamos vivos

Nada garante que tu existas
Não acredito que tu existas

Só necessito que tu existas


(David Mourão-Ferreira- O Corpo Iluminado)

segunda-feira, novembro 02, 2009

domingo, novembro 01, 2009

Alguma coisa ali já se tinha iniciado........



A minha intenção era só dar uma vista de olhos às crias, e depois ir para casa pensar com calma e ponderação se estava preparado para assumir a responsabilidade de ter um lobo, e por aí adiante. Mas quando vi as crias, soube logo que ia levar uma delas para casa-nesse mesmo dia. Na verdade não podia ter sido mais rápido a tirar o livro de cheques. E quando o criador disse que não aceitava cheques, não podia ter conduzido mais depressa para chegar ao Multibanco mais próximo.
Escolher a cria foi mais fácil do que eu pensava. Primeiro de tudo, eu queria um macho. Havia três. O macho maior- a maior de todas as crias, aliás-era um cinzendo, e eu tinha a certeza de que ia ser igualzinho ao pai. Já sabia o suficiente para perceber que aquele ia ser problemático. Completamente destemido, enérgico e a precisar de algumas rédeas. Com imagens do Blue a passarem-me diante dos olhos e, uma vez que  era este o meu primeiro lobo, achei melhor ser prudente. E assim escolhi a segunda maior cria da ninhada. Era castanho e a cor fazia-me lembra um leão recém-nascido. Por isso dei-lhe o nome de Brenin, que significa rei em galês. Sem dúvida teria ficado mortificado se soubesse que o seu nome vinha de um felino.
E de facto não se parecia de todo com um felino. Antes fazia lembrar uma daquelas crias, de cor acinzentada no Discovery Channel, a seguir a mãe pelo Parque nacional Denali, no Alasca. Com seis semanas, era castanho com manchas pretas, mas tinha um ventre creme que ia desde a ponta da cauda até à parte debaixo do focinho.E tal como um urso bebé, era encorpado: patas grandes, umas pernas largas e uma cabeça grande. Os olhos eram de um amarelo muito escuro, quase cor de mel- e isso foi uma coisa que nunca mudou. Não diria que era "meigo"- pelo menos não à maneira dos cachorrinhos. Não se podia dizer, nem com muita imaginação, que fosse um lobo caloroso, efusivo ou desejoso de agradar. Muito pelo contrário, a desconfiança era a sua principal característica - e,mais uma vez, isso foi uma coisa que não mudou, excepto em relação a mim. Estranho. Consigo lembrar-me destas coisas todas sobre Brenin, Yukon e Sitka. Lembro-me de pegar em Brenin e olhá-lo nos seus olhos de lobo amarelos. Lembro-me da sensação que tive ao agarrá-lo, do pelo macio de bebé nas minhas mãos. Consigo lembrar-me com nitidez de Yukon, erguido sobre as patas traseiras, a olhar para mim de cima , as grandes patas penduradas na porta do estábulo. Lembro-me claramente dos irmãos e irmãs de Brenim a correr em volta do redil, a caírem uns por cima dos outros, e voltando a pôr-se de pé num ápice , felizes da vida. Mas da pessoa que me vendeu Brenin não me lembro rigorosamente nada. Alguma coisa ali já se tinha iniciado; um processo que se tornou cada vez mais evidente à medida que os anos foram passando.

(Mark Rowlands- O filósofo e o lobo)