segunda-feira, dezembro 27, 2010

Eu agarrei-me com força à cadeira e cerrei os dentes

Na ida seguinte ao cinema conseguiu ficar sentada?
Quando o meu Pai quis outra vez sair antes do fim, eu agarrei-me com força à cadeira e cerrei os dentes. O meu pai esperou por mim lá for a e não disse nada. Ele tomou conhecimento da minha rebelião. Foi um esforço de coragem que hoje já não se pode imaginar.

Depois de, finalmente poder ver cenas de amor, desejou ser seduzida?
Sabe, em toda a minha vidanuncative um “rendez-vous” clássico. No entanto, mais tarde casei-me, mas foi com um colega do Clube Alpino. Lá, todos queriam casar comigo. Eu era um bom partido, não se esqueça. E talvez também fosse agradável à vista.

Casou por amor?
Sempre soube que tinha de casar para sair de casa. Estive noiva duas vezes. Nas duas vezes, depois de um curto noivado, pensei: com este homem não consigo relacionar-me durante mais de uma semana. E então escrevi cartas de despedida. A minha avó dizia, “ Minha  querida filha, com a maneira como foges dos homens, vais perder a tua vez muito em breve”. Mas casei com o meu terceiro noivo e estivémos juntos 53 anos.
O seu casamento foi feliz?
Sim. A Segunda Guerra mundial rebentou pouco depois do meu casamento. O meu marido foi mobilizado e eu ingressei imediatamente na Academia de Belas Artes, para estudar Escultura.
Voltou a relacionar-se com Freud mais tarde?

Despedimo-nos daquela vez e depois, durante toda a vida, nunca mais ouvimos falar um do outro. Durante muito tempo, não fiz ideia de quem ele era. Só mais tarde vim a saber: no Estúdio de Escultura da Academia, o meu professor modelou um retrato de Freud. E eu disse: meu Deus, eu conheço-o.

Leu os livros dele?
Não, nenhum. Nunca tive o sentimento de que tivesse de ocupar-me de Freud. Ele ajudou-me, está tudo em ordem.
Como acontece que só agora fale do seu episódio com Freud?

Acontece que eu escrevi as minhas memórias e que toda a gente se interessou apenas pelo capítulo com Freud, que também tinha aparecido em 1999, no livro “ Os melhores filhos e filhas de boas casas”. Mas eu nunca quis tirar proveito disso.
O que teria sucedido se se não tivesse encontrado Freud?
Talvez com o decorrer do tempo, me tivesse atrevido a maior contestação. Mas o meu isolamento teria persistido. Era evidente que na minha vida alguma coisa não estava certa. E não era por minha causa, mas pela minha família.
Como vive actualmente?
Tenho duas filhas que vivem em Israel e nos EUA. Visito-as todos os anos. Desde que o meu marido morreu, há 18 anos, faço ainda mais o que quero. Depois da morte dele, desfiz-me da cama de casal, e arranjei uma cama com um cortinado. À noite, fico acordada até tarde quando um livro me interessa. Faço teatro, estou na Liga de Autores e exponho as minhas obras de arte.
Como educou as suas filhas?
De outra maneira. Isto diz tudo, ou não? As minhas filhas telefonam-me todos os dias. Contamos tudo umas ás outras.
Se, hoje, pudesse encontrar outra vez Freud – o que lhe diria?
Lembro-me de cada instante em que estive com ele. As suas advertências voltaram à minha mente sempre que, na vida, me foram necessárias.

Tradução de Maria Adelaide Ferraz da Costa
Adaptação de Manuela Ferraz da Costa

sexta-feira, dezembro 24, 2010

FELIZ NATAL para todos

       Logo que possa voltarei ao "Aguarelas".Não está esquecido....
 

sábado, dezembro 04, 2010

Tem de se ousar perguntar porquê e como.....

Em 1936, uma jovem mulher precisa dum psiquiatra, e encontra um senhor muito idoso e inteligente. 73 anos depois, Margarethe Lutz fala sobre a sua terapia com Sigmund Freud. Uma Conversa com a última doente viva do psicanalista.
Entrevista por Christine Dohler
Fotos: Paul Rigaud

Frau Lutz, aos 91 anos, a Senhora irradia uma tal alegria de viver! Isso tem algo a ver com o facto de se ter tratado com Sigmund Freud?

Margarethe Lutz: Tem, de facto. Graças ao encontro com Freud, levei uma vida auto-determinada. De todas as situações miseráveis da minha vida, sempre consegui retirar um bocadinho de felicidade.Só tarde compreendi que também da infelicidade se pode tirar algo de positivo.


Foi doente de Freud em 1936. Como foi para si deitar-se no famoso divã de Freud? Nunca estive no divã. Eu era um caso tão simples, nada comparável a outros doentes. Para Freud eu era completamente desinteressante.


Mas Freud ouvi-a, apesar de a senhora não constituir para ele um desafio?
Sim. Ele foi paternal, afável, compreensivo. Um amigo. Olhámo-nos sempre nos olhos e ele riu-se muitas vezes. Eu apenas falei abertamente. Isso divertiu-o.


O que aconteceu para que, aos 18 anos estivesse em tratamento com Freud?
Sabe, eu era uma criança sózinha, uma filha única. A minha mãe morreu de parto.Om eu pai não sabia como lidar comigo. Quando eu gritava, ele punha-me debaixo da cama. Mais tarde, casou novamente. Mas a minha madrasta nunca falou comigo. O meu pai trabalhava muito na sua fábrica, que produzia componentes de cartuchos de caça. Vivíamos disso, muito bem. Tínhamos uma moradia.


Quem a educou?
A minha avó. Ela ainda usava saias à moda de 1880 e os seus métodos de educação também eram dessa época. Eu não podia visitar ou receber a visita de ninguém. Vivia isolada e ia sempre acompanhada por alguém à Opera, ao Teatro Municipal ou ao dentista. A minha família tinha um medo terrível de que eu fosse seduzida. Eu nem sabia como se seduz nem como se é seduzida. O que eu queria não interessava a ninguém. Muitas vezes levantava-me de noite e dormia na ante-câmara junto do meu cão, porque ele me dava calor e me ouvia. Eu era terrìvelmente carente de amor.

                                   Aos 4 anos M.Lutz era ainda uma criança triste            
Nunca protestou?
Sabe o que é ser uma "coitadinha"? Eu estava completamente dominada, era um infeliz verme. Mas, uma vez, a vaidade prevaleceu.Na escola, as outras meninas usavam vestidos curtos, eu usava uma saia comprida e, por baixo dela, aparecia uma saia de baixo, encarnada, tricotada à mão. As outras crianças fizeram troça de mim. Então eu despi a saia de baixo e pendurei-a na casa de banho da escola. A avó recebeu-a das mãos do Director. Não voltou a impôr-ma. Isto foi para mim uma revolução prodigiosa mas, de facto, apenas contra a minha avó, não contra o meu pai.
Como passava os seus tempos livres?
Refugiava-me nos meus sonhos diurnos e em leituras secretas. Fecharam-me a estante dos livros. Mas a chave do relógio de pé também abria a estante. Quando acabava os meus trabalhos de casa tirava da prateleira "Tristão e Isolda"- que  achei particularmente bom- e representava sozinha todos os papeis. Uma vez, estava eu profundamente embrenhada e olhei pela janela. Na rua, em baixo, algumas pessoas viam-me. Tinha posto um véu e dizia o meu texto. Mas as pessoas olhavam para mim, eu pensei: É o público.Foste perfeita.E cumprimentei.

Como reagiram as pessoas?
Disseram ao meu pai: que pena ter só uma filha que, ainda por cima, é maluca!
Então ele foi comigo ao médico de fam´lia que disse: a doença da sua filha não é do corpo, mas da alma. O meu pai era um homem de negócios, não podia conceber que alguém adoecesse por causa da alma. O médico deu-nos a direcção dum certo Dr. Sigmund Freud.

Tinham alguma noção sobre Sigmund Freud?

O meu pai não tinha ideia nenhuma. Eu também não. Fiquei admirada porque Freud não tinha um verdadeiro consultório, não tinha armários brancos com instrumentos de observação. tinha muitos livros, por todo o lado havia jarras. E havia o divã, uma mesa e três poltronas. Freud sentou-se ao meio e dirigiu-se a mim. Mas foi o meu pai que respondeu.

O que perguntou Freud?


"O que faz quando volta da escola para casa?" O meu pai disse"Nada. Fica em casa  e tem de estudar". Freud para mim: "Vai a alguma escola de dança?" Meu pai: "Isso está fora de questão. ela tem de fazer o secundário." Isto pareceu muito estúpido a Freud que disse ao meu pai -" por favor vá para a sala do lado. Quero estar só com a doente". Muito amigável, mas determinado. E o meu pai saiu. No momento em que fiquei só com freud, reconheci-o como uma uma pessoa, que me ouve e aceita. Houve de repente, uma confiança incrível. Em casa eu era tratada como criança, por ele quase como uma adulta.

Que lhe contou?

Tudo. Que contava histórias a mim própria, que sonhava de dia, que fazia teatro, que ninguém falava comigo. Foi isto que brotou em mim. Com total desinibição. Tinha-se acumulado tanto para dizer!

(....)

Freud deu-lhe conselhos?
Contei-lhe que ia ao cinema com os Pais. Mas quando surgia uma cena de amor o meu pai saía comigo. Ele dizia: "Isto vai preverter-te? Eu tinha de me esgueirar com ele entre as filas. As pessoas ficavam aborrecidas. Assim nunca vi o fim filme de amor com Lilian Harvey e Willy Fritsch. Freud disse-me: "Quando for outra vez ao cinema com os pais, recomendo-lhe que fique sentada". Aceitei com gosto o conselho. Tinha-me impressionado tanto que ele tivesse mandado sair o meu pai! Que alguém se atrevesse a isso, era inconcebível para mim.


Quanto tempo demorou a conversa com Freud?

Aproximadamente uma hora. No fim disse: Não se esqueça- para se ficar adulto, tem de se ousar perguntar porquê e como, e também apresentar opiniões próprias ou contestar. Se não se fizer isto, ficará sempre uma criança e serão sempre os outros a mandar em si"

Sabe quanto custou a hora de Freud?

Não. De facto ele apresentou logo a conta mas o meu pai só disse: Bem, barato não foi!"

Freud marcou-lhe outra consulta?
Não. Eu estava completamente saudável e o remédio estava estabelecido: ski com os sócios do Clube Alpino e frequência da Escola de Dança. Os Pais não poderiam estar presentes. A minha família teve tanto medo que eu ficasse realmente doida, que autorizou.

(cont.)

Fontes: http://sz-magazin.sueddeutsche.de/texte/anzeigen/28738 e Revista Portuguesa de psicanálise 2010 30 (1)

sábado, novembro 27, 2010

Ficando longe e perto, Infindo

                                  (Aguarelas de Turner)
 
         Manhã de névoa

          A névoa foi crescendo instante a instante,
          Já não há mar, nem céu,
          No seu ondeante
          Véu.

         O próprio areal deserto
         Se vai indefenindo,
         Ficando longe e perto,
         Infindo.

        Diluídas nessas mãos estranhas
        Que se diria nem as roçam,
        Para os lados da terra, as curvas das montanhas
        Mal se esboçam.

       Como numa aguarela
        Aérea,
Tudo, em redor, perde os contornos,-vela
       De espírito a matéria.

Não venhas,Sol, denunciador agreste,
Com teu brutal clarão jucundo,
Desmentir este
Delicioso fim do mundo!

(José Régio- Cântico Negro)

quarta-feira, novembro 10, 2010


Saudade-Qué será?...yo no sé...lo he buscado,
en unos diccionarios empolvados e antiguos
y en outros libros que no me han dado el significado
de esta dulce palabra de perfiles ambiguos.

Dicen que azules son las montañas como ella,
que en ella se obscurecen los amores lejanos,
y un noble y buen amigo mío (y de las estrellas)
la nombra en un temblor de trenzas y de manos.

Y hoy en Eça de Queiroz sin mirar la adivino,
su secreto se evade, su dulzura me obsede
com una mariposa de cuerpo extraño y fino
siempre lejos- tan lejos!- de mis tranquilas redes.

Saudade...Oiga vecino, sabe o significado
de esta palabra blanca que como um pez se evade?
No...Y me tiembla en la boca su temblor delicado...
Saudade...

(Pablo Neruda-Crepusculario)

domingo, outubro 31, 2010

Compreendi toda a grandeza da minha evolução...

                             (R.Doisneau)

Mas com a breca! quem me explicará a razão desta diferença? um dia vimo-nos, tratámos o casamento, desfizemo-lo e separámo-nos, a frio, sem dor, porque não houvera paixão nenhuma; mordeu-me apenas algum despeito e nada mais. Correm anos, torno a vê-la, damos três ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro com delírio. A beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de apuro, mas nós éramos substancialmente os mesmos, e eu, à minha parte, não me tornara mais bonito nem mais elegante. Quem me explicará a razão dessa diferença?
A razão não podia ser outra senão o momento oportuno. Não era oportuno o primeiro momento, porque se nenhum de nós estava verde para o amor, ambos o estávamos para o nosso amor: distinção fundamental. Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos. Esta explicação achei-a eu mesmo, dois anos depois do beijo, um dia em que Virgília se me queixava de um pintalegrete que lá ia e tenazmente a galanteava.
- Que importuno! dizia ela fazendo uma careta de raiva. Estremeci, fitei-a, vi que a indignação era sincera; então ocorreu-me que talvez eu tivesse provocado alguma vez aquela mesma careta, e compreendi logo toda a grandeza da minha evolução. Tinha vindo de importuno a oportuno.

(Machado de Assis-Memórias póstumas de Brás Cubas)

sexta-feira, outubro 22, 2010

Um verso valerá por uma letra...

                                        

                                            Não tem nome nenhum esta figura
                                            que ainda agora tracei no quadro escuro
                                            nem há lugar na terra onde fique
                                            bem esse objecto que ninguém conhece.
                                            Na história humana não há sinal disto
                                            nem nos sacros anais da neuropsique;
                                            declaram-se venais os tribunais
                                            e vãos, de não saber em que consiste.
                                            Para irritar o mundo, chamo-lhe amor,
                                            às vezes; mas não quero
                                            confundi-lo com outro, por mais puro.
                                            Pouco importa o que escrevo, o que interdito.
                                            Um verso valerá por uma letra
                                            e seremos duendes para sempre.

               (António  Franco Alexandre- Duende)
                                           

terça-feira, outubro 19, 2010

Há muito tempo que não olhava para a Lua.

(Aguarelas de Turner)
- Algumas vezes penso que os condutores nem sequer sabem o que pode ser a erva ou as flores. Vão sempre tão depressa! Se se aponta a um condutor uma mancha vaga e verde, ele deve dizer: «Oh, claro, é erva! Uma mancha rosada? São rosas num jardim! As manchas brancas são casas. As castanhas, vacas.» Uma vez o meu tio conduziu lentamente numa auto-estrada- apenas a setenta  por hora. Meteram-no na prisão por dez dias. É esquisito, não acha?...E triste, também!
- Pensa de mais- disse Montag, pouco à vontade. -Raramente olho a televisão mural, nunca vou às corridas ou parques de atracções. Por isso tenho muito tempo para pensar ideias esquisitas. Viu os cartazes de cem metros de comprimento no campo, à saída da cidade? Sabe que dantes tinham apenas uma dezena de metros? Mas os carros vão tão depressa agora que tiveram de prolongá-los para que a publicidade conserve ainda o seu efeito.
- Não sabia- disse Montag, com um riso seco.
- aposto que posso ainda ensinar-lhe outra coisa. De manhã há orvalho nas ervas.
Ele sentiu-se subitamente incapaz de se lembrar se o sabia ou não e experimentou uma viva irritação.
- E se olhar bem...- Clarisse ergeu a cabeça para o céu- verá um homem na Lua.
Há muito tempo que não olhava para a Lua.
Acabaram o trajecto num silêncio, para ela pensativo, para ele contrariado, crispado.

(Ray Bradbury- Fahrenheit 451)

terça-feira, outubro 12, 2010

pede à noite que se transforme.......

Enleia nas unhas o triste sono das violetas
e nas hastes das cassiopeias demora-te
para surpreenderes o estelar canto do rouxinol


rasga janelas no lume íntimo da lareira
pede à noite que sob as pálpebras se transforme
numa imensa borboleta em chamas


a casa onde vives alimenta-se com o sorriso
da criança que estende as mãos para ti
enquanto o turvo líquido da velhice escurece
a memória desse tempo sem palavras

(Al Berto- Vigílias)

sábado, outubro 09, 2010

Eu quando crescer quero ser jardineiro...

Uma pequena estória

A mãe mostrava ao filho de 3 anos e meio as fotografias do seu casamento.
O menino olhava com toda a atenção para as fotografias e, depois de alguns momentos de reflexão, disse:
-Mamã eu não quero que tu cases com o papá.
A mãe procurando ajudar a criança a suportar a grande decepção respondeu:
- mas se a mamã não tivesse casado com o papá tu não tinhas nascido...
Nova pausa de reflexão por parte do menino, seguida de uma nova pergunta.
- Mamã então como é que os bebés nascem?
A mamã usando a velha metáfora da jardinagem lá disse ao menino: - o papá pôs uma sementinha dentro da barriga da mamã...
Novo silêncio do menino que, analisando aquela explicação à luz de todos os seus conhecimentos, voltava a questionar-se e dizia à sua mamã: -Mas mamã das sementes só nascem flores...
A mãe então resolveu mostrar-lhe o poder da metáfora, dizendo-lhe: - mas filho podemos pensar em vários tipos de flores...
Um novo silêncio da criança a que se seguiu uma poderosa afirmação:
-Mamã eu quando crescer quero ser jardineiro.

O silêncio é como se fosse água...

                   
      ( Addiragram)

De novo o Silêncio


O silêncio é como se fosse água. Daquela água pura da montanha que se bebe directamente pelo coração.

(Jorge Sousa Braga- Os pés luminosos)

domingo, outubro 03, 2010

Como é que o cérebro faz a mente?

                             (Cruzeiro Seixas)

Olhamos para a consciência como coisa garantida porque é tão disponível, por ser tão simples de usar, tão elegante nos seus aparecimentos e desaparecimentos diários. No entanto, todas as pessoas, cientistas incluídos, ficam perplexas ao pensar tal fenómeno. De que é feita a consciência? Parece-me que terá de ser a mente com algumas peculiaridades, visto que não podemos estar conscientes sem uma mente da qual podemos ter consciência. Mas de que é feita a mente? Virá do ar ou do corpo? As pessoas inteligentes dizem que vem do cérebro, que se encontra no cérebro, mas a resposta  não é satisfatória. Como é que o cérebro faz a mente?
Especialmente misterioso é o facto de ninguém ver a mente dos outros, consciente ou não. Podemos observar-lhes o corpo e o que fazem e o que dizem ou escrevem, e podemos opinar com algum conhecimento  quanto àquilo que estarão a pensar. No entanto, não podemos observar-lhes a mente e apenas nós próprios  somos capazes de observar a nossa, a partir do interior, e através de uma janela bem estreita. As propriedades da mente, já para não falar da mente consciente, apresentam-se de forma tão díspar daquelas da matéria viva visível, que as pessoas atentas se interrogam sobre a forma como um processo- a mente consciente- se funde com outros processos- as células vivas que se unem em aglomerados a que chamamos tecidos.
Claro que dizer que a mente consciente é misteriosa, que o é, não é o mesmo que dizer que o mistério é insolúvel. Não é o mesmo que dizer que nunca seremos capazes de entender como um organismo vivo dotado de cérebro desenvolve uma mente consciente ou declarar que a solução do problema se encontra fora do alcance do ser humano.

(António Damásio- O Livro da Consciência. A construção do cérebro consciente)

segunda-feira, setembro 27, 2010

Quero campinas sem termo...

                             (Bastien-Lapage)

Deixemos estas cidades…
Oh! a livre natureza,
Que eu não vejo entre os montes
De pedras e de tristeza!

Oh! os largos horizontes!
Oh as campinas floridas!
Vamos lá banhar em luz
Nosso amor e nossas vidas!

Se os horizontes são largos,
Vasto é o meu coração…
Para os meus grandes desejos
Quero infinta prisão!

Todo o ar é pouco ainda
Para a andorinha voar…
Eu quero imenso horizonte
Para poder delirar!

Quero campinas sem termo,
Todo o brilho e toda a cor…
O maior monte é pequeno
Para andar o meu amor!

(Antero de Quental -Idílio sonhado)

quarta-feira, setembro 22, 2010


É de manhã, os pássaros
cantam. De que infinito guardaram
a nostalgia? Enquanto a desconhecida dorme ainda
ao lado da janela. E eu contemplo o cimo das árvores.

(João Camilo- A Ambição sublime)

sexta-feira, setembro 17, 2010

Estamos ainda longe de praticar a democracia


Quando um ditador delirante tem condições para realizar socialmente o seu delírio, não vai para o manicómio, mas é a sociedade que se torna uma manicómio, às vezes quase imperceptivelmente. No caso português, o delírio do não-delírio, a aspiração violenta ao silêncio e à pequenez criaram uma sociedade aparentemente não-delirante- pelo contrário, a mais normal e moral que se podia imaginar. Quando este mecanismo se põe a funcionar é talvez possível justificar epistemologicamente a passagem do inconsciente individual para o plano colectivo ( não necessariamente para um «inconsciente colectivo» copiado do inconsciente individual).
Nestas condições, que aconteceu quando, no fim dos anos 70 e princípios dos anos 80, o português se esforçou por readquirir a subjectividade perdida? Lembremos que o equilíbrio do sistema salazarista das subjectividades e das condições de subjectivação formava uma sólida cobertura claustrofóbica que nem a guerra colonial conseguiu abalar)- ao mesmo tempo elemento de protecção do sistema. Foi, pois, muito natural que nesses anos de procura de subjectividade se tenha voltado a antigos moldes que forneciam segurança e paz interior. Mas a força desses padrões interiorizados  era tal que contaminou as novas condições de subjectivação: a democracia, a cidadania, a acção e expressão livres. Daí a nossa dificuldade actual em nos desviarmos de uma via única, a nossa tendência a não ver senão norma, a criar constantemente zonas sociais claustrofóbicas, a viver a democracia como, parodoxalmente, uma imensa cobertura-véu colectiva, com os seus agentes e mecanismos autoritários, desde os média ao tipo de governação, passando pelo medo da crítica e da liberdade. Estamos ainda longe de praticar a democracia.

( José Gil- Em busca da Identidade- o desnorte)


segunda-feira, setembro 13, 2010

Não vás tantas vezes à estrada...

                                                     

Carta a minha mãe

Estás viva ainda, velhota minha?
Eu vivo também. Saudações, saudações!
Que passe sobre a tua cabana
aquela luz da tarde indescritível!

Escrevem-me que tu, embora o escondas,
te preocupas demasiado comigo,
que vais muita vez até à estrada
com o teu casacão fora de moda.

E a coberto do azul da noite
muitas vezes imaginas a mesma coisa-
que alguém numa rixa de taberna
me enterrou no coração uma navalha...

Nada acontece, mãe! Descansa.
Isso é só a tua imaginação.
Eu não sou um bêbado inveterado
para morrer sem te ver primeiro

Como dantes tão afeiçoado
Sonho apenas em escapar
à minha angústia intranquila
e voltar à nossa pobre casa.

Eu voltarei, quando estender os ramos
na Primavera o nosso jardim branco.
Só te peço que, de madrugada,
não me acordes como oito anos atrás.

Não acordes aquele que esgotou todos os sonhos,
não perturbes aquele que não se realizou-
demasiado cedo o sofrimento e o cansaço
encheram totalmente a minha vida.

E não me ensines orações. Não é preciso!
Não se pode já voltar atrás.
Tu sozinha me és ajuda e conforto,
Tu sozinha me és inefável luz.

Assim, esquece, pois as tuas angústias,
não fiques tão triste por minha causa.
Não vás tantas vezes à estrada
com o teu casacão fora de moda.

(Serguéi Iessénine)

domingo, setembro 05, 2010

Uma culpabilidade profunda incrusta-se em todo o seu ser..

“ O paranoico projecta para os exterior as suas pulsões, atribuindo-as a um objecto, tornando-se ele a vítima dos afectos hostis que emanam agora do objecto e recaem sobre ele: o seu ego tende a diminuir ou encolher. Se extrapolarmos para o caso português, o sujeito «vive-se»
como um zero social e pessoal, um falhado, e queixa-se de tudo e todos-
queixa-se do «país» nunca de si próprio. Abre-se aqui uma esquize, uma fenda no eu, porque ele pertence e não pertence ao «país». Uma culpabilidade profunda incrusta-se em todo o seu ser: culpabilidade por ser o que é, e o que não é, por tudo e por nada, pesada e difusa ao mesmo tempo.
O resultado da acção destas duas forças contraditórias forma um extraordinário sistema de impasses que aprisiona e molda a subjectividade. O eu dilatado tende a embater contra os outros eus que
também introjectaram o mundo – o que levaria a conflitos abertos entre os indivíduos e à erosão da coesão social. Mas como a tendência contrária prevalece, o laço social tece-se em práticas de projecção do «mal», da ameaça que incide nas relações humanas,« no país». Isso mesmo reactiva perversamente o laço social : queixamo-nos do «país», queixamo-nos do «outro» a cada um dos outros reais, que fazem o mesmo. A relação real neurótica que levaria ao conflito é projectada no imaginário, a realidade( dos outros)é desrealizada ( no outro). Assim se cria um plano sonhado a que corresponde um plano prático: o queixume delirante constitui também um modo de justificar todo o pragmatismo  da sobrevivência, o não-cumprimento da lei, a irresponsabilidade, o «desenrasque» a esperteza na acção.”

(José Gil- Em busca da identidade. O desnorte)

quarta-feira, setembro 01, 2010

É a mão que percorre as linhas da frase...

                                 (José Malhoa)

A Poesia                          


É uma luz que desce a escada do poema e
se senta à porta, esperando que o dia entre
para dentro da estrofe.


É uma voz que se encosta ao corrimão
da palavra, e sobe sílaba a sílaba até chegar
ao patamar do verso.


É o eco que nasce de um canto perdido
nos quintais do poema, e atrai pássaros
para dentro desta imagem.


É a mão que percorre as linhas da frase,
como se fossem linhas da vida, e decide
em cada cesura um ponto final.


Como se a poesia nascesse do silêncio, ou
um grito a empurrasse para a vibração
de um último eco.


(Nuno Júdice- Guia de Conceitos Básicos)

segunda-feira, agosto 30, 2010

E o poema cresce ....

                                (Gaugin)


Sobre um Poema
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, 
a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne

(Herberto Helder)

sexta-feira, agosto 27, 2010

Assim as flores no jardim não morrerram...

QUÍMICA                     (Monet)

Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende.


(José Saramago)


Nuns dias de lazer e de moleza, com a serra da Estrela bordejando todo o horizonte, e mergulhada, tardiamente, no "Ensaio sobre a Cegueira", apeteceu-me procurar de Saramago um poema na "reabertura" do "Aguarelas".

quinta-feira, julho 29, 2010

PAUSA em tempo de Estio


   (Aguarelas de Turner)


 Interromperei por uns tempos estas publicações. O calor que nos torna quase incapazes de devolver as acções necessárias à sobrevivência invade, de forma abrupta, o espaço do sonho, que passa a oscilar entre as imagens do árido deserto ou de um mar sem fim onde apetece permanecer. 
Resta pouco para além do desejo da sombra ou da espessura das paredes. 
Espero outros tempos em que a palavra ou a escolha se soltem e se acolham neste lugar.
Por enquanto ...."vou com as aves".

domingo, julho 25, 2010

Vi os teus olhos durante um pássaro lento

                                            (Marc Chagall)

vi os teus olhos durante um pássaro lento
que atravessou o céu e desapareceu atrás
da montanha.

olhando as nuvens, compreendi que eras
meu amigo durante árvores a crescerem
nos campos.

dentro do meu olhar, na terra fresca, havia
rochas que existiam desde o início da nossa
amizade.

(José Luís Peixoto- A casa, a Escuridão)

terça-feira, julho 20, 2010

o objecto inesgotável...

Rosa, em seu trono, pra os da Antiguidade
eras um cálice com um bordo simples.
Mas para nós és a flor plena, inumerável,
o objecto inesgotável.

Pareces  na opulência trajo sobre trajo
a envolver um corpo de nada mais que brilho;
mas cada pétala tua é a um tempo só
fuga e negação de toda a roupagem.

De há séculos teu perfume nos proclama 
os seus nomes de maior doçura;
de súbito, paira no ar como uma glória.

No entanto, não o sabemos nomear, adivinhamos...
E para ele passa a lembrança
que pedimos às horas invocáveis.

( Rainer Maria Rilke-  As Elegias de Duíno e Sonetos A Orfeu)

segunda-feira, julho 12, 2010

Comecei então a cantar uma canção feita...de luz e sombras...

                                        (Magritte)

Eu adormecia a pensar em Bartolomeu e acordava a pensar nele. Durante esses meses, a propósito, deixei de tomar comprimidos para dormir e voltei a sonhar. Descobri, sem surpresa, que partilhávamos sonhos. Sonhávamos com as mesmas coisas, nas mesmas noites, suponho que ao mesmo tempo, ainda que estivéssemos muito longe um do outro. às vezes ele começava um sonho, em Luanda, e eu terminava-o em Paris.Uma noite, por exemplo, sonhávamos ambos que um velho elefante corria ao longo do rio de águas barrentas. Na noite seguinte Bartolomeu sonhou que o animal se detinha exausto junto a uma grande árvore, com longos troncos quase horizontais, dos quais pendia  uma espécie de pequenos figos roxos. Deviam ser frutos muito doces porque os rodeavam persistentes enxames de minúsculas moscas pretas. Bartolomeu viu-me a voar das ramagens altas, com as minhas frágeis asas de tinta azul, e pousar no dorso do elefante. Comecei então a cantar uma canção feita inteiramente de luz e de sombras, ao invés de silêncios e de sons. Nas minhas canções- dizem alguns críticos, e eu concordo- são mais importantes os silêncios que os sons. Duas noites mais tarde, foi a minha vez de sonhar com o elefante. O velho paquiderme dormia, encostado à árvore. Dormiam também, rebrilhando sob a luz de um formidável sol de Dezembro, as águas ociosas do rio. Ouvia-se apenas, como uma toada gigante, o zumbido da pequenas moscas voltejando em redor dos figos. Então Bartolomeu surgiu de parte nenhuma, arrancou um dos figos e comeu-o.
(cont)
(José Eduardo Agualusa- Barroco Tropical)

quarta-feira, julho 07, 2010

É esse, e não outro, o caminho...

                             (Aguarelas de Turner-Delfos)

Entrarás em Delfos pela porta
secreta- a da serpente. É esse,
e não outro, o caminho
para o templo. Junto
à pedra
da ara colherás
o ouro exausto
do tempo e o sangue
inútil dos sacrifícios. E
saberás que amor
e morte são
a outra face do mito.

(Albano Martins- Castália e Outros poemas, 2001)

domingo, julho 04, 2010

Há outros que me sinto abismado em azul...

                             (Aguarelas de Turner)
Vou primeiro ao Baleal, que é a mais linda praia da terra portuguesa. Não passa duma grande rocha desligada da costa e fundeada a trezentos metros- mas esta rocha é uma ossada, e talvez o último vestígio da Atlântida, saindo do mar azul a escorrer azul, presa à terra por um fio de areia que nas marés mais vivas chega a desaparecer- Deste ancoradouro, com uma baía a sul formada pelo Carvoeiro e com outro côncavo ao norte entre a rocha e a costa, vê-se o esplêndido panorama da terra, do mar e do céu. Vive-se extasiado e embebido em azul, no meio do mar azul, no meio do mar verde, no meio do mar dramático. Voga-se em toda a luz do céu e em toda a cor do mar. Dum lado o areal em circo e aquele grande morto estendi do pelo mar dentro; do outro, e até onde a vista alcança, todos os tons da costa, negras dos rochedos, com riscos de vermelho, até ao biombo que vai passando e desmaiando, primeiro roxo com aldeias ao sol e fundos verdes de pinheiros, depois transparente até atingir o indistinto e o diáfano numa última palpitação de claridade nubelosa. E tudo isto muda de cor e se transforma segundo as horas que passam. Há momentos que é doirado, de manhã ou à hora do poente. Há outros que me sinto abismado em azul e atascado em azul. (...)

(Raúl Brandão- Os Pescadores)

quarta-feira, junho 30, 2010

Cada peixe tem a sua época...

PEIXES

A raia, para ser boa, deve ser comida de caldeirada de pitau (Mira), menos em Maio, porque «raia em Maio, tumba à porta», e a faneca com três fff-fresca, fria e frita. Cada peixe tem a sua época: « A solha, no tempo do milho, come-a com o teu amigo», a sardinha antes da desova e o próprio caranguejo só lá para Agosto é que, assado na casca, atinge a perfeição. Mas todo o peixe regala quando sai da rede para o lume: tem um sabor único a mar, e até a reluzente salvelha e o horrível cação, lavados e amanhados na maré, se tornam toleráveis. Quanto ao linguado, ao goraz, à corvina, à gordíssima sarda, à pescada e à saborosa sardinha, para não falar dos peixes hoje quase desaparecidos, do rodovalho, do peixe-rei, ignora-lhes o sabor e o delicado perfume quem os não trouxe do barco para casa, ainda a escorrer dentro do cabaz, sobre uma cama de algas e de limos. São tão esplêndidos assados, fritos, de caldeirada, com um fio de azeite ou preparados pelo próprio pescador sobre as brasas.
(Raúl Brandão- Os pescadores- Pequenas notas)

segunda-feira, junho 28, 2010

É um espectáculo extraordinário


              (Turner)
Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr do sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte com ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, neste ar tão carregado de salitre que torna a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados...
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas-e não quer morrer...

(Raul Brandão- Os pescadores- Pequenas Notas)

sexta-feira, junho 25, 2010

Todas as cores uniste...

                                (Aguarelas de Turner)
                                
                             Da inocência  à confiança
                             da claridade à fidelidade
                             do sonho à consciência
                             da beleza à bondade
                             da poesia ao amor
                             do amor à verdade
                             da solidão à harmonia
                             da angústia à liberdade
                             todas as cores uniste
                             num arco-irís fraternal

(António Ramos Rosa- Não posso adiar o coração)

domingo, junho 20, 2010

ah se não fosse cedo de mais para a morte...

                              (Aguarelas de Turner)

AH SE NÃO FOSSE

Ah se não fosse o medo
e as nesgas da sorte
ah se não fosse cedo
de mais para a morte
ah se não fosse o muro
a limitar o espaço
ah se não fosse o futuro
amanhecer tão baço
ah se não fosse a idade
e a tensão alta
ah se não fosse a liberdade
fazer tanta falta
ah se não fosse o mundo
estás a ver
ah se não fosse tudo
e o mais que vier.

(Espelho Íntimo- Torquato da Luz)

Parto por uns dias, poucos...Deixo-vos este belo poema de um amigo deste canto, T.L.

sábado, junho 19, 2010

Imagine-se o tamanho que terão as orelhas das estrelas..

(....)
Costuma-se dizer que as paredes têm ouvidos, imagine-se o tamanho que terão as orelhas das estrelas. Fosse como fosse, eram horas de ir para a cama, os lençóis e as mantas dela as roupas que tinham vestidas, o importante era que não lhes chovesse em cima, e isso tinha-o conseguido o comandante indo de casa em casa a pedir que dessem abrigo, por esta noite, a dois ou três dos seus homens, que por ali tinham andado, atraídos pela novidade do elefante, do qual, por medo, não conseguiriam aproximar-se a menos de vinte passos. Enrolando com a tromba uma porção de forragem que bastaria para satisfazer o primeiro apetite de um esquadrão de vacas, salomão, apesar da sua vista curta, lançou-lhes um olhar severo, dando claramente a entender que não era um animal de concurso, mas sim um trabalhador honrado a quem certos infortúnios, que seria demasiado longo relatar aqui, haviam deixado sem trabalho e, por assim dizer, entregue à caridade pública. Ao princípio, um dos homens da aldeia, por bravata, ainda deu uns quantos passos para além da linha invisível que logo iria tornar-se em fronteira cerrada, mas salomão despachou-lhe um coice de aviso que, embora não atingindo o alvo, deu lugar a um interessante debate entre eles sobre famílias ou clãs de animais. Mulas, mulos, burros, burras, cavalos, éguas, são quadrúpedes que, como toda a gente sabe, e alguns por dolorosa experiência, dão coices, o que bem se compreende, uma vez que não dispõem de outras armas, quer ofensivas quer defensivas, mas um elefante, com aquela tromba e aqueles dentes, com aquelas patorras enormes que lembram martelos-pilões, ainda por cima, como se fosse pouco o que tem, é capaz de escoicear. Sugere a mansidão em figura quando se olha para ele, porém, caso seja necessário, poderá tornar-se uma fera. De estranhar é que, pertencendo à família dos animais acima mencionados, isto é à família dos animais que dão coices, não leve ferraduras. Afinal, disse um dos camponeses, um elefante não tem muito que ver, dá-se-lhe uma volta e já está. Os outros concordaram. Dá-se-lhe uma volta e fica tudo visto.(...)

(José Saramago- A Viagem do Elefante)

Deixemos Saramago na memória dos nossos filhos e dos nossos netos

quinta-feira, junho 17, 2010

Deixei o anzol em casa...

As Férias                                (Aguarelas de Turner)

Deixei o anzol em casa
e a isca, nem tive tempo de pensar,
mas o dia tem uma brandura de asa
- vou pescar.

Pesca sem azol nem isca.
Ter férias, tem, quem sente
a vida que mordisca
a linha negligente.

Ao pescador que se deixe
a tarefa de pescar.
Ter férias é deixar o peixe
ter suas férias no mar.

Hoje, a suavidade
da areia e do sol.
Amanhã, a cidade

(Sidónio Muralha)
E o anzol.


Para todos os que esperam ardentemente as férias e, para mim, que este ano, quase não as terei...

segunda-feira, junho 14, 2010

A cor das flores não é a mesma...

XXIX

Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
Do que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor de sombra.

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente  sobre os mesmos pés-
O mesmo de sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...

(Alberto Caeiro- O Guardador de Rebanhos)

domingo, junho 13, 2010

Aniversário de Pessoa - Poema em linha recta

sábado, junho 12, 2010

Hoje é noite de música...

quarta-feira, junho 09, 2010

« Que suis-je pour elle?»

                               (Monet) 
 (...)
 A mamã suspirou e ficou pensativa. O papá calou-se. Durante a conversa deles, eu sentia-me muito desconfortável.
 Depois do almoço fui para o jardim mas não levei a espingarda. Jurei a mim mesmo que não me aproximaria do « jardim Zassékin», mas uma força irresistível atraía-me para lá- e não era em vão. Mal me aproximei da cerca, vi Zinaída. Dessa vez estava sozinha. Com um livro na mão, andava devagar pela vereda. Não me viu.
Estive quase a deixá-la ir embora, mas caí em mim e tossiquei.
Virou a cabeça mas não parou, sacudiu da cara a larga fita azul-clara que lhe pendia do chapéu de palha redondo, olhou para mim, sorriu ao de leve e mergulhou de novo na leitura.
Tirei o boné e, depois de uns instantes de hesitação, dei meia volta e fui-me embora com a amargura no coração. « Que suis-je pour elle?»,pensei em francês, só Deus sabe porquê.
Nas minhas costas soaram passos familiares; olhei e vi o meu pai a aproximar-se com o seu andar rápido e suave.
- Aquela é que é a jovem princesa?-perguntou-me.
-É.
-Conhece-la?
Vi-a hoje de manhã, em casa delas.
O meu pai parou e, girando bruscamente nos tacões, voltou para trás. Quando chegou perto de Zinaída fez-lhe uma vénia educada. Ela retribui-lhe o cumprimento também com uma vénia e, com um certo espanto, baixou a mão com um livro. Vi como ela o seguia com o olhar. O meu pai vestia-se sempre com muita elegância, de maneira original e simples; mas nunca a sua figura me pareceu tão esbelta como dessa vez, nem o bonito chapéu cinzento lhe ficou tão bem a cobrir-lhe os caracóis quase tão fartos como na juventude.
Dei alguns passos até Zinaída, mas ela nem sequer olhou para mim; ergueu o livro e afastou-se.

(Ivan Turguénev- O Primeiro Amor)

Li da estante do meu pai " O Primeiro Amor" de Ivan Turguénev em anos de adolescência.
Que me terá ficado dessa leitura? Eis o que estou a tentar descobrir, depois de ter sido redespertada para esta obra por via de um blog de primeira qualidade que, desde o princípio, tem tido  o condão de me surpreender, de me maravilhar, e também, de me levar a discordar. Um blog que exerce um "efeito pensante", tendo a imensa qualidade de nunca me deixar indiferente. Um grande obrigada aqui a "Ponteiros Parados"!

segunda-feira, junho 07, 2010

Convicção e dúvida...

                                                (Aguarelas de Turner)
                                                 
" Convicção e dúvida, erro e verdade:
  são palavras, como bolhas de ar;
  brilhantes, ou baças: vazias,
  como a existência dos homens. "

 ( Omar Tchayyan - poeta persa-sec XI )

domingo, junho 06, 2010

O Benefício da Dádiva

sexta-feira, junho 04, 2010

O que vem a seguir não tem nome

Nas igrejas, ao menos aqui em Angola, é comum as pessoas dirigirem-se em voz alta às imagens de Cristo, da Virgem Maria, de qualquer santo, rogando, implorando, ou mesmo censurando-Os. Ninguém acha isso estranho. As imagens estão lá, afinal de contas como uma espécie de telefone público para o além. Um telefone público só com bocal, sem auricular. As pessoas podem interrogar as imagens, mas não têm direito a escutar as respostas. Quem se dirige a Deus é devoto; quem afirma ouvir a voz de Deus é maluco. Eu não sou nem devota nem maluca. Falo contigo para fingir que estou a falar comigo.
O vazio, tu sabes. O vazio e



O que vem a seguir não tem nome.

(José Eduardo Agualusa- Barroco tropical -cap. II- Segunda conversa com Santa Cecília)

Será tudo o que nos resta?

                                           (Magritte- o vestido de noite)

NO Reino do Pacheco
 (colaboração para um almanaque)

Às duas por três nascemos,
às duas por três morremos.
E a vida? Não a vivemos.

Querer viver ( deixai-nos rir!)
seria muito exigir...
Vida mental? Com certeza!
Vida por detrás da testa
será tudo o que nos resta?
Uma ideia é uma ideia
- e até parece nossa!-
mas quem viu uma andorinha
a puxar uma carroça?

Se  à ideia não se der
o braço que ela pedir,
a ideia, por melhor
que ela seja ou queira ser,
não será mais que bolor,
pão abstracto ou mulher
sem amor!

Às duas por três nascemos,
às duas por três morremos.
E a vida? Não a vivemos.

Neste Reino de Pacheco
- do que era todo testa,
do que já nada dizia,
e só sorria, sorria,
do que nunca disse nada
a não ser prà galeria,
que também não o ouvia,
do que, por detrás da testa,
tinha a testa luzidia,
neste reino de Pacheco,
ó meus senhores que nos resta
senão ir aos maus costumes,
às redundâncias, bem-pensâncias,
com alfinetes e lumes,
fazer rebentar a besta,
pô-las de pernas prò ar?

Por isso, aqui, acolá
tudo pode acontecer,
que as ideias saem fora
da testa de cada qual
para que a vida não seja
só mentira, só mental...

(Alexandre O' Neill)

quarta-feira, junho 02, 2010

Ferreira Gullar, prémio Camões

segunda-feira, maio 31, 2010

Quando Maio se despede...

                                 (Aguarelas de Turner)

Quando Maio se despede e as ruas de Lisboa
ainda se vestem de flores de jacarandá,
o ar exala um cheiro que já não há
em mais qualquer lugar e me atordoa.
É um aroma doce que embebeda
cedo pela manhã e não sossega
já noite dentro, até de madrugada.
Um odor que me parece querer dizer
que, enquanto ele durar, não tenho nada
que deva temer.


(Torquato da Luz) 


Atrevo-me a dizer que se Torquato da Luz é um  poeta do Amor, é também um dos  poetas da cidade de Lisboa. E  se  Lisboa tem as cores todas da vida, tem uma, inesquecível, o belo lilás perfumado  do Jacarandá. 
Dias há, em que  as cores, os aromas e os poetas são, por demais, necessários. Eles fazem-nos crer que a réstia de luz, que tudo atravessa,  tem uma força imensa.
Como não me foi possível estar no lançamento do novo livro de T.L.- "Espelho íntimo", deixo aqui esta pequena nota de amizade.

sábado, maio 29, 2010

e não soubemos ir até ao fundo da verdura...

  
                              (Aguarelas de Turner)

A mão no arado

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.


(Rui Belo)

terça-feira, maio 25, 2010

Poisei na margem desta folha uma candeia...

Uma candeia

Poisei na margem desta folha uma candeia, para que se tornassem mais claras as palavras deste texto. Uma candeia também ela feita de palavras e que, contrariamente às aparências, não está na margem mas dispersa nas palavras, de tal forma que, se eu falar das praias, por exemplo, o próprio olhar dos leitores torna visíveis os contornos dos banhistas.


(Luís Miguel Nava- O céu sob as entranhas, 1989)

domingo, maio 23, 2010

o cão de colo que me perdoe...

                                       (Lucien Freud)

(...)                                    
é esquecer o que acabou de se fazer

é dar as costas à felicidade e o virar de cara ao
infortúnio

ser razoável é ser medíocre e ser medíocre é pior que
mau

é melhor que bom

e é igual a qualquer coisa

dá-me antes outro murro para retomar os sentidos e
me lembrar que no extremo está a virtude

nos pólos está mais frio e as criaturas são mais brancas

mais pretas

com mais chifres

e mais longe de casa porque abominam o que é
doméstico

o cão de colo que me perdoe mas sou o urso polar
o esquimó fresquinho que o menino não chega a
lamber porque está no fundo da arca para além do rio
mais gelado e do pingo do nariz

chamar-me a mim razoável é chamar ao homem
selvagem e à mulher      mulher dele

chamar-me a mim razoável é chamar a vós também
que levais os ouvidos tapados

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que não há hipótese de mudar isto para melhor

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que não há hipótese de mudar isto para pior

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que estamos a mudar tudo para mais ou menos

exijam o murro em plena face
gritem pelo murro

façam o abaixo-assinado pelo murro

mil milhões de assinaturas pelo murro em plena face

recebamo-lo com um sorriso com menos dentes
e sangue a escorrer livre

e o sangue que nos escoa da boca vai dar cor a isto

vai-vos sujar os casaquinhos imaculados que se
venderão a preços simbólicos nas feiras e por maquias
estratosféricas nas lojas de haute-couture

e      na impossibilidade de encontrar o equilíbrio

o conforto

o quentinho

o meio

encontramos a humanidade que é feita de defeitos

amores impossíveis

rotas ocasionais

céus carregados

searas em chama

florestas virgens

assomos de bravura

loucuras temporárias

e tranquilidades passagueiras


e tu     que levas os dentes partidos só porque alguém
não te quis perfeito     sabes agora a importância  de
saber

tu           que lavas a boca no chafariz na despedida do
incisivo     sabes agora ao que vens

ao que venho

ao que vimos

sabes agora que somos

somos tudo

somos completamente tudo

somos o que sobra do sorriso depois dos dentes se
afogarem pela rapidez do rio

( João Negreiros- A Verdade dói e pode estar errada)

O "Murro" de João Negreiros não mereceria nunca uma incompleta transcrição. Leiam-no até ao fim e depois, voltem a lê-lo uma vez mais. Creio que nunca mais se irão esquecer dele. Tenho quase a certeza.

sábado, maio 22, 2010

ontem disseram-me que eu era razoável...

O murro

ontem disseram-me que eu era razoável e eu parti
todos os dentes a quem me disse tal coisa

é que não aguentei

 porque não insultou  a minha mãezinha e seus hábitos
conjugais como eu estava à espera?

porque não insultou a minha mãezinha afirmando
que todos os homens do globo poderiam ser o meu
paizinho?

porque não me disse que cheirava mal?

porque não me inventou uma corcunda?

porque não aproveitou       conjugando as duas
correntes    e descreveu minha mãezinha como
um ser desprovido de higiene e com protuberâncias
dorsais que rivalizariam com os picos da Europa?

chamar-me a mim razoável?

eu que sou extraordinário de tão ruim

eu que estou nos pólos com os iões

eu que faço tudo para me destacar

violo meninas em plena avenida para depois salvar
o mundo

dou o antídoto aos venenos e o veneno sem antídoto

mato pessoas que idolatro e amo tudo a quem não
gosto


eu que sou magnânimo na intermitência da ruindade

eu     rei dos povos e súbdito dos mendigos

eu sou o contrário do razoável

ninguém me ama com medo de se apaixonar

todos me batem com jeito de açoitar o puro-sangue
que se habituou ao cheiro da glória que não se quer
render á vida para procriar

eu sou o Deus triste que está na lama das estrelas

o imperador de palácios vazios

o vagabundo de séquito interminável

a divindade a quem faltam promessas

o risco sem medo

a justiça sem pecador

vivo para lá da lei na origem dos decretos

chamar-me a mim razoável quando sou limpo
sem razuras

sem razão

chamar coerente a quem inventou a loucura é dar pão
aos patos quando o mar está revolto

dá-me antes um murro em plena face
resvalando a jeito de me partir o nariz para depois
me tratares
com curativos pintados de bonecos de infância que
estava no armário dos medicamentos

ser razoável é pior que mau

é melhor que bom


e é igual a mais ou menos

ser razoável é nem sequer estar

é estar sem querer

é comer sem gosto

é borrar sem cheiro

é morrer sem choro

é cantar sem alma

é estragar  o que está precisamente maduro

(...)

(João Negreiros- A verdade dói e pode estar errada)

Descobri, infelizmente, a poesia de João Negreiros, há pouco mais de duas semanas. Infelizmente, porque cada dia que passa de desconhecimento relativamente a uma obra que se impõe, que "rasga" o espantoso universo poético que temos, para aí encontrar poiso, é um dia perdido. Hoje não poderia deixar de alertar os que aqui vêem para este poema-grito do qual deixo apenas uma amostra. Procurem-no, leiam-no, descubram-no, como eu estou a fazer. E desculpem os leitores e o poeta, por ter deixado, irrazoavelmente este grande "murro" por transcrever na íntegra. João Negreiros está de parabéns!

sexta-feira, maio 21, 2010

o ar é mais doce....

Intervalo

o ar é mais doce nos intervalos da água
mas para o peixe a água é mais doce nos  intervalos
                                                                    (do ar
mas para o peixe de água doce a água é mais doce nos
                                                   ( intervalos do mar

 (João Negreiros- a verdade dói e pode estar errada)