sábado, dezembro 31, 2011

Uma boa despedida...

 (Aguarelas de Turner)

2012 é para todos nós um ano especial. Se o vislumbramos com uma particular desesperança (realisticamente falando) ele, pode ser, para cada um de nós, um motor para que deixemos aquela atitude de moleza e alguma indiferença que tantas vezes nos tem caracterizado, e acordemos a capacidade de nos indignarmos com tudo o que é injusto e violento.
Um 2012 vivo e cheio de energia ...para todos os meus amigos.

quarta-feira, dezembro 28, 2011

é o que por essa música encoberta acena em vão do outro lado dela....

                   (Aguarelas de Turner)

 Por Entre os Sons da Música

Por entre os sons da música, ao ouvido
como a uma porta que ficou entreaberta
o que se me revela em ter sentido
é o que por essa música encoberta

acena em vão do outro lado dela
e eu sinto como a voz que respondesse
ao que em mim não chamou nem está nela,
porque é só o desejar que aí batesse.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'

sexta-feira, dezembro 23, 2011

Luzes de Natal

As luzes estão apagadas na nossa cidade. Sinal de luto por tudo o que estamos e vamos ter de passar? Manifestação de obediência à ditadura do capital? Diria que nunca vi Lisboa assim, eu que sou uma lisboeta de gema. A perspectiva economicista infiltra-se em todas as áreas da nossa vida. As pessoas estão definitivamente esquecidas. Nenhum destes decisores "iluminados" questiona sequer o efeito da insensibilidade e da indiferença sobre o ser humano. Convertem-se em cifrões os dias de trabalho que estão a ser  arrancados, convertem-se em cifrões o aumento das taxas moderadoras, convertem-se em cifrões as luzes que se apagam...Muito enganados estão aqueles que julgam que através da força opressora atingem os seus desígnios. Apagar as luzes da Vida tem um preço muito alto e, até agora, a História mostra que ninguém as conseguiu efectivamente apagar.
Por isso, para todos os meus amigos, acendo aqui as luzes da "minha" Lisboa sem luz.

quinta-feira, dezembro 22, 2011

quarta-feira, dezembro 21, 2011

Só os olhos ainda são humanos...

                    (Júlio Pomar)
Canto Peninsular

Estar aqui dói-me. E eu estou aqui
Há novecentos anos. Não cresci nem mudei.
Apodreci.
Doem-me as próprias raízes que criei.

Foi a guerra e a paz. E veio o sol. Veio e passou
a tempestade.
Muita coisa mudou. Só não mudou
Este monstro que tem a minha idade.

E foi de novo a guerra e a paz. Muita coisa mudou
Em novecentos anos.
Eu é que não mudei. Nestre monstro que sou
Só os olhos ainda são humanos.

Quantas vezes gritei e não me ouviram
Quantas vezes morri e me deixaram
Nos campos de batalha onde depois floriram
Flores e pão que do meu sangue se criaram.

Andei de terra em terra
Por esse mundo que de certo modo descobri
E fui soldado contra a minha própria guerra
Eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.

Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.
Tive o mundo nas mãos. E sempre passei fome.
Eis-me tal como sou há novecentos anos
Eu que não sei escrever sequer o próprio nome.

Falam de mim e dizem: é um herói.
(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri)
Mas nunca ninguém disse a razão por que me dói
Estar aqui.

(Manuel Alegre- Praça da Canção)

Só os olhos ainda são humanos...

                    (Júlio Pomar)
Canto Peninsular

Estar aqui dói-me. E eu estou aqui
Há novecentos anos. Não cresci nem mudei.
Apodreci.
Doem-me as próprias raízes que criei.

Foi a guerra e a paz. E veio o sol. Veio e passou
a tempestade.
Muita coisa mudou. Só não mudou
Este monstro que tem a minha idade.

E foi de novo a guerra e a paz. Muita coisa mudou
Em novecentos anos.
Eu é que não mudei. Nestre monstro que sou
Só os olhos ainda são humanos.

Quantas vezes gritei e não me ouviram
Quantas vezes morri e me deixaram
Nos campos de batalha onde depois floriram
Flores e pão que do meu sangue se criaram.

Andei de terra em terra
Por esse mundo que de certo modo descobri
E fui soldado contra a minha própria guerra
Eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.

Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.
Tive o mundo nas mãos. E sempre passei fome.
Eis-me tal como sou há novecentos anos
Eu que não sei escrever sequer o próprio nome.

Falam de mim e dizem: é um herói.
(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri)
Mas nunca ninguém disse a razão por que me dói
Estar aqui.

(Manuel Alegre- Praça da Canção)

sábado, dezembro 10, 2011

Concurso de Natal 2011- Camelos do Presépio-VII


Foi com grande esforço que este meu camelo chegou a estas paragens. Queria mesmo desviar-se desta rota tão funesta...mas a perspectiva de poder receber alguma recompensa fê-lo ceder às tentações e desviar-se dos seus princípios éticos decidindo contribuir para engrossar as hostes dos mui bem pensantes que caminham já em direcção ao presépio. Veremos se a sorte o presenteia...
Atenda a tudo o que ele teve de passar: traz ainda sinais da areia do deserto, da chuva copiosa que o atormentou, bem como das noites longas e infinitas que lhe serviram de manto.

um abraço ao ilustre organizador-A Barbearia do Senhor  Luís-e a todos os que peregrinam nesta direcção......

Addiragram

sexta-feira, dezembro 09, 2011

Uma ausência que entrava nela como uma claridade...



                    (Magritte)
E as rosas faziam-lhe falta. Haviam deixado um lugar claro dentro dela. Tira-se de uma mesa limpa um objecto pela marca mais limpa que ficou então se vê que ao redor havia poeira. As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro dela. No seu coração, aquela rosa, que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar ninguém no mundo, faltava. Como uma falta maior.
Na verdade, como a falta. Uma ausência que entrava nela como uma claridade. E também ao redor da marca das rosas a poeira ia desaparecendo. O centro da fadiga se abria em círculo que se alargava.

(Clarice Lispector)

segunda-feira, dezembro 05, 2011

Na vindima de cada sonho...

               

                           (Marc Chagall)
                     Confiança

               O que é bonito neste mundo, e anima
                É ver que na vindima 
                De cada sonho
                Fica a cepa a sonhar outra aventura...    
                E que a doçura
                Que se não prova
                Se transfigura
                Numa doçura
                muito mais pura
                E muito mais nova...

                       (Miguel Torga)

sábado, dezembro 03, 2011

A luz entrou pela janela..

          (Hammershoi)

A luz entrou pela janela,
Vinda do sol lá no alto,
E assim dentro do meu quartinho
Mergulharam os raios do Amor.

Nos feixes de luz eu vi claramente
O pó que tu raramente vês,
Do qual o inominável tira
Um nome para alguém como eu.


Vou tentar dizer um pouco mais:
O amor seguiu o seu caminho
Até chegar a uma porta aberta-
Então o próprio Amor desapareceu.


Agitadas na luz do sol
As partículas pairavam e dançavam,
E eu juntei-me a elas
Numa circunstância informe.


Depois regressei do lugar onde estivera
O meu quarto estava na mesma-
Mas já nada restava entre o inominável e o Nome


Vou tentar dizer um pouco mais:
O amor seguiu o seu caminho até chegar a uma porta aberta-
Então o Próprio Amor desapareceu.


(Leonard Cohen- Livro do Desejo)



segunda-feira, novembro 28, 2011

E o ar que te respira deixa de esperar...

   

                                   (Sorolla)
Ao lado da janela,
                                        desconhecida dormes.
                                        Com o sono
                                        -ponte de vidro-
                                         e o teu pé nu.
                                         E o ar que te respira
                                         deixa de esperar

                                         o azul da luz do dia.

(João Camilo- A Ambição Sublime)

domingo, novembro 27, 2011

Sonhos-Caetano Veloso

sábado, novembro 19, 2011

A harmonia queima...

   (Abelardo Morell)
Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
São loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
E terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer,
A boca fica em chaga.

(Herberto Helder- Última Ciência)

terça-feira, novembro 15, 2011

Desejei-te pinheiro à beira-mar...

                           ( Ladmore)
 Paisagem


Desejei-te pinheiro à beira-mar
para fixar o teu perfil exacto.

Desejei-te encerrada num retrato
para poder-te contemplar.

Desejei que tu fosses sombra e folhas
no limite sereno dessa praia.

E desejei: «Que nada me distraia
dos horizontes que tu olhas!»

Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.

(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)


David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"

domingo, novembro 13, 2011

Tornei-me perfeitamente frequentável em amor...


(...)
Chegou, portanto, o momento de fazer o balanço da minha vida. Que fiz de bom, e de menos bom? Em que fui bem sucedido, em que falhei?
O domínio que obtive menos sucesso, devo confessar, foi o amor. Por uma razão misteriosa, não soube amar as mulheres como devia ter amado. Foi como se tivesse permanecido demasiado tempo à superfície- nem sempre é assim. É um dos meus maiores desgostos.
Quando era jovem, tinha a cabeça recheada de ideias imbecis a este respeito. O amor era uma coisa que o homem impunha à mulher pois ela era por essência recalcitrante. A única maneira de proceder, era subjugá-la.
 Uma história de amor era em primeiro lugar uma história de uma conquista, depois a de uma ocupação. Uma pura relação de força na qual o homem tinha interesse em se manter na posição dominante. Estava fora de causa deixar-se arrastar, mesmo depois dela ter cedido. Sendo legítimo o seu domínio, o homem devia "vigiar" constantemente a sua conquista, devia mantê-la sob guarda se quisesse evitar que ela se rebelasse. Impossível imaginar uma relação harmoniosa, uma relação baseada na troca, ou numa qualquer igualdade entre parceiros.
Ainda hoje me pergunto de onde me vinham estas ideias idiotas que deterioraram as minhas histórias de amor até aos trinta anos. Com esta concepção imperialista na cabeça, esforçava-me por me me conduzir como uma potência ocupante. A minha actividade amorosa resumia-se a procurar um domínio a conquistar. Resultado. amava, por vezes como um louco, mas não era amado. Ou antes, mesmo quando era amado- chegou a acontecer- não me permitia sentir-me amado. Porque teria, nesse caso que depor as aramas e aceitar deixar de ser comandante de bordo. 
 As histórias que vivi nessa época de grande imbecilidade deixaram-me um horrível sabor a frustração. Por exemplo, tinha a convicção íntima que as mulheres eram feitas de tal maneira que não se interessavam absolutamente nada pelo amor físico. Mas não era só o sexo que estava em causa. Elas não se interessavam na realidade por nada. Apenas aceitavam  ir dar um passeio, ver um filme, ou jantar num restaurante agradável. Enquanto eu, pelo meu lado, era capaz de sentir um real prazer em sair para namorar, jantar fora...
Acontecia, bem entendido, que uma mulher ficasse encantada por partilhar estas coisas comigo, e mesmo sentisse realmente vontade de fazer amor. mas eu mantinha a linha imperialista sem tergiversar. Nem me deixar perturbar e ainda menos influenciar.Que tristeza ter perdido tanto tempo e tantas oportunidades de felicidade! Vinte anos mais tarde, ainda me resta alguma coisa de tudo isto: a minha mulher queixa-se frequentemente de que não sei deixar-me amar... Felizmente acabei por me libertar destas ideias grotescas. Por volta dos trinta anos, dei um salto quântico que me projectou a anos-luz, num universo encantado em que as mulheres eram dotadas de inteligência e podiam partilhar comigo uma imensidão de interesses comuns. Deixei de avaliar a mulher pela bitola de um modelo ideal e do qual ela só podia sair derrotada. Compreendi que o óptimo, no amor como em tudo, é inimigo do bom e que a procura de perfeição é deletéria.
Tornei-me por fim capaz de viver verdadeiras histórias de amor com mulheres que eram iguais a mim, humana e intelectualmente. Consegui abandonar o papel frustrante de "tutor". Fiquei a saber que havia mais prazer em dar e receber do que em dominar e impor-se pela sedução. Em suma, tornei-me perfeitamente frequentável em amor.

(David Servan-Schreiber- antes de dizer adeus)


Há alguns anos atrás fiz um poster neste blog com uma passagem do livro Anti-Cancro de David Servan-Schreiber. Sempre que alguém próximo se via mergulhado nessa luta desigual contra esta doença, fiz sempre questão de lhe oferecer um exemplar daquele livro. Era e é para mim a expressão inteligente da esperança, esperança fundamentada em numerosas investigações em áreas complementares à medicina, que permaneciam inacessíveis ao grande público. 
 Quando há pouco tempo tive conhecimento da morte de David, vi-me a questionar a validade do conteúdo da obra. Acreditara que ele conseguira vencer o seu cancro. Desejamos sempre encontrar soluções mágicas e quando tal não acontece, de repente, duvidamos de tudo o que críamos. 
Foi-me pois indispensável ler o seu último livro, um livro-testamento, que é escrito com uma coragem e verdade invulgares, respondendo, nos mais diferentes ângulos, às dúvidas que me  assaltaram e deixando a todos os que o lêem o sentimento  do amor pela vida.

terça-feira, novembro 08, 2011

Sobem dois perfumes...

                                           (Monet)

Chovem duas chuvas:
de água e de jasmins
por estes jardins de flores e nuvens.


Sobem dois perfumes
por estes jardins:
de terra e jasmins,
de flores e chuvas.


E os jasmins são chuvas
e as chuvas, jasmins,
por estes jardins
de perfume e nuvens.


(Cecília Meireles)

domingo, novembro 06, 2011

Dans ma rue.....

sábado, novembro 05, 2011

Na foz é que há a aventura....

A morte da água  

Um dos passeios que mais gosto de dar é ir a esposende ver desaguar o cávado. Existe lá um bar apropriado para isso. Um rio é a infância da água. As margens, o leito, tudo a protege. Na foz é que há a aventura do mar largo. Acabou-se qualquer possível árvore geneológica, visível no anel do dedo. Acabou-se mesmo qualquer passado. É o convívio com a distância, com o incomensurável. É o anonimato. E a todo o momento há água que se lança nessa aventura. Adeus margens verdejantes, adeus pontes, adeus peixes conhecidos. Agora é o mar salgado, a aventura sem retorno, nem mesmo na maré cheia. E é em esposende que eu gosto de assistir, durante horas, a troco de uma imperial, à morte de um rio que envelheceu a romper pedras e plantas, que lutou, que torneou obstáculos. Impossível voltar atrás. Agora é a morte. Ou a vida. 

(Rui Belo)

sábado, outubro 29, 2011

Na manhã débil, sem alvorada...

sábado, outubro 22, 2011

De súbito avistamos irisado o Tejo....

    (Aguarelas de Turner)

Aqui e além em Lisboa- quando vamos
Com pressa ou distraídos pelas ruas
Ao virar da esquina de súbito avistamos
Irisado o Tejo:
Então se tornam
Leve o nosso corpo e a alma alada

(Sophia de Mello Breyner- 3º Andamento)

terça-feira, outubro 11, 2011

ave matutina, ouve-me...

 Última Canção
Se puderes ainda
ouve-me, rio de cristal, ave
matutina,
ouve-me,
luminoso fio tecido pela neve,
esquivo e sempre adiado
aceno do paraíso.
Ouve-me, se puderes ainda,
Devastador desejo,
fulvo animal de alegria.
Se não és alucinação
ou miragem ou quimera, ouve-me
ainda: vem agora
e não na hora da nossa morte
- dá-me a beber a própria sede. 


(Eugénio de Andrade)

sexta-feira, outubro 07, 2011

Mas Lisboa não deixa de ser uma cocaína feliz...


     (Eduardo Salavisa)
Tinham-se em pé num terreno roubado ao Tejo e se não tinham preço, pelo menos, tinham um fim. Estou certa, recorda Pia, que devem ter partido tão tristes e tremido como varas verdes quando foram levadas do Terreiro de Paço, uma vez que nunca trataram por cima do ombro nenhum lisboeta.

Ora, não há pedra inteligente e delicada que não sinta pena de não estar ligada a alguma coisa real. E a memória de uma pedra é bem capaz de ser como um cesto de desagradáveis inquietações. E foi o que aconteceu, parece-me, às duas colunas.

Senão vejam. O cais da Pedra mais não foi que uma exaltação erótica da corte de D.Manuel e a Casa da Índia, mesmo tão perto, era o resultado de um tempo artificial mas que sustentava um poderoso negócio como quem sustenta um ceptro ou uma amante.

Mas as duas colunas, Pia, não são desse tempo. E se me disseres que o dormitório do convento de S.Domingos, o mosteiro do Restelo, a Torre de S. Vicente de Belém ou as tercenas navais se adaptaram imensamente felizes ao rio, eu concordo. Agora, as duas colunas colocadas anos mais tarde naquele local, não!

Ora, ora, tinham nos braços o Tejo. Tinham-no como quem nos braços uma paixão mas também como quem sabe que com ela chegará mais dia menos dia à infelicidade.

As tuas palavras, diz-lhe Napoleana, têm fé. Mas repara que ter amores com, ter o berço em, ter cabeça para, ter dono, ter dúvidas, ter na mão, ter juízo, ter um dote ou ter o diabo no corpo são apenas razões que militam a favor e contra a felicidade.

Mas eu não entendo a vossa inquietação e mágoa pelo desaparecimento das duas colunas do Terreiro do Paço. Desapareceram e pronto! À justa, nem mais nem menos, a uma hora justa foram-se! E se calhar há na sua fuga a alegria de fugir.

Bem observado Matusalém. Anda meia Lisboa a engolir este desaparecimento com as teorias mais conspirativas quando o que devia engolir era o simples facto de as duas colunas terem adivinhado o momento preciso, exacto, da sua fuga.

Mas todos vocês se recordam de ouvir falar da polémica que agitou e ondulou a cidade quando voltaram a colocá-las no Terreiro de Paço. Foi julgo, há trinta anos .Lembram-se?

Uns advogam que deviam voltar ao lugar inicial, outros não. Por sua vez, o poder político defendia que os últimos serão os primeiros e os primeiros os últimos. E os mais exaltados explicavam que as duas colunas tinham chagado às últimas, estavam nas últimas e era chegada a última hora.

E no meio de tanta profecia ouvida, sabem o que fizeram as duas colunas de pedra? Pois bem, eu  sei que elas resolveram fugir dali pelo seu próprio pé e de uma vez por todas.

Napoleona, Pompílio e Matusalém estão calados. E Pia conta que a coluna do lado esquerdo resolveu entrar pelo rio com a determinação de um pintor quando dá a última demão num quadro. Já a sua companheira escolheu deixar pela madrugada a praça e, sem ser vista, dirigiu-se a uma pedreira de Loures onde dias mais tarde foi desfeita pela ignorância de de alguém. E confesso-vos, agora contei a verdadeira história do desaparecimento das duas colunas do Terreiro do Paço, sinto um  fascínio triste por esta velhice urbana. Mas Lisboa não deixa de ser uma cocaína feliz.

(Carlos Mota de Oliveira- Logo, em Porto Formoso)

domingo, outubro 02, 2011

Se pone blanca con blanco de una mejilla de sal....

    (Imogen Cunnigham)

La Rosa Mudable

Cuando se abre en la mañana,
roja como sangre está.
El rocío no la toca
porque se teme quemar.


Aberta en el medio día
es dura como ele coral.
El sol se asoma a los vídrios
para verla relumbrar.
Cuando en las ramas empiezan
los pájaros a cantar
y se desmaya la tarde
en las violetas del mar,
se pone blanca, con blanco
de una mejilla de sal.
Y cuando toca la noche
blanco cuerno de metal
y las estrellas avanzan
mientras los aires se van,
en la raya de lo oscuro,
se comienza a deshojar.


(Federico García Lorca)

domingo, setembro 25, 2011

Não há então entre eles nenhum desnível...

 Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
Situar num mesmo poema o coração e a pele quase  podíamos
Erguer entre eles uma parede e abrir
Depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
De súbito em profundas minas, a memória
Das suas mais longínquas galerias
Extrai aquilo de que é feito o coração.


Ficávamos no quarto, onde por vezes
O mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
Paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.

(Luís Miguel Nava)

segunda-feira, setembro 12, 2011

Sentia dentro de mim como o amor é a coisa mais elevada....

   (Chagall)
Apesar da triste condição a que estávamos votados na nossa vida interior e exterior, registaram-se, embora esporadicamente, manifestações de uma tendência para nos concentrarmos no nosso íntimo. Seres sensíveis, habituados por natureza a uma existência espiritualmente activa, restava-nos a maravilhosa possibilidade de nos retirarmos daquele ambiente terrível, refugiando-nos num reino de liberdade espiritual e de riquezas internas. Assim, e só assim, se compreende o paradoxo de terem sido não raras vezes os de constituição delicada os que melhor suportaram a vida no campo-muito melhor que os dotados de uma natureza mais robusta.
Para tornar essas vivências mais ou menos compreensíveis, vejo-me de novo obrigado a referir-me a assuntos pessoais. Recordo-me de quando saíamos do campo de manhã cedo, para nos dirigirmos ao lugar de trabalho. Soava uma ordem:« Grupo de trabalho Weingut, em marcha! Esquerda, dois, três, quatro; esquerda, dois, três, quatro! Cabo de fila, filas direitas! Barretes de fora!» A memória faz com que aquelas ordens soem desta forma ao meu ouvido.Ao grito de « Barretes fora!» atravessávamos o portão do campo. Éramos focados pelos reflectores. Aquele que nesse momento não marchasse marcialmente e bem firme nas filas de cinco de fundo, podia contar com um pontapé. E com mais alguma coisa se, para se resguardar do frio, ousasse cobrir de novo as orelhas com o barrete, antes de a voz de comando o ter autorizado a fazê-lo.
Prosseguíamos em plena escuridão, tropeçando em grandes pedras e atascando-nos nos charcos da estrada que conduzia ao campo. As sentinelas que nos acompanhavam rugiam constantemente e picavam-nos com culatras das espingardas. Os que tinham os pés muito feridos agarravam-se ao braço de algum companheiro cujos pés doessem um pouco menos.  Mal trocávamos uma palavra; o vento gelado que soprava antes do nascer do sol não nos animava a isso. Com a boca enterrada na gola do casaco, eis que o camarada a meu lado começava a murmurar:
« Calcula o que aconteceria se as nossa mulheres nos vissem! Oxalá passem melhor nos seus acampamentos!» A figura de minha mulher surgiu diante de mim. Enquanto avançávamos aos tropeções, através de kilómetros de caminho, enterrando-nos na neve ou resvalando no gelo, amparando-nos constantemente uns aos outros, erguendo-nos mutuamente, ninguém pronunciava uma só palavra. Mas sabíamos que, àquela hora, cada um de nós só pensava na sua esposa. De vez enquando, olhávamos o céu, onde as estrelas empalideciam e a aurora começava a clarear por trás de uma muralha lúgrube de nuvens. Mas o meu espírito estava cheio da figura a que se agarrara graças a um esforço de minha inquieta e vivida fantasia. Naqueles momentos eu entabulava conversa com a minha mulher. Ouvia-a responder-me, via o seu sorriso e o seu olhar animadores, e- em carne e osso ou em fantasia- o seu olhar brilhava com mais intensidade que o Sol que acabava de nascer.  Pela primeira vez na minha vida compreendia a realidade daquilo que tantos pensadores classificaram como a quinta-essência da verdade de uma vida e que tantos poetas cantaram: sentia dentro de mim como o amor é, de certo modo, a coisa mais elevada que a existência humana pode alcançar. Compreendia agora o sentido daquilo que a poesia e o pensamento humano podem exprimir de mais sublime como compreendia o ensinamento da fé: a salvação das criaturas vem pelo amor e no amor! Compreendia finalmente de que modo o homem pode ser feliz, mesmo que nada lhe reste neste mundo, se se entrega intensamente à figura do ser amado.


(Viktor Frankl -Um Psicólogo no campo de concentração)

sexta-feira, setembro 09, 2011

Por entre os sons da música...

Por entre os sons da música, ao ouvido
como a uma porta que ficou entreaberta
o que se me revela em ter sentido
é o que por essa música encoberta

acena em vão do outro lado dela
e eu sinto como a voz que respondesse
ao que em mim não chamou nem está nela,
porque é só o desejar que aí batesse.


(Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1')

quarta-feira, setembro 07, 2011

encurva, na abstracta encruzilhada.....

Estrada de Fogo 

   (Aguarelas de Turner)
Pedra a pedra a estrada antiga
sobe a colina, passa diante
de musgosos muros e desce
para nenhum sopé;

encurva, na abstracta encruzilhada;
apaga-se, na realidade. Morre
como o rastilho do fogo,
que de campo em campo aberto

seguia, e ao bater na mágica cancela
dobrava a chama, para uma respiração,
e deixava o caminho do portal
incólume e iniciado.

(Fiama Hasse Pais Brandão, in "Três Rostos - Ecos")

sexta-feira, setembro 02, 2011

Fugidia substância que não é pergunta...

    (Matisse)

Uma forma elástica, quase vegetal
ou um desenho que germina, fugidia substância
que não é pergunta, que não é resposta,
porque nela se alia o esquecimento e a harmonia
e as figuras se confundem na luz e na sombra
e sem estrela ou caminho o que não tem a paz
é a paz ainda, orvalho do silêncio.

(antónio Ramos Rosa-Acordes)

terça-feira, agosto 30, 2011

As paixões são vibrações da alma...



David Hume, na sua Dissertação sobre as Paixões comparava a alma humana a um instrumento de cordas e não de sopro. Se ao cessar o sopro findava a música, tal não acontecia com o outro instrumento, cujas cordas continuavam a ressoar e a vibrar depois do toque inicial. Ora as paixões são vibrações na alma ocasionadas pelos movimentos do corpo. De tal modo  que podemos defini-las como uma intersecção entre o corpo e a alma, incapazes que somos de pensá-las sem indagar a forma como agitam o corpo e como são representadas ou figuradas pela razão. Mas a intersecção gera um espaço de ambiguidade que é consubstancial às paixões, daí a sua riqueza, rebeldia e distanciamento em relação à lógica pura.

(Blaise Pascal- Discurso sobre as paixões do amor)

sexta-feira, agosto 26, 2011

A lua cheia dos meus cantos está no seu fulgor.....



   (Ansel Adams)
Mordeis-me a cauda do fato de sereia?
Que importa! Eu voo no voo do condor.
Escureceis-me o verso onde clareia
A estrela que me deu um trovador?


Que importa! Eu vou no vento. A lua cheia
Dos meus cantos está no seu fulgor.
Que importa a fama- o uivar da alcateia?
De sons vácuos o efémero tambor.


Que importam vãos sinais: menos ou mais.
Eu estou nos quatro pontos cardeais
Prometida ao mundo dos assombros.


Ubíqua de origem e de futuro,
Irei na profecia. Eu sei, eu juro
Pelas estrelas que hão-de levar-me aos ombros.

(Natália Correia- O romper da manhã na noite mística II)

domingo, agosto 21, 2011

Será esta a situação de todas as artes?

 (Matisse)
Eu digo: « Gosto de Joseph Conrad.»E o meu amigo: « Eu, nem por isso.» Mas estaremos a falar do mesmo autor? Li dois romances de Conrad, o meu amigo leu um que não conheço. E, no entanto, cada um de nós, em toda a inocência (em toda a impertinência inocente), tem a certeza que forma uma ideia correcta sobre Conrad.
Será esta a situação de todas as artes? Não totalmente. Se eu dissesse a alguém que Matisse é um pintor de segunda ordem, bastaria que o meu interlocutor passasse um quarto de hora num museu para compreender que sou tolo. Mas como ler toda a obra de Conrad? Demoraria semanas! As diferentes artes acedem de forma diferente ao nosso cérebro; instalam-se com uma grande facilidade, uma velocidade diferente, um outro grau de inevitável simplificação; e com outra permanência. Todos nós falamos de história da literatura, reclamamo-nos dela, certos que a conhecemos, mas o que é in concreto a história da literatura da memória comum? Uma manta de retalhos feita de imagens fragmentárias que, por puro acaso, cada um dos milhares de leitores criou para si mesmo. Debaixo do céu retalhado desta memória vaporosa e ilusória, estamos à mercê de listas negras, dos seus vereditos arbitrários e inverificáveis, sempre prontos para imitar a sua estúpida elegância.

(Milan Kundera- Um encontro)


sexta-feira, agosto 19, 2011

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           (Kandinsky)
Desde princípios de Agosto que se foram todas as imagens do meu blog. Como devem imaginar não tenho estado parada, fazendo todos os esforços para conseguir recuperar o "Aguarelas" na sua forma original. Os esforços que desenvolvi levaram-me aos foruns do blogger onde, aparentemente, se conseguem obter saídas para os diferentes problemas. Contudo, para minha surpresa, até ao momento não consegui descobrir nenhum canal directo ao qual possa pôr as questões relativas a este "quase naufrágio". Nos foruns em que pesquisei descobri que não era única (como é óbvio) nesta situação. Descobri ainda, um pouco mais: a  muitos dos que as imagens tinham desaparecido tinham utilizado o Google + que usa como suporte das imagens o Picasa. No meu caso, porque tenho família fóra que utiliza o Google +, resolvi também experimentar inscrever-me. Quando o fiz verifiquei que no banco de imagens do Google + estavam todas as imagens dos meus blogs. Pareceu-me não fazer sentido, já que se tratava de uma outra esfera de comunicação, pespegar uma quase invasão de imagens aos meus queridos parentes. Resolvi então apagá-las naquele estrito lugar. Eis se não quando, no dia seguinte, dois dos meus blogs estavam vazios de imagens!!!!
Como acontecera aquilo? De procura em procura (até ao momento) verifiquei que com quase toda a certeza não as vou conseguir reaver. Supostamente foram apagadas do Picasa......e quando assim é, segundo dizem, e não se recuperam na lixeira, desaparecem....
Não vos vou falar de como me senti e sinto. De facto, ainda não acredito bem que não as consiga reaver. Procuro sim, avisar todos os que por aqui passam a tomarem as maiores precauções em relação à utilização do Google + e toda a sua panóplia, aparentemente tão sofisticadamente desenvolvida. Quando tal acontece, acontece sem perguntas ou avisos....é uma verdadeira queda no buraco negro.
Vou continuar a procurar e a tentar recordar-me de algumas das imagens que escolhi para ilustrar poemas, textos...Até lá se, ao olharem para os céus, descobrirem um turbilhão de reproduções ou de fotografias não se esqueçam de me avisar. Eu estarei cá em baixo, com uma larga saia, procurando agarrar tudo o que teima em fugir.

domingo, agosto 07, 2011

Aguarelas de Turner - Dias de Tempestade

   (Aguarelas de Turner)
De anteontem para ontem desapareceram-me todas as imagens de um blog que construo há cerca de seis anos. Naturalmente que desejo recuperar, o mais depressa possível, este meu lugar de encontro e de cruzamento da escrita com a imagem.
Alguém poderá ter ideia do"fenómeno "ocorrido com o "Aguarelas de Turner"?
Esta perda dá-me uma vez mais a percepção da fragilidade do virtual que se apresenta nos dias de hoje como a"quintaessência"dos tempos modernos. 

sexta-feira, julho 29, 2011

Navegar é preciso....pausaaaa

     (Aguarelas de Turner)

Em cada partida esperamos a renovação, a oportunidade de nada fazer, o sonho "em roda livre". Em cada regresso preparamos a nova partida...
Até qualquer dia a todos os amigos.

terça-feira, julho 26, 2011

De há séculos teu perfume nos proclama

           (Redon) 
Rosa, em teu trono, pra os da Antiguidade
eras um cálice com um bordo simples.
Mas para nós és a flor plena, inumerável,
o objecto inesgotável.


Pareces na opulência trajo sobre trajo
a envolver um corpo de nada mais que brilho;
mas cada pétala tua é a um tempo só
fuga e negação de toda a roupagem.


De há séculos teu perfume nos proclama
os seus nomes de maior doçura;
de súbito, paira no ara como uma glória.


No entanto, não o sabemos nomear, adivinhamos...
E para ele passa a lembrança
que pedimos às horas invocáveis.


Rainer Maria Rilke-Sonetos a Orfeu

sábado, julho 23, 2011

Why do I stand silent even I have a mouth....



I stand under a tree of hungry hands
No
I stand under NONE
I go to isolation
an empty and absolute isolation
Traverse the desert miles after miles
And last city
I left behind me a long time
Go to great doubt
go to a doubt
vanishes by bigger doubt.
Why do I stand silent
even I have a mouth
Why do I stand idle
even I have feet
Why don’t I look
even I have eyes
Why don’t I scream and I am caught in this misery
because I am made of stone.
There is something I cannot reach it
I do not know what is
I stretch out to it
Air air… air!
What are you looking for in the sky?
I’m looking for an image of star which doesn’t exist.
With my two own eyes
on the other side
I should reach/access the darkness.
But who could to see the difference
between darkness and green?
I will be travelling to Aredo
and I will ornament my broken jars
with an image of goat’s red-horn
I will be travelling to Aredo
and marry the Goldsmith’s dead daughter
in the evening
sitting on the threshold of the door
I hear the neighbour’s smile
The newly hatched flies
Around the glare oil’s lamp
Yes, now
Suddenly, I see the Chestnuts tree
In the darkness, contemplating white flowers:
We are dust.

Tor Ulven (1953–1995)

 Uma elementar homenagem a todos os que morreram ontem e morrem todos os dias vítimas da perversa violência dos extremismos que odeiam o diferente, buscando, delirantemente, sempre e apenas o igual a si. 

domingo, julho 17, 2011

A esperanca nasce. Mas como?

Comparando local a local-neolíticos e gregos na Sicília-depara-se-nos o facto de, antes de os Gregos chegarem, os homens viverem no terror da natureza rapace,dos seus excessos e da sua imprevisibilidade. Não era possível nenhuma evolução : o homem permanecia acocorado com medo, sob ameaça da extinção. Mas eis que acontece algo. A esperança nasce. Mas como? E por que razão? Ninguém no-lo sabe dizer, mas com os Gregos os homens começam a ver a natureza não como hostil e perigosa, mas sim como uma esposa e até musa- pois o seu cultivo tornou o lazer ( com todas as suas artes) possível. O que queremos dizer quando empregamos a palavra « mediterrânico» começa aí, começa no primeiro ponto vital em que Atenas entroniza a oliveira como sua rainha reinante e a lavoura grega solta o seu primeiro alento...
Estudiosos apressar-se-ão, neste tópico, com as suas advertências contra perigos de um quadro excessivamente simplificado- e na verdade a minha escolha do ponto crucial da consciência do homem é assaz arbitrária; é mais provável do que certa. Mas houve sem dúvida um tal ponto e a eleição da oliveira na Ática serve tão bem como qualquer outro. Claro que havia deuses e crenças de todas as espécies circulando ao mesmo tempo- tanto locais como importados, e é isso que torna os argumentos dos estudiosos ininvejavelmente cheios de contradições e suposições. No entanto há razões que justificam a escolha da oliveira, pois ela este misteriosamente ligada ao destino de todo o povo grego. A oliveira sagrada da Academia era um ramo de árvore primitiva da Acrópole, e em toda a Ática todas as oliveiras ditas da mesma proveniência eram chamadas moriai, ou árvores escolhidas. Propriedade de estado, a sua santidade religiosa ajudava a conservar uma grande fonte de riqueza nacional. Encontravam-se sob os cuidados directos do Areópago e eram inspeccionadas uma vez por mês. Quem arrancasse uma árvore dessas ficava sujeito a desterro e ao confisco total de todos os seus bens terrenos. Estavam sob a protecção de Zeus Morios, cujo santuário ficava perto de Atena. Um dos seus atributos era desfechar raios sobre a cabeça desses infractores.


(Lawrence Durrell-Carrocel Siciliano)

sábado, julho 16, 2011

Ou apenas o tesouro sem preço do teu tempo....

      (Pascal Courcelles)

Podes dar uma centelha de lua,
um colar de pétalas breves
ou um farrapo de nuvem;
podes dar mais uma asa
a quem tem sede de voar
ou apenas o tesouro sem preço
do teu tempo em qualquer lugar;
podes dar o que és e o que sentes
sem que te perguntem
nome, sexo ou endereço;
podes dar em suma, com emoção,
tudo aquilo que, em silêncio,
te segreda o coração;
podes dar a rima sem rima
de uma música só tua
a quem sofre a miséria dos dias
na noite sem tecto de uma rua;
podes juntar o diamante da dádiva
ao húmus de uma crença forte e antiga,
sob a forma de poema ou de cantiga;
podes ser o livro, o sonho, o ponteiro
do relógio da vida sem atraso,
e sendo tudo isso serás ainda mais,
anónimo, pleno e livre,
nau sempre aparelhada para deixar o cais,
porque o que conta, vendo bem,
é dar sempre um pouco mais,
sem factura, sem fama, sem horário,
que a máxima recompensa de quem dá
é o júbilo de um gesto voluntário. 



E, afinal, tudo isso quanto vale ?
Vale o nada que é tudo
sempre que damos de nós
o que, sendo acto amor, ganha voz
e se torna eterno por ser único e total.

(José Jorge Letria)

quarta-feira, julho 13, 2011

é força, mar, elemento, água, fogo, destruição, é atmosfera, respira-se...

   (Chagall)
(O Amor) É inevitável, faz parte da combustão da natureza, é força, mar, elemento, água, fogo, destruição, é atmosfera, respira-se, quando se morre abandona-se, o amor deixa, fica isolado, é um elemento, come-se, bebe-se, sustenta pão, pão diário para rico e pobre, pão que ilumina o forno do amassador, aparece nas condições mais estranhas, bicho que nasce, copula dentro de si mesmo, paira, espermatozóide e óvulo, as duas coisas ao mesmo tempo, amor é assim outro elemento fundamental da natureza, as pessoas vivem tanto com o amor, ou tão alheias do amor, que nem notam, raro percebem que o amor existe, raro percebem que respiram, que a água está, é indispensável, ninguém pode viver alheio aos elementos, ao amor.

Ruben A., in 'Silêncio para 4'

sábado, julho 09, 2011

Os loucos os fantasmas somos nós

    (W.Turner)
Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.


Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos os fantasmas somos nós,


Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...


(Alexandre O' Neill- Poemas com endereço-1962)



sexta-feira, julho 08, 2011

Escutamos uma linguagem desconhecida, e, contudo...


               (Chagall)
Ao contrário, não existe um só elemento da poesia que seja copiado do exterior. Nenhuma das suas criações recorre a um instrumento, ou à mão do homem; olhos e ouvidos nada podem detectar, pois a audição pura e simples das palavras não consegue esgotar os efeitos dessa arte secreta. É uma arte toda interior; e se os demais artistas cumulam os nossos sentidos de impressões exteriores assaz agradáveis, o poeta, esse enriquece de ideias novas, feéricas e deleitosas o santuário íntimo da nossa alma. O poeta tem o dom de mobilizar, a seu belo prazer, as forças secretas que nos habitam, e revelar-nos, através da palavra, todo um mundo grandioso e desconhecido. Como que surgidos de profundas cavernas, perpassam-nos pelo espírito os séculos passados e os séculos vindouros, a humanidade inteira, os sítios mais maravilhosos e os mais extraordinários acontecimentos, tudo quanto é susceptível de nos arrancar à banalidade do presente. Escutamos uma linguagem desconhecida e, contudo, percebemos o que quer dizer. Verdadeiro poder mágico emana das palavras dos poetas; mesmo as palavras banais adquirem na sua boca, uma estranha sonoridade, conseguem cativar os que as escutam, com todo o enbriagador encanto.
- Com o que acabam de dizer, a minha curiosidade tornou-se uma ardente impaciência- disse Heinrich.- Suplico-vos que me conteis tudo o que souberdes àcerca dos trovadores que ouvistes. Sinto um desejo insaciável de saber tudo quanto se relacione com esses seres de eleição. Tive, de repente, a impressão de já ter ouvido falar deles, mas não sei quando, talvez nos tempos da infância: não consigo lembrar-me de nada, de nada, absolutamente. No entanto, o que me dizeis parece-me perfeitamente claro e familiar-já não falando no real prazer que me dão com as vossas belas descrições...

(Novalis- Heinrich d' Ofterdingen)

sábado, julho 02, 2011

Tintas de sangue as restituo aos ventos..



Palavras, atirei-as
Como quem joga pedras, lança flores.
Abriram fendas nas areias,
Suscitaram carícias e furores.


Sobre mim recaíram
Pesadas de multíplices sentidos.
Tenho os lábios que um dia as proferiram
E os dedos que as gravaram- já feridos.


Tintas de sangue as restituo aos ventos,
Prestidigitador que sou de sons, palavras.
Dá-lhes novos alentos,
Fogo sonoro que em mim lavras!

Errantes lá por solidões imensas,
Com asas no seu peso, à recaída
Me tragam, ágeis, densas,
A resposta final que me é devida.

(José Régio)

quarta-feira, junho 29, 2011

Ao longe o mar segreda nomes de brinquedos caros...

  (Silva Porto)

Aqui de longe parece que o pai é um navio grande e preguiçoso e o Lito é um rebocador maluco que vai levar o barco gigante a encalhar nas rochas. O tio Nelo deita-se na toalha e lê o jornal a falar até dormir. A mãe monta o pára-vento, estende toalhas e tira o creme de Sol para me besuntar. A mãe põe o creme de Sol e eu adormeço com as mãos dela. Mesmo de olhos fechados vejo o sol cor-de-laranja a passar para os meus olhos. Encosto-me à mãe e durmo a pensar nas prendas. Ao longe o mar segreda nomes de brinquedos  caros e os gritos do Lito ao longe fazem lembrar com os amigos a roubar creme ao bolo. O pai não ouve ao longe porque fala pouco ao perto. o tio Nelo ressona quase tão alto como fala, mas a mãe dá-lhe um chuto para ele acordar arrelampado e voltar a dormir, desta vez sem barulho.  O mar está bonito, mas estava mais bonito se tivesse um barco com o meu pai em cima dele. A mãe está quente, o ar também. Corre um vento pequeno só para o dia dizer que ainda é de manhã e durmo melhor do que em casa, mesmo sem cobertor.
E a areia estava toda a dormir até um vento levantar um pé que me acorda a cara com salpicos de quem foi à água e em coro diz:
- Vamos à água. Está tão boa.
Eu finjo dormir com todas as forças e entreabro a luz para os ver sem eles me verem, mas acontece o contrário e vêem-me sem eu saber quem são e pegam em mim pela areia e pelo ar até estar junto de água. É tudo tão rápido que nem chego a chorar, fico num pânico seco e surdo, como um corpo tenso como o que segura a bandeira amarela lá no fundo. Agarro-me ao que posso e pelo que consigo agarrar é o io Neli que me leva. Agarro-me aos pêlos que ele leva nas costas, mas fico com eles nas mãos até que a mãe, brinca com ela e, entre dois sorrisos e três beijos, afrouxa-lhe o braço e pega em mim com um saco esguio que já só tem batatas a meio.
- Anda, filho. Anda ao mar com o pai.- Diz o pai.
E quando ele diz, fico a saber que o mar existe também para mim e dá-me medo. Começa o pai a entrar no mar e eu subo por ele como se um tesouro estivesse na vigia. Continua o mar pai adentro até não haver remédio e os meus pés e as minhas pernas estarem lá em baixo com os peixes.(...)

(João  Negreiros- O mar que a gente faz)

sábado, junho 25, 2011

Discretamente...



(Matisse)

DISCRETA ARTE

Discretamente. Cultivar a palavra.
Arte de dispor flores por longa mesa,
prazer de dispor quadros por paredes
em critério de escolha pessoal.

Discretamente: aqui uma pequena
haste a lembrar o sol, ali a folha
resolvendo o lugar, o espaço certo
(ligeiro afastamento necessário

para o conjunto articulado em cores).
O quadro mais azul naquele sitio,
o mais cinzento e largo a distrair-se

sobre a nudez de uma parede clara.
Discretamente. E a palavra nascida 
de tela (ou terra) resolvida. Agora.

(Ana Luisa Amaral)