(Júlio Pomar)
Canto Peninsular
Estar aqui dói-me. E eu estou aqui
Há novecentos anos. Não cresci nem mudei.
Apodreci.
Doem-me as próprias raízes que criei.
Foi a guerra e a paz. E veio o sol. Veio e passou
a tempestade.
Muita coisa mudou. Só não mudou
Este monstro que tem a minha idade.
E foi de novo a guerra e a paz. Muita coisa mudou
Em novecentos anos.
Eu é que não mudei. Nestre monstro que sou
Só os olhos ainda são humanos.
Quantas vezes gritei e não me ouviram
Quantas vezes morri e me deixaram
Nos campos de batalha onde depois floriram
Flores e pão que do meu sangue se criaram.
Andei de terra em terra
Por esse mundo que de certo modo descobri
E fui soldado contra a minha própria guerra
Eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.
Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.
Tive o mundo nas mãos. E sempre passei fome.
Eis-me tal como sou há novecentos anos
Eu que não sei escrever sequer o próprio nome.
Falam de mim e dizem: é um herói.
(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri)
Mas nunca ninguém disse a razão por que me dói
Estar aqui.
(Manuel Alegre- Praça da Canção)