Apesar da triste condição a que estávamos votados na nossa vida interior e exterior, registaram-se, embora esporadicamente, manifestações de uma tendência para nos concentrarmos no nosso íntimo. Seres sensíveis, habituados por natureza a uma existência espiritualmente activa, restava-nos a maravilhosa possibilidade de nos retirarmos daquele ambiente terrível, refugiando-nos num reino de liberdade espiritual e de riquezas internas. Assim, e só assim, se compreende o paradoxo de terem sido não raras vezes os de constituição delicada os que melhor suportaram a vida no campo-muito melhor que os dotados de uma natureza mais robusta.
Para tornar essas vivências mais ou menos compreensíveis, vejo-me de novo obrigado a referir-me a assuntos pessoais. Recordo-me de quando saíamos do campo de manhã cedo, para nos dirigirmos ao lugar de trabalho. Soava uma ordem:« Grupo de trabalho Weingut, em marcha! Esquerda, dois, três, quatro; esquerda, dois, três, quatro! Cabo de fila, filas direitas! Barretes de fora!» A memória faz com que aquelas ordens soem desta forma ao meu ouvido.Ao grito de « Barretes fora!» atravessávamos o portão do campo. Éramos focados pelos reflectores. Aquele que nesse momento não marchasse marcialmente e bem firme nas filas de cinco de fundo, podia contar com um pontapé. E com mais alguma coisa se, para se resguardar do frio, ousasse cobrir de novo as orelhas com o barrete, antes de a voz de comando o ter autorizado a fazê-lo.
Prosseguíamos em plena escuridão, tropeçando em grandes pedras e atascando-nos nos charcos da estrada que conduzia ao campo. As sentinelas que nos acompanhavam rugiam constantemente e picavam-nos com culatras das espingardas. Os que tinham os pés muito feridos agarravam-se ao braço de algum companheiro cujos pés doessem um pouco menos. Mal trocávamos uma palavra; o vento gelado que soprava antes do nascer do sol não nos animava a isso. Com a boca enterrada na gola do casaco, eis que o camarada a meu lado começava a murmurar:
« Calcula o que aconteceria se as nossa mulheres nos vissem! Oxalá passem melhor nos seus acampamentos!» A figura de minha mulher surgiu diante de mim. Enquanto avançávamos aos tropeções, através de kilómetros de caminho, enterrando-nos na neve ou resvalando no gelo, amparando-nos constantemente uns aos outros, erguendo-nos mutuamente, ninguém pronunciava uma só palavra. Mas sabíamos que, àquela hora, cada um de nós só pensava na sua esposa. De vez enquando, olhávamos o céu, onde as estrelas empalideciam e a aurora começava a clarear por trás de uma muralha lúgrube de nuvens. Mas o meu espírito estava cheio da figura a que se agarrara graças a um esforço de minha inquieta e vivida fantasia. Naqueles momentos eu entabulava conversa com a minha mulher. Ouvia-a responder-me, via o seu sorriso e o seu olhar animadores, e- em carne e osso ou em fantasia- o seu olhar brilhava com mais intensidade que o Sol que acabava de nascer. Pela primeira vez na minha vida compreendia a realidade daquilo que tantos pensadores classificaram como a quinta-essência da verdade de uma vida e que tantos poetas cantaram: sentia dentro de mim como o amor é, de certo modo, a coisa mais elevada que a existência humana pode alcançar. Compreendia agora o sentido daquilo que a poesia e o pensamento humano podem exprimir de mais sublime como compreendia o ensinamento da fé: a salvação das criaturas vem pelo amor e no amor! Compreendia finalmente de que modo o homem pode ser feliz, mesmo que nada lhe reste neste mundo, se se entrega intensamente à figura do ser amado.
(Viktor Frankl -Um Psicólogo no campo de concentração)
"...sentia dentro de mim como o amor é, de certo modo, a coisa mais elevada que a existência humana pode alcançar."
ResponderEliminarExactamente o que penso!
Grata pela partilha.
Um abraço
O estado de enamoramento é uma constante... e permanece independentemente do lugar.
ResponderEliminarÉ uma profundidade sem limite
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