Beleza da mulher. Beleza que se não entende logo, que desconcerta, que se mostra inquietante. Beleza tão miraculosa e unânime que parece engodo. Como é isso possível? Eis um povo que se não sustenta quase nunca o bastante, que quase continuamente se vê privado dos ingredientes de base da moderna dietética: da carne, de leite, de legumes, de fruta. Dia após dia, ano após ano, só a áspera tanchagem verde. De tempos a tempos, um pouco de carne de veado, ou de pecari, um iguano, um papagaio. Arroz e milho. E pôde isso dar corpos tão harmoniosos, tão robustos, tão capazes? Há nisto como que um desafio à nossa própria raça, aos nossos dispendiosos gostos, às nossas preocupações alimentares. Nós, os comedores de carne, os bebedores de leite, os devoradores de vitaminas. Nós que tanto transbordamos de riquezas que as podemos distribuir pelo mundo, aos povos esfomeados, ás crianças mal nutridas. E estes povos, quanto a eles, vingam-se, simplesmente, sendo belos.
É luminosa a beleza das mulheres índias; é uma beleza que vem não do interior, mas de toda a profundidade do corpo, tal como a beleza da pele de um fruto é iluminada por toda a sua polpa e por toda a carne da árvore que a dá. A beleza índia não se nota; não procura ser notada. Não se trata de um desdém, tão-pouco de provocação. Não se equipara a fealdade nenhuma, não se transfigura, não se idealiza. Está simplesmente presente, triunfal e viva, brilho externo cuja razão de ser é só a sedução sexual e a fecundidade depois. Beleza da nubilidade das mulheres. A cabeleira negra, densa, semelhante a um rio de azeviche, todas as manhãs penteada segundo uma invariável ordem, cabeleira comprida, até aos rins, desembaraçando as orelhas carregadas de pesados brincos de prata, franja recortada na testa, cabeleira em que todos os cabelos foram alinhados, um por um, com cuidados, cabeleira cujo coerente conjunto é também uma linguagem. (...)
E de onde vem a beleza destes rostos de olhos oblíquos, de nariz delicado, de altivas maçãs do rosto? A beleza destes corpos flexíveis, de largas ancas, de robustos ombros, de seios livres?Será a pintura negra que até o rosto as cobre, visível vestimenta inexistente, pele segunda, ligeira, fixa, que não trai nenhuma das formas do corpo?(...) São estas as mulheres mais belas. Não se podem imaginar mais belas mulheres. Parecem elas que consigo trazem, com a beleza, a verdade da raça que é a sua, a sua ordem de sobrevivência, são os sinais da salvação da espécie humana por inteiro.(...) Surgidas não para destruir ou dominar, mas sim para respirar, para comer, beber, para nutrir, para amar e pôr a crescer a vida em seus ventres.
A beleza deixa assim de ser um espectáculo. É uma actividade, um movimento, um desejo. (...). Que segredo é o dela? Que inventará? O seu olhar, os seus pensamentos, os seus instintos são mesclados no desenho exterior, nunca estão à frente nem atrás relativamente ao seu próprio corpo.
Não é milagre, a beleza, nem tão-pouco resulta do acaso. A beleza da mulher índia é o efeito da sua liberdade. Liberdade de ser o que é, sem receio dos interditos da moral ou da religião; liberdade de escolher para o corpo e para o espírito os seus trabalhos, os seus acasalamentos, os seus partos. Liberdade de se afastar do homem que deixou de amar, de procurar um homem que lhe agrade(...).Liberdade do seu corpo, da sua nudez, dos cuidados que ao rosto há-de dar. Liberdade de não ter rival, de não estar em competição com nenhuma outra imagem a não ser a sua. Liberdade dos seus próprios excessos e das suas próprias razões. (cont.)
(Índio Branco-J.M.G. Le Clézio)
É luminosa a beleza das mulheres índias; é uma beleza que vem não do interior, mas de toda a profundidade do corpo, tal como a beleza da pele de um fruto é iluminada por toda a sua polpa e por toda a carne da árvore que a dá. A beleza índia não se nota; não procura ser notada. Não se trata de um desdém, tão-pouco de provocação. Não se equipara a fealdade nenhuma, não se transfigura, não se idealiza. Está simplesmente presente, triunfal e viva, brilho externo cuja razão de ser é só a sedução sexual e a fecundidade depois. Beleza da nubilidade das mulheres. A cabeleira negra, densa, semelhante a um rio de azeviche, todas as manhãs penteada segundo uma invariável ordem, cabeleira comprida, até aos rins, desembaraçando as orelhas carregadas de pesados brincos de prata, franja recortada na testa, cabeleira em que todos os cabelos foram alinhados, um por um, com cuidados, cabeleira cujo coerente conjunto é também uma linguagem. (...)
E de onde vem a beleza destes rostos de olhos oblíquos, de nariz delicado, de altivas maçãs do rosto? A beleza destes corpos flexíveis, de largas ancas, de robustos ombros, de seios livres?Será a pintura negra que até o rosto as cobre, visível vestimenta inexistente, pele segunda, ligeira, fixa, que não trai nenhuma das formas do corpo?(...) São estas as mulheres mais belas. Não se podem imaginar mais belas mulheres. Parecem elas que consigo trazem, com a beleza, a verdade da raça que é a sua, a sua ordem de sobrevivência, são os sinais da salvação da espécie humana por inteiro.(...) Surgidas não para destruir ou dominar, mas sim para respirar, para comer, beber, para nutrir, para amar e pôr a crescer a vida em seus ventres.
A beleza deixa assim de ser um espectáculo. É uma actividade, um movimento, um desejo. (...). Que segredo é o dela? Que inventará? O seu olhar, os seus pensamentos, os seus instintos são mesclados no desenho exterior, nunca estão à frente nem atrás relativamente ao seu próprio corpo.
Não é milagre, a beleza, nem tão-pouco resulta do acaso. A beleza da mulher índia é o efeito da sua liberdade. Liberdade de ser o que é, sem receio dos interditos da moral ou da religião; liberdade de escolher para o corpo e para o espírito os seus trabalhos, os seus acasalamentos, os seus partos. Liberdade de se afastar do homem que deixou de amar, de procurar um homem que lhe agrade(...).Liberdade do seu corpo, da sua nudez, dos cuidados que ao rosto há-de dar. Liberdade de não ter rival, de não estar em competição com nenhuma outra imagem a não ser a sua. Liberdade dos seus próprios excessos e das suas próprias razões. (cont.)
(Índio Branco-J.M.G. Le Clézio)
Invejável a liberdade natural descrita. Essa, a que qualquer ser humano aspira e que o filtro da civilização retrai.
ResponderEliminarTão linda essa liberdade como a pele selvagem da índia, que o escritor louva com paixão.
perfeito.
ResponderEliminaro mundo ideal que nunca pensei que existisse.
CSd