quarta-feira, outubro 15, 2008

Canto de mágicas aves...


Entre o ruído das flautas índias e a linguagem articulada há o canto. Mas para o índio o canto é ainda uma outra forma de silêncio. É uma linguagem desnaturada, tornada incompreencível pela distorsão dos vocábulos, pelo timbre, pela intensidade e pela altura da voz, pela síncope, pelo ritmo, pelo gesto vocal. Da mesma forma que ignora a música harmónica, o índio não conhece a melodia. Não lhe interessa isso para o canto. Não tem para isso gosto. As canções não as quer ele belas, despreza a «ária». É impossível assobiar tais cantos, são todos iguais, não têm memória. Trata-se antes de salmodia, da contínua repetição da mesma frase musical, como se só houvesse um canto possível, uma só música. Para o índio o canto não constitui uma distracção , nem uma decoração. Tal como a linguagem, tal como os signos da pintura, tal como o canto do pássaro serpentário, do guarda-rio, do gavião, do troglodita, o canto do homem é único. É a sua identidade, é a sua palavra-de-ordem, o seu emblema. Para quê variar? Para quê inventar «árias» novas? O Índio é invariavelmente estranho a esta competição, a este comércio. O canto do homem proveio directamente das profundezas do passado, atravessou o tempo sem metamorfose, sem alteração. Chegou como chegam os dons da palavra, da caça, da pintura, da magia curativa, da escultura em madeira, da cestaria. Certos pormenores decerto mudaram, século, após século. Mas é coisa de somenos. Não há senão um canto.
Não há senão uma voz: é isso porventura a parte mais misteriosa do canto índio. Quando o Índio canta, abandona a sua própria voz e serve-se de uma nova voz, estranha. Fá-lo com muita simplicidade, apenas alteando a voz até aos limites do possível, quer dizer, até ao falsetto. O espasmo da garganta que produz este tom sobreagudo, frágil murmúrio mais do que voz, é o próprio sinal do canto. Para além deste limiar já não se está no canto (trianbi), mas sim na palavra (fedda); para além , está-se no grito (biavi). Homens, mulheres e crianças cantam com a mesma voz, sem que seja possível distingui-los. O canto não tem o mesmo veículo que a palavra. Utiliza a voz quebrada, a voz irreconhecível.(...)
O canto índio, tanto a ele, só existe fóra destes limites. dir-se-ia um canto de ultra-sons. Canto de morcegos, de pássaros estridentes, de mágicas aves. O Índio rompeu definitivamente o elo entre a linguagem e o canto.(cont.)

(Índio Branco- J.M.G. Le Clézio)


1 comentário:

  1. Começo, pouco a pouco, a ver por que o Clézio foi escolhido como Nobel.
    Este texto, dá-nos um retrato da forma de cantar de uma comunidade índia com uma soma de pormenores que só seria acessível a um poderoso observador e a um utilizador minucioso da palavra.
    E a gente fica por dentro da descrição, como se estivesse a ouvir os sons.

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