quarta-feira, fevereiro 01, 2006

A ordem é um fenómeno da escassez...

( Paula Rego)


Desordem e Travessura


Na hora de mais frequência nas ruas, quando a espessa malha da multidão se cruza evitando-se habilidosamente, incansavelmente artista em não chocar os seus guarda-chuvas, os seus carregos de caixas de cartão vazias, podemos meditar na desordem como numa consequência do ritmo de parentesco.Vemos de súbito toda essa gente, vizinha no seu tempo, nos seus desejos, na sua cidade, parecer explodir em direcções diferentes, procurando ignorar-se e precipitando-se nos intervalos livres de um passeio, duma praça. E se aproximássemos a nossa observação até ao nível das suas opiniões notaríamos que elas dependem mais da oposição ao que lhes é idêntico, do que resultam da lógica dos seus interesses. A desordem é a sensibilidade da limitação. Diz Bertolt Brecht que existe ordem onde não há mais nada. « A ordem é um fenómeno de escassez»- acrescenta.
Há a desordem do que não está disposto no seu devido lugar,e há a desordem do que não é simplesmente disponível. O espírito não é disponível.Na medida em que ele se move em torno da sua limitação e simultaneamente em direcção do seu objectivo ele efectua a desordem. Em literatura, a desordem e a travessura aparecem-nos como delicadas convulsões de espírito que é preciso interpretar sem preconceitos alheios à sua própria virtude. Escritores de génio de Kafka ou Henry Miller, pela força a desesperação do mundo vivido, parecem adoptar uma linguagem de desordem; outroscomo Mark Twain ou Bernard Shaw, limitam-se a traduzir os agravos da sensibilidade com o auxílio da simples travessura. A vazão do subconsciente em função do quotidiano, ou a proposta humorística feita à lei humana, são ambas resultado duma inquietação que ultrapassa o vulgar. Os povos onde o humor é uma constante do seu trato são os que mais profundamente provam a sua relutância em aceitar o mundo como um suborno da própria inteligência.(...)
Agustina Bessa Luís ( Desordem e Travessura in Conversações com Dmitri e outras fantasias)