quinta-feira, março 05, 2009

O riso e as lágrimas

(Chagall)
«E se um dia conseguir chegar até à América do Sul...?»(Pusera-se a falar alto.)«Pode levar anos. E que língua falarei? E o que levará as pessoas a receber-me, a mim, um estranho, um desconhecido? Quem sabe mesmo se haverá circo em tais lugares...Suponho que sim, por certo terão os seus palhaços, falando a própria língua...»
Chegado a um pequeno jardim público estirou-se num banco.
«Isto precisa ser pensado mais cuidadosamente», repreendeu-se. »Um tipo não vai correr para a América do Sul assim do pé para a mão. C'os diabos!, não sou um albatroz. Chamo-me Augusto, tenho uns pés delicados e um estômago que reclama comida.»Um a um, começou a especificar os atributos humanos que o distinguiam dos pássaros do ar e das criaturas dos abismos. Por fim, as congeminações deram lugar a um vasto considerando sobre duas qualidades ou faculdades, que mais vincadamente separam o mundo dos homens do reino animal: o riso e as lágrimas.
Bem estranho, pensou, que ele, normalmente tão à vontade neste domínio, se perdesse em raciocínios mais dignos de uma criança de escola.
« Mas eu não sou um albatroz !» Este pensamento, por certo não muito brilhante, surgia-lhe amiudadas vezes enquanto revolvia o dilema de uma ponta a outra. Ainda que não fosse original ou brilhante, reconfortava-o, tranquilizava-o, na medida em que nem com um possível esforço de Imaginação Augusto se poderia considerar um albatroz.(...)
Ter ultrapassado os limites próprios, eis o erro que cometera. Porque não lhe bastara fazer rir as pessoas- procurara dar-lhes a alegria suprema, aquela que é já um dom do Criador. Não tinha ele descoberto isto no seu período de renúncia, ao fazer tudo o que lhe vinha à mão? Sentia agora próxima revelação a revelação de algo capital.

(Henry Miller- O Sorriso aos pés da escada)

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