segunda-feira, março 23, 2009

O "psíquico"....o primeiro poder....

( Tissot)
O exame, as análises ao sangue e as radiografias que tinham sido prescritos tiveram resultados animadores. Coração normal, respiração excelente, tensão arterial muito boa, mas encontravam-se sinais que não ofereciam dúvidas de uma ciática, elementos isolados de gota e estado criticável de toda a musculatura. Fez-se uma pequena pausa na nossa conversa, enquanto o médico voltou a lavar as mãos.
Como era de esperar, deu-se nesse momento a viragem, abandonámos o terreno neutro, o meu parceiro lançou-se na ofensiva com a pergunta que fez com visível descontracção e que acentuou com cuidado: "Não acha que os seus padecimentos poderiam em parte ter também o seu quê de psíquico?" Ora aí estávamos nós, era o que se esperava, o que se sabia de antemão. A investigação objectiva não justificava calmamente o relato que fiz dos meus achaques, havia uma nota suspeita de sensibilidade exagerada, a minha reacção subjectiva às dores da gota não correspondia à escala normal que tinha sido previamente estabelecida, fui reconhecido como neurótico. Então vamos à luta!
Com igual cuidado, com igual ar de coisa acidental, esclareci que não acreditava em sofrimentos e estados "com o seu quê de psíquico", que na minha biologia e mitologia pessoal o "psíquico" não era uma espécie de factor secundário ao lado físico, mas o primeiro poder, que eu considerava consequentemente cada estado de vida, cada sentimento de prazer e dor, também cada doença, cada infelicidade e morte como algo de psíquico como se nascido da alma. Se começo a ter nós nas articulações dos dedos, é a minha alma, é o digno princípio da vida, o "aquilo" em mim que se exprime no material plástico. Quando a alma sofre pode expressar esse sofrimento de muitas e variadas maneiras, e o que num se revela como ácido úrico e prepara a demolição do seu Eu, pode, numa outra pessoa, fazer o mesmo serviço sob a forma de alcoolismo, numa terceira pessoa pode aglomerar-se num pedaço de chumbo que repentinamente lhe penetra o cérebro. Assim, reconheci que a tarefa e a possibilidade que o médico que ajuda tem na maior parte dos casos de se contentar em encontrar as alterações materiais, e portanto secundárias, e lutar contra elas com meios igualmente materiais.

(Hermann Hesse- Aquista)

1 comentário:

  1. Ora aí está um ponto de vista defendido com argumentos perfeitamente convincentes.
    Grande parte dos nossos males nascem "na mona"...

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