«Não percebo», murmurou Augusto.«O que seria que o matou? Ontem à noite, quando falei com ele, não estava assim tão doente...»
«É certo, disse o outro.
Havia qualquer coisa neste «é certo» que fez sobressaltar Augusto.
«Você não quer dizer que?...»Interrompeu-se; era por de mais inacreditável, recusava-se a alimentar tal pensamento. Mas logo a seguir, apesar de tudo, formulou-o.
«Você não quer dizer», e aqui vacilou de novo, «você não quer dizer que ele soube...?»
«Exactamente.»
Augusto voltou a estremecer.
«Se me perguntassem a minha opinião sincera», continuou o patrão no mesmo tom agreste, « eu diria que ele morreu com o coração despedaçado.»
Pararam abruptamente.
«Ouça», disse o patrão,« a culpa não é sua. Não leve o caso demasiado a sério. Eu sei, todos sabemos, que você não contribuiu para a morte dele. De qualquer modo, a verdade é que o António nunca poderia vir a ser um grande palhaço. Já tinha desistido há muito tempo.»Ciciou quaisquer palavras ininteligíveis e prosseguiu, num suspiro: « Mas há um problema: como iremos explicar a exibição de ontem à noite? Agora vai ser difícil encobrir a verdade não acha? Nenhum de nós contava que ele morresse de repente, não é assim?»
Após breve silêncio, Augusto disse calmamente: « Gostaria de ficar uns minutos só. Não se importa?»
«Certo, disse o patrão.« Vá pensando no caso. Ainda há tempo...»
Não acrescentou para quê.
Profundamente abatido, Augusto partiu ao acaso, na direcção da cidade.Caminhou durante longo tempo sem um único pensamento, só uma espécie de dor obtusa e entorpecente se lhe filtrando por todo o corpo. Sentando-se finalmente ao canto de um terrasse pediu uma bebida. Não, decididamente nunca admitira uma tal eventualidade. Novo truque do destino. Uma coisa era evidente: ou teria de voltar a ser Augusto ou continuaria a apresentar-se como António. O anonimato é que já lhe era impossível . Pôs-se então a pensar no companheiro, naquele António que na véspera tinha personificado. Seria capaz de repetir o mesmo, hoje, com um entusiasmo e um prazer idênticos?
Esquecia-se já do amigo que, frio e inerte, jazia na roulotte. Sem de tal se ter apercebido enfiara-se na pele de António. Minuciosamente, ensaiou o número, analizando-o, desmontando-o
peça por peça, preenchendo-lhe as lacunas, melhorando-o aqui e ali...e assim por diante, de número em número, de público em público, noite após noite, de cidade em cidade. Por fim, voltou a si. E bruscamente, endireitando-se na cadeira, pôs-se a falr muito a sério consigo mesmo.«Voltas então a ser palhaço, não é isso? Ainda não te chegou, hein? Mataste o Augusto, assassinaste o António...E agora, quem se segue? Há dois dias eras um homem feliz, um homem livre. Agora foste apanhado, não passas de um reles assassino. E ainda supões que apesar da consciência culpada podes fazer rir as pessoas, não é? Ah! não, estás a levar as coisas longe de mais!» (cont.)
(Henry Miller- O sorriso aos pés da escada)
«É certo, disse o outro.
Havia qualquer coisa neste «é certo» que fez sobressaltar Augusto.
«Você não quer dizer que?...»Interrompeu-se; era por de mais inacreditável, recusava-se a alimentar tal pensamento. Mas logo a seguir, apesar de tudo, formulou-o.
«Você não quer dizer», e aqui vacilou de novo, «você não quer dizer que ele soube...?»
«Exactamente.»
Augusto voltou a estremecer.
«Se me perguntassem a minha opinião sincera», continuou o patrão no mesmo tom agreste, « eu diria que ele morreu com o coração despedaçado.»
Pararam abruptamente.
«Ouça», disse o patrão,« a culpa não é sua. Não leve o caso demasiado a sério. Eu sei, todos sabemos, que você não contribuiu para a morte dele. De qualquer modo, a verdade é que o António nunca poderia vir a ser um grande palhaço. Já tinha desistido há muito tempo.»Ciciou quaisquer palavras ininteligíveis e prosseguiu, num suspiro: « Mas há um problema: como iremos explicar a exibição de ontem à noite? Agora vai ser difícil encobrir a verdade não acha? Nenhum de nós contava que ele morresse de repente, não é assim?»
Após breve silêncio, Augusto disse calmamente: « Gostaria de ficar uns minutos só. Não se importa?»
«Certo, disse o patrão.« Vá pensando no caso. Ainda há tempo...»
Não acrescentou para quê.
Profundamente abatido, Augusto partiu ao acaso, na direcção da cidade.Caminhou durante longo tempo sem um único pensamento, só uma espécie de dor obtusa e entorpecente se lhe filtrando por todo o corpo. Sentando-se finalmente ao canto de um terrasse pediu uma bebida. Não, decididamente nunca admitira uma tal eventualidade. Novo truque do destino. Uma coisa era evidente: ou teria de voltar a ser Augusto ou continuaria a apresentar-se como António. O anonimato é que já lhe era impossível . Pôs-se então a pensar no companheiro, naquele António que na véspera tinha personificado. Seria capaz de repetir o mesmo, hoje, com um entusiasmo e um prazer idênticos?
Esquecia-se já do amigo que, frio e inerte, jazia na roulotte. Sem de tal se ter apercebido enfiara-se na pele de António. Minuciosamente, ensaiou o número, analizando-o, desmontando-o
peça por peça, preenchendo-lhe as lacunas, melhorando-o aqui e ali...e assim por diante, de número em número, de público em público, noite após noite, de cidade em cidade. Por fim, voltou a si. E bruscamente, endireitando-se na cadeira, pôs-se a falr muito a sério consigo mesmo.«Voltas então a ser palhaço, não é isso? Ainda não te chegou, hein? Mataste o Augusto, assassinaste o António...E agora, quem se segue? Há dois dias eras um homem feliz, um homem livre. Agora foste apanhado, não passas de um reles assassino. E ainda supões que apesar da consciência culpada podes fazer rir as pessoas, não é? Ah! não, estás a levar as coisas longe de mais!» (cont.)
(Henry Miller- O sorriso aos pés da escada)
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