sábado, março 14, 2009

Como o palhaço vamos fazendo as nossas cabriolas...

(Seurat)

Em nenhuma época da história da humanidade esteve o mundo tão cheio de sofrimento e de angústia. Contudo, aqui e além, encontramos indivíduos que não estão contaminados, manchados pela dor comum. Não são criaturas sem coração, longe disso! São indivíduos emancipados. Para eles, o mundo não é o que a nós parece. Vêem-no com outros olhos. Dizemos que morreram para o mundo. Vivem no momento que passa, com toda a plenitude, e a radiação que deles emana é um perpétuo hino de alegria.
O circo é uma pequenina arena fechada, lugar de esquecimento. Durante alguns instantes permite que nos abandonemos, que nos dissolvamos em maravilha e felicidade, transportados pelo mistério. Saímos de lá como que envoltos numa neblina, entristecidos e horrorizados pela face quotidiana do mundo. Mas este velho mundo quotidiano, este mundo com o qual julgamos estar por demais familiarizados, é o único que existe- e é um mundo de magia, de magia inesgotável. Como o palhaço, vamos fazendo as nossas cabriolas, simulando sempre, adiando sempre o grande acontecimento. Morremos a lutar para nascer. Nunca fomos, nunca somos. Estamos sempre na contingência de vir a ser, separados, desligados para sempre. Sempre do lado de fora. Tal é o retrato de August Angst, aliás Guy le Crêvercoeur- ou a face quotidiana do mundo, com duas bocas. Augusto é de outra espécie. Talvez não tenha conseguido traçar claramente o seu retrato. Mas ele existe, ainda que só pela razão de eu o ter imaginado vivo. Desceu do azul e ao azul regressa.Não pereceu, não está perdido. Também não cairá no esquecimento.
Um dia destes, falando com um pintor meu conhecido acerca das figuras que Seurat nos deixou, afirmei-lhe que elas se encontravam enraizadas ali mesmo onde ele lhes deu vida-na eternidade. Como me sinto grato por ter vivido com estas figuras de Seurat- na «Grande Jatte», no « Médrano» e fosse onde fosse, em espírito! Não há absolutamente nada de ilusório à volta destas suas criações, cuja realidade é imperecível. Vivem na luz do sol, na harmonia da forma e do ritmo que é melodia pura. E também, de facto, com os palhaços de Rouault, os anjos de Chagall, a escada e a lua de Miró, e todo o seu «zoo» ambulante. Assim também com Max Jacob, que nunca deixou de ser palhaço-mesmo depois de ter encontrado Deus. Pelo verbo, pela imagem, pelo acto, todas estas abençoadas almas que me fizeram companhia testemunharam a eterna realidade da visão. Será nosso, um dia, o seu mundo quotidiano. De facto já é nosso-simplesmente, estamos demasiado empobrecidos para lhe reivindicar a propriedade.


Big Sur

Janeiro de 1948

1 comentário:

  1. Uma vez mais: obrigada por ter p+erseverantemente colocado um livro tão belo, ilustrado de modo igualmente belo, ao alcance dos seus visitantes e amigos. Um beijo amigo

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos