terça-feira, março 31, 2009

O tempo arrefecido, e só soprado por uma brisa...


(Tissot)
A segurança destas paralelas
- a beira da varanda e o horizonte
assim me pacifico, e é por elas
que subo lentamente cada monte.

O tempo arrefecido, e só soprado
por uma brisa tarde que do mar
torna este minuto leve e aconchegado,
traz mansas as certezas de se estar.

E vêm novos nomes: são as fadas,
gigantes e anões, que são assim
alegres de o serem- parcos nadas

que enchendo de silêncios este sim
dele fazem brinquedos, madrugadas...
Agora estou eu em ti e tu em mim.

(Pedro Tamen)

segunda-feira, março 30, 2009

O irresístivel anseio de viajar...

(Aguarelas de Turner)


Muito acima das nuvens seja o centro
das nossas misteriosas poéticas
o irresistível anseio de viajar
um só movimento trabalhado à mão
nos ermos mais altos
mais desaparecidos

(Mário Cerariny-1923)

domingo, março 29, 2009

De Sábado para Domingo um filme-Um dia no Campo- Renoir



Realizadores como Jean Renoir deixam uma "marca" para sempre. Um mestre de gerações de outros realizadores. Revejam ou vejam esta "delícia".

sábado, março 28, 2009

VERDADEs E MENTIRAs


Escuso de dizer que colam pouco comigo os prémios e as "correntes". O mesmo não posso dizer relativamente aos meus amigos bloguers, que tanto gosto de visitar. É o caso de JRD e do seu http://bonstemposhein-jrd.blogspot.com . O seu humor por vezes cáustico, mas sempre inteligente e atento, a sua independência, a defesa intransigente dos que estão em desvantagem, a sua escrita solta, escorreita, sincera, e, por fim, os seus comentários capazes de tanto dizer em tão poucas palavras, levam-me a ceder com imenso gosto ao desafio que me lançou, não me esquecendo de sorrir pelo seu prémio "Blog de Cristal".
Cabe-me dizer seis verdades e três mentiras desafiando os meus amigos (aqueles que se derem a esse trabalho) de me " descobrirem a carapuça." Cá vão elas:

1- Sou "louca" por filmes de acção.
2- Já andei de canoa com o meu filho pequenino num rio com crocodilos.
3- Sempre que posso ando a grandes velocidades.
4- Para viajar consigo sempre só levar o essencial.
5- A fotografia é o meu hobby preferido.

6- Dou tudo por um jantar com amigos num restaurante aconchegado e informalmente requintado.

7- Dormi quatro dias na selva, ouvindo o rugido dos leões.
8- Sou capaz de viver no campo por períodos de quinze dias sem ter necessidade de ir à cidade.
9- Sinto-me satisfeita com a minha profissão.

E agora, lá vou "lançar-lhes o isco" a ver se pega, não sem antes os presentear com o "Blog de Cristal".

http://artmus.blogspot.com http://linhacabotagem.blogspot.com http://ponteirosparados.blogspot.com http://abencerragem.blogspot.com http://www.ojardimcasa.blogspot.com

sexta-feira, março 27, 2009

é mortal cada homem que houve em si algum lugar

(Escher)
Canto dos Lugares

Tantas vezes os lugares habitam no Homem
e os homens tantas vezes habitam
nos lugares que os habitam, que podia
dizer-se que o cárcere de Sócrates,

estando nele Sócrates, não o era,
como diz Séneca em epístola a Hélvia.


Por isso cada lugar nos mostra
uma vida clara e desmedida,
enquanto o Tempo oscila e nos oculta
que é curto e ambíguo
porque nos dá a morte e a vida.


E os lugares somente acabam
porque é mortal cada homem
que houve em si algum lugar.

6/4/94

(Fiama Hasse Pais Brandão)

quinta-feira, março 26, 2009

O sol acedeu...

(Paula Rego)
tinha aprendido que era muito importante
criar desobjectos.
certa tarde, envolto em tristezas, quis recusar
o cinzento, não munido de nenhum artefacto
alegre, inventei um espanador de tristezas.
era de difícil manejo-mas funcionava.

ondjaki
julho/2002

Carochinha e o Sol domesticado


uma carocha estava de barriga pra cima a usar uma cara aflita; lhe devolvi o norte e o céu escureceu, ela voou de retorno a casa mas o sol entristeceu. pedi ao sol que ficasse de barriga pra baixo na direcção da carochinha.
o sol acedeu.
as nuvens agora azulam o céu sem timidez e a carocha, muito de vez em quando, tropeça propositadamente em raios solares.

(Ondjaki- Materiais para confecção de um espanador de tristezas)


segunda-feira, março 23, 2009

O "psíquico"....o primeiro poder....

( Tissot)
O exame, as análises ao sangue e as radiografias que tinham sido prescritos tiveram resultados animadores. Coração normal, respiração excelente, tensão arterial muito boa, mas encontravam-se sinais que não ofereciam dúvidas de uma ciática, elementos isolados de gota e estado criticável de toda a musculatura. Fez-se uma pequena pausa na nossa conversa, enquanto o médico voltou a lavar as mãos.
Como era de esperar, deu-se nesse momento a viragem, abandonámos o terreno neutro, o meu parceiro lançou-se na ofensiva com a pergunta que fez com visível descontracção e que acentuou com cuidado: "Não acha que os seus padecimentos poderiam em parte ter também o seu quê de psíquico?" Ora aí estávamos nós, era o que se esperava, o que se sabia de antemão. A investigação objectiva não justificava calmamente o relato que fiz dos meus achaques, havia uma nota suspeita de sensibilidade exagerada, a minha reacção subjectiva às dores da gota não correspondia à escala normal que tinha sido previamente estabelecida, fui reconhecido como neurótico. Então vamos à luta!
Com igual cuidado, com igual ar de coisa acidental, esclareci que não acreditava em sofrimentos e estados "com o seu quê de psíquico", que na minha biologia e mitologia pessoal o "psíquico" não era uma espécie de factor secundário ao lado físico, mas o primeiro poder, que eu considerava consequentemente cada estado de vida, cada sentimento de prazer e dor, também cada doença, cada infelicidade e morte como algo de psíquico como se nascido da alma. Se começo a ter nós nas articulações dos dedos, é a minha alma, é o digno princípio da vida, o "aquilo" em mim que se exprime no material plástico. Quando a alma sofre pode expressar esse sofrimento de muitas e variadas maneiras, e o que num se revela como ácido úrico e prepara a demolição do seu Eu, pode, numa outra pessoa, fazer o mesmo serviço sob a forma de alcoolismo, numa terceira pessoa pode aglomerar-se num pedaço de chumbo que repentinamente lhe penetra o cérebro. Assim, reconheci que a tarefa e a possibilidade que o médico que ajuda tem na maior parte dos casos de se contentar em encontrar as alterações materiais, e portanto secundárias, e lutar contra elas com meios igualmente materiais.

(Hermann Hesse- Aquista)

Que rosto se define ao fundo da memória?

(Marc Chagall)
Das Musas

para o Nuno Júdice

Que rosto se define
ao fundo da memória?
É o canto do cisne
indizível da História?
É incêndio de amor
numa branda figura?
Ou intenso fulgor
que entre só dois perdura?
É rosto que não sabes
e não queres esquecer?
Que cifras e que chaves
terás para o esconder?

(Luís Filipe Castro Mendes- Outras Canções)

domingo, março 22, 2009

De Sábado para Domingo um filme- Saraband-Bergman


A última obra de Bergman, um filme-testamento, fiel a toda a sua obra. Com raros, Bergman leva-nos ao interior da"alma"humana com os seus dramas e conflitos.
Bergman conduz o espectador ao interior de cada personagem e proporciona, em simultâneo, a possibilidade de um pensamento "em aberto", gerador de novos caminhos. Quem viu este filme não o pode esquecer.

sábado, março 21, 2009

A poeira lentíssima do sul


O sol

a poeira

lentíssima do sul,



a pedra do ar

clara e mordida,


a branca e nua

e tão antiga

poeira do sol,


vem poisar-me

nos olhos.



Ainda.


(Eugénio de Andrade- Matéria Solar)

sexta-feira, março 20, 2009

O elefante não joga, não é deste mundo

(Rembrandt)
Não havia dúvida, a sorte parecia decidida a favorecer as armas de portugal.
Ainda demoraram quase uma hora a entrar na vila, uma caravana de homens e animais perdidos de cansaço, que mal tinham forças para levantar o braço ou acenar com as orelhas em agradecimento aos aplausos com que os vizinhos de castelo rodrigo a recebiam. Um representante do alcaide guiou-os até à praça de armas da fortificação, onde podiam caber pelo menos dez caravanas como aquela. Aí esperavam-nos três membros da família dos castelões, que depois acompanharam o comandante a inspeccionar os espaços disponíveis para abrigar os homens, sem esquecer os que os espanhóis viriam a necessitar no caso de não bivacarem fora do castelo. O alcaide, a quem o comandante foi apresentar os seus respeitos depois da inspecção, disse, O mais provável é que instalem o acampamento fora das muralhas do castelo, o que, além do resto, teria grande vantagem de reduzir a possibilidade de confrontações. Por que pensa vossa senhoria que poderá haver confrontações, perguntou o comandante. Com estes espanhóis nunca se sabe, desde que têm um imperador parece que andam com o rei na barriga, e muito pior ainda seria se em vez de virem os espanhóis viessem os austríacos. É má gente, perguntou o comandante, Julgam-se superiores aos mais, Isso é pecado geral, eu, por exemplo, julgo-me superior aos meus soldados, os meus soldados julgam-se superiores aos homens que vieram para trabalho pesado, E o elefante, perguntou o alcaide, sorrindo. O elefante não joga, não é deste mundo, respondeu o comandante, Vi-o chegar de uma janela, de facto é um animal soberbo, gostaria de olhá-lo de perto, É todo seu quando quizer, Não saberia que fazer com ele, a não ser alimentá-lo, Previno vossa senhoria de que este bicho requer muito alimento, Assim tenho ouvido dizer, e não me apresento para ser proprietário de um elefante, sou um simples alcaide do interior, Isto é, nem rei nem arquiduque. tal qual, nem rei nem arquiduque, só disponho do que posso chamar meu. O comandante levantou-se, Não lhe ocupo mais tempo, senhor, muito obrigado pela atenção com que me recebeu.

(José Saramago-A Viagem do Elefante)

quinta-feira, março 19, 2009

Quem não cantava morria de fartura...


Fábula da Fábula

Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora,
Que, em verso e prosa,
Toda a gente
Inteligente,
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos,
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.
E, realmente...
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.

(Miguel Torga)

quarta-feira, março 18, 2009

A dor, às vezes, salva...

(Goya)
Há a desgraça e a dor. A dor, às vezes, salva: passa como um cataclismo e redime: a desgraça não, pega-se e transe. A desgraça é uma treva condenada, onde a mão que busca amparar-se só encontra o vácuo. Grita-se? Só a desgraça nos ouve. Dá um frio característico, interior, de morte- o frio da desgraça. Usa e gasta. Quem mora com a desgraça, dia a dia perde certa afeição individual: e daí vem que todos os desgraçados se parecem. A catástrofe, às vezes, enrija, ao contrário da desgraça, que amolece. è talvez um hábito: mas, quando se diz de alguém que tem o hábito da desgraça, esse está afundado e perdido. A desgraça dá resignação. Pode derrocar-se o planeta embora- que o desgraçado não protesta: por fim é capaz de aceitar com humildade a esmola do que já foi o seu melhor amigo- e acha até certo gosto ao amargor das lágrimas...

(Raúl Brandão- A Farsa)

segunda-feira, março 16, 2009

Quão glorioso ...o brilho do Sol


(Aguarelas de Turner)

Quão glorioso,
Nas folhas verdes, folhas tenras,
O brilho do sol!


(Bashô) http://pt.wikipedia.org/wiki/Matsu%C3%B4_Bash%C3%B4

domingo, março 15, 2009

sábado, março 14, 2009

Como o palhaço vamos fazendo as nossas cabriolas...

(Seurat)

Em nenhuma época da história da humanidade esteve o mundo tão cheio de sofrimento e de angústia. Contudo, aqui e além, encontramos indivíduos que não estão contaminados, manchados pela dor comum. Não são criaturas sem coração, longe disso! São indivíduos emancipados. Para eles, o mundo não é o que a nós parece. Vêem-no com outros olhos. Dizemos que morreram para o mundo. Vivem no momento que passa, com toda a plenitude, e a radiação que deles emana é um perpétuo hino de alegria.
O circo é uma pequenina arena fechada, lugar de esquecimento. Durante alguns instantes permite que nos abandonemos, que nos dissolvamos em maravilha e felicidade, transportados pelo mistério. Saímos de lá como que envoltos numa neblina, entristecidos e horrorizados pela face quotidiana do mundo. Mas este velho mundo quotidiano, este mundo com o qual julgamos estar por demais familiarizados, é o único que existe- e é um mundo de magia, de magia inesgotável. Como o palhaço, vamos fazendo as nossas cabriolas, simulando sempre, adiando sempre o grande acontecimento. Morremos a lutar para nascer. Nunca fomos, nunca somos. Estamos sempre na contingência de vir a ser, separados, desligados para sempre. Sempre do lado de fora. Tal é o retrato de August Angst, aliás Guy le Crêvercoeur- ou a face quotidiana do mundo, com duas bocas. Augusto é de outra espécie. Talvez não tenha conseguido traçar claramente o seu retrato. Mas ele existe, ainda que só pela razão de eu o ter imaginado vivo. Desceu do azul e ao azul regressa.Não pereceu, não está perdido. Também não cairá no esquecimento.
Um dia destes, falando com um pintor meu conhecido acerca das figuras que Seurat nos deixou, afirmei-lhe que elas se encontravam enraizadas ali mesmo onde ele lhes deu vida-na eternidade. Como me sinto grato por ter vivido com estas figuras de Seurat- na «Grande Jatte», no « Médrano» e fosse onde fosse, em espírito! Não há absolutamente nada de ilusório à volta destas suas criações, cuja realidade é imperecível. Vivem na luz do sol, na harmonia da forma e do ritmo que é melodia pura. E também, de facto, com os palhaços de Rouault, os anjos de Chagall, a escada e a lua de Miró, e todo o seu «zoo» ambulante. Assim também com Max Jacob, que nunca deixou de ser palhaço-mesmo depois de ter encontrado Deus. Pelo verbo, pela imagem, pelo acto, todas estas abençoadas almas que me fizeram companhia testemunharam a eterna realidade da visão. Será nosso, um dia, o seu mundo quotidiano. De facto já é nosso-simplesmente, estamos demasiado empobrecidos para lhe reivindicar a propriedade.


Big Sur

Janeiro de 1948

sexta-feira, março 13, 2009

A alegria é como um rio: corre incessantemente...

(Chagall)
Até ali, todos os meus personagens eram reais, extraídos da vida, a minha própria vida. Augusto é único, na medida em que me veio do azul. Mas o que é o azul que nos cerca e envolve se não a própria realidade?
Verdadeiramente, nós não inventamos o que quer que seja. Pedimos emprestado e recriamos. Destapamos e descobrimos. Tudo foi dado, como dizem os místicos. Para nos identificarmos com tudo o que está, mais não temos que abrir os olhos e o coração.
Embora nem sempre o tenha sabido, o palhaço exerce em mim uma atracção profunda, justamente porque está separado do mundo pelo riso. O seu riso nada tem de Homérico, é um riso silencioso, o que nós chamamos um riso sem alegria. O palhaço ensina-nos a rir de nós próprios. E esse nosso riso nasce das lágrimas.
A alegria é como um rio: corre incessantemente. Parece-me ser esta a mensagem que o palhaço procura transmitir-nos: deveríamos participar no fluxo e movimento contínuos, não pararmos para reflectir, comparar, analisar, dominar, mas continuarmos a fluir, sempre e sempre como a
música. Tal é o dom da renúncia, que o palhaço realiza simbolicamente. A nós nos compete torná-lo real. (cont.)

(Henry Miller)

quinta-feira, março 12, 2009

Contei-a, simplesmente, como a sentia

(Rouault)
A escada, claro, era um presente de Miró, e bem assim a lua, muito provavelmente. ( Cão Ladrando à Lua foi o primeiro Miró que vi.)
Parti então da minha pr´pria pessoa, da firme convicção de saber tudo o que era possível quanto a circos e palhaços. Linha a linha, escrevi cegamente, desconhecendo o que viria a seguir. Além de mim, tinha a escada e o cavalo roubados inconscientemente. E, por companhia os poetas e pintores que mais amava: Rouault, Miró, Chagall, MaxJacob, Seurat. Facto curioso, todos eram simultâneamente poetas e pintores. E com cada um deles guardava profundas ligações.
O palhaço é um poeta em acção.Ele é a história que desempenha. Sempre a mesma e eterna história- adoração, devoção, crucificação.« Uma crucificação Cor-de-Rosa»(*) bien entendu. A única parte da narrativa que me trouxe dificuldades foi a referente às poucas últimas páginas, que tive de escrever por várias vezes.« Há uma luz que mata», creio ter sido Balzac quem o disse, já não sei onde. Eu queria que o meu herói deixasse este mundo como o fenecer da luz. Mas não para a morte. Gostava que a sua morte iluminasse o caminho. Não a via como um fim de tudo, mas como o princípio. Quando Augusto se torna ele próprio, a vida começa- e não só para Augusto: para toda a humanidade.
Ninguém julgue que esta história foi maduramente reflectida! Contei-a simplesmente como a sentia, simplesmente à medida que ela se me ia revelando. É e não é minha. Trata-se, sem dúvida, da história mais estranha que escrevi até hoje. Não é um documento Surrealista- de maneira nenhuma. O processo formal pode ter sido Surrealista- mas que isto sirva apenas para dizer que os Surrealistas encontraram o verdadeiro método de criação. Não mais ainda do que todas as histórias baseadas em factos e na minha experiência pessoal, esta é verdadeira. Ao escreve-la, o meu único objectivo foi dizer a verdade, tal qual a concebo. (cont.)

(Henry Miller) (*)N.dosT-referência à trilogia The Rosy Crucifixion: Sexus, Plexus e Nexus

quarta-feira, março 11, 2009

Federico García Lorca e Leonard Cohen

segunda-feira, março 09, 2009

Jamais escrevera uma história por encomenda...

(Fernand Léger)

De todas as histórias que escrevi, esta é talvez a mais singular. Foi escrita expressamente para Fernand Léger, a fim de acompanhar uma série de quarenta ilustrações sobre otema dos palhaços e do circo.
Depois de ter aceite o convite de Léger, foram-me precisos alguns meses primeiro que decidisse pegar na caneta. Embora deixado em liberdade absoluta, sentia-me inibido. Jamais escrevera uma história por encomenda- como era o caso desta.
Quase obsessivamente, o meu espírito não parava de andar à volta destes nomes: Rouault, Miró, Chagall, Max Jacob, Seurat. Cheguei a desejar que em vez do texto me tivessem pedido para fazer ilustrações. Outrora pintara umas tantas aguarelas de palhaços entre as quais uma chamada «Cirque Médrano». Pelo menos um desses palhaços parece-se extraordinariamente com Marc Chagall, segundo dizem, muito embora eu nunca tenha encontrado Chagall, ou sequer visto a fotografia dele.
Não sem esforço, tentava começar o trabalho quando me veio caír às mãos um livrinho de Wallace Fowlie que inclui um penetrante ensaio sobre os palhaços de Rouault. Meditando na vida e obra de Rouault, que tão grande influência exerceram em mim, dei-me a pensar no palhaço que sou, que sempre fui. Pensei na paixão que tenho pelo circo, especialmente o cirque intime, e em como toda esta experiência de espectador e participante mudo deve estar profundamente enraizada na minha consciência. Lembrei-me de quando estava a terminar o liceu me terem perguntado o que pensava vir a ser e de eu ter respondido -palhaço!! Recordei velhos amigos que procediam na vida como palhaços-e que eram justamente aqueles que eu mais amava. E depois, para grande surpresa minha, descobri para grande surpresa minha que aos olhos dos amigos mais íntimos eu próprio era um palhaço. (cont.)

(Henry Miller)

sábado, março 07, 2009

De Sábado para Domingo um filme- Bicentennial Man





Um filme que me falhou, mas que merece ser visto. Inspirado na novela de Asimov http://www.nicholaswhyte.info/sf/tbm.htm, encontramo-nos perante um hino à vida, à liberdade, ao valor dos afectos.

Era o mundo que sempre existira no seu coração...

(Salvador Dali)
A sua verdadeira tragédia ( começava a entender) residia na incapacidade de comunicar aos outros o conhecimento que tinha da existência de um outro mundo, um mundo para além da ignorância e da fragilidade, para além do riso e das lágrimas. Era justamente essa barreira que o forçava a continuar palhaço do próprio Criador, pois em verdade não havia no mundo uma só pessoa a quem pudesse explicar o dilema.
E eis que de repente lhe surgiu a ideia-tão simples! que ser um zé-ninguém ou ser Alguém ou ser mesmo toda a gente não o impedia de ser ele próprio. Se era realmente um palhaço, então sê-lo-ia sempre e sempre, desde a hora matinal do levantar até o momento de fechar os olhos. Durante a temporada ou fora dela, por contrato ou simples prazer, continuaria palhaço. De tão inalteravelmente convencido desta sabedoria, queria já começar-mesmo sem caracterização, sem fatiota, sem acompanhamento do velho e guinchante violino. Tornar-se-ia de tal forma ele próprio que só a verdade, esta verdade que ardia agora nele como um incêndio, seria reconhecível.
Uma vez mais fechou os olhos, para melhor se afundar na treva. Assim ficou durante longo tempo, respirando calma e pacificamente no leito do seu próprio ser. Quando descerrou as pálpebras, revelou-se-lhe um mundo despojado de todos os véus. Era o mundo que sempre existira no seu coração, pronto sempre a manifestar-se-mas que só começa a pulsar no momento em que um homem pulsa em uníssono com ele. (Cont.)

(Henry Miller- O Sorriso aos pés da Escada)

Miró, Sempre a propósito

quinta-feira, março 05, 2009

O riso e as lágrimas

(Chagall)
«E se um dia conseguir chegar até à América do Sul...?»(Pusera-se a falar alto.)«Pode levar anos. E que língua falarei? E o que levará as pessoas a receber-me, a mim, um estranho, um desconhecido? Quem sabe mesmo se haverá circo em tais lugares...Suponho que sim, por certo terão os seus palhaços, falando a própria língua...»
Chegado a um pequeno jardim público estirou-se num banco.
«Isto precisa ser pensado mais cuidadosamente», repreendeu-se. »Um tipo não vai correr para a América do Sul assim do pé para a mão. C'os diabos!, não sou um albatroz. Chamo-me Augusto, tenho uns pés delicados e um estômago que reclama comida.»Um a um, começou a especificar os atributos humanos que o distinguiam dos pássaros do ar e das criaturas dos abismos. Por fim, as congeminações deram lugar a um vasto considerando sobre duas qualidades ou faculdades, que mais vincadamente separam o mundo dos homens do reino animal: o riso e as lágrimas.
Bem estranho, pensou, que ele, normalmente tão à vontade neste domínio, se perdesse em raciocínios mais dignos de uma criança de escola.
« Mas eu não sou um albatroz !» Este pensamento, por certo não muito brilhante, surgia-lhe amiudadas vezes enquanto revolvia o dilema de uma ponta a outra. Ainda que não fosse original ou brilhante, reconfortava-o, tranquilizava-o, na medida em que nem com um possível esforço de Imaginação Augusto se poderia considerar um albatroz.(...)
Ter ultrapassado os limites próprios, eis o erro que cometera. Porque não lhe bastara fazer rir as pessoas- procurara dar-lhes a alegria suprema, aquela que é já um dom do Criador. Não tinha ele descoberto isto no seu período de renúncia, ao fazer tudo o que lhe vinha à mão? Sentia agora próxima revelação a revelação de algo capital.

(Henry Miller- O Sorriso aos pés da escada)

segunda-feira, março 02, 2009

Ainda não te chegou, hein?

(Toulouse Lautrec)
«Não percebo», murmurou Augusto.«O que seria que o matou? Ontem à noite, quando falei com ele, não estava assim tão doente...»
«É certo, disse o outro.
Havia qualquer coisa neste «é certo» que fez sobressaltar Augusto.
«Você não quer dizer que?...»Interrompeu-se; era por de mais inacreditável, recusava-se a alimentar tal pensamento. Mas logo a seguir, apesar de tudo, formulou-o.
«Você não quer dizer», e aqui vacilou de novo, «você não quer dizer que ele soube...?»
«Exactamente.»
Augusto voltou a estremecer.
«Se me perguntassem a minha opinião sincera», continuou o patrão no mesmo tom agreste, « eu diria que ele morreu com o coração despedaçado.»
Pararam abruptamente.
«Ouça», disse o patrão,« a culpa não é sua. Não leve o caso demasiado a sério. Eu sei, todos sabemos, que você não contribuiu para a morte dele. De qualquer modo, a verdade é que o António nunca poderia vir a ser um grande palhaço. Já tinha desistido há muito tempo.»Ciciou quaisquer palavras ininteligíveis e prosseguiu, num suspiro: « Mas há um problema: como iremos explicar a exibição de ontem à noite? Agora vai ser difícil encobrir a verdade não acha? Nenhum de nós contava que ele morresse de repente, não é assim?»
Após breve silêncio, Augusto disse calmamente: « Gostaria de ficar uns minutos só. Não se importa?»
«Certo, disse o patrão.« Vá pensando no caso. Ainda há tempo...»
Não acrescentou para quê.
Profundamente abatido, Augusto partiu ao acaso, na direcção da cidade.Caminhou durante longo tempo sem um único pensamento, só uma espécie de dor obtusa e entorpecente se lhe filtrando por todo o corpo. Sentando-se finalmente ao canto de um terrasse pediu uma bebida. Não, decididamente nunca admitira uma tal eventualidade. Novo truque do destino. Uma coisa era evidente: ou teria de voltar a ser Augusto ou continuaria a apresentar-se como António. O anonimato é que já lhe era impossível . Pôs-se então a pensar no companheiro, naquele António que na véspera tinha personificado. Seria capaz de repetir o mesmo, hoje, com um entusiasmo e um prazer idênticos?
Esquecia-se já do amigo que, frio e inerte, jazia na roulotte. Sem de tal se ter apercebido enfiara-se na pele de António. Minuciosamente, ensaiou o número, analizando-o, desmontando-o
peça por peça, preenchendo-lhe as lacunas, melhorando-o aqui e ali...e assim por diante, de número em número, de público em público, noite após noite, de cidade em cidade. Por fim, voltou a si. E bruscamente, endireitando-se na cadeira, pôs-se a falr muito a sério consigo mesmo.«Voltas então a ser palhaço, não é isso? Ainda não te chegou, hein? Mataste o Augusto, assassinaste o António...E agora, quem se segue? Há dois dias eras um homem feliz, um homem livre. Agora foste apanhado, não passas de um reles assassino. E ainda supões que apesar da consciência culpada podes fazer rir as pessoas, não é? Ah! não, estás a levar as coisas longe de mais!» (cont.)

(Henry Miller- O sorriso aos pés da escada)

Ser palhaço era ser peão no xadrez do destino


(Miró)
Às vezes basta um ligeiro acaso, um golpe de sorte, um empurrão vindo de algures- e pronto, estamos lançados!»
Aqui, recordou a sua brusca ascenção aos pináculos da fama. Que tinha ele, Augusto, a ver com isso? O que não passara de simples acaso fora aclamado de um dia para o outro como golpe de génio. Bem pequena era a compreensão do público! Bem pequena a compreensão de qualquer um quando o destino estava em jogo! Ser palhaço era ser peão no xadrez do destino. Na pista, a vida não passa de um mudo espectáculo feito de cambalhotas, bofetadas, pontapés- um nunca acabar de fintas e contra-ataques. E era por meio desta vergonhosa rigolade que uma pessoa conquistava os favores do público! O idolatrado palhaço!O bem-amado palhaço cujo privilégio especial consistia em reviver erros, as loucuras, as idiotices, todas as incompreensões que afligem a espécie humana! Ser a própria inépcia era algo que mesmo o mais imbecil dos imbecis poderia entender. Não compreender as coisas, quando tudo é tão claro como a luz do dia; não dar pelo truque, embora repetido milhares de vezes; tatear como um cego, quando todos os sinais indicam a direcção exacta; insistir em franquear a porta errada, apesar do aviso de PERIGO!; avançar para dentro do espelho, em vez de torneá-lo; espreitar pelo extremo errado de uma carabina, uma carabina carregada!nunca as pessoas se cansam destas coisas absurdas, pois há milénios que os seres humanos se enganam no caminho, há milénios que todas as suas buscas e interrogações desaguam num beco sem saída. O mestre da inépcia tem como domínio o tempo inteiro. Só se dá por vencido perante a eternidade...(cont.)

(Henry Miller- O Sorriso aos pés da escada)