segunda-feira, novembro 24, 2008

Eu ia-os seguindo em silêncio...


Eu fiquei a atender ao balcão da loja enquanto Fermín, com as suas habituais manobras de equilibrista, se empenhou em encarripitar-se na escada e arrumar a última estante de livros que ficava apenas a um palmo do tecto. Pouco antes de fechar, quando o sol se pusera, a silhueta de Bernarda recortou-se atrás do balcão. Estava vestida de quinta-feira, o seu dia livre, e cumprimentou-me com a mão. Iluminou-se-me a alma só de a ver e fiz-lhe sinal para entrar.
-Ai, que grande que o menino está!-disse ela do umbral.-É que quase nem o conhecia...Já está um homem!
Abraçou-me, soltando umas lagrimazinhas e apalpando-me a cabeça, os ombros e a cara, para ver se eu me teria desfeito na sua ausência.
-Sente-se a sua falta lá em casa, menino-disse, baixando o olhar.
-E eu senti a tua falta, Bernarda. Anda, dá-me um beijo.
Beijou-me timidamente e eu preguei-lhe um par de sonoros beijos em cada face. Riu-se. Vi nos seus olhos que estava à espera de que lhe perguntasse por Clara, mas eu não pensava em fazê-lo.
-Estás hoje muito bonita e muito elegante. Como foi que decidiste a vir-nos visitar?
-Bem, a verdade é que já há tempos que queria vir vê-lo, mas bem sabe como as coisas são, e eu cá ando sempre muito ocupada, que o senhor Barceló, embora seja muito sábio, é como uma criança, e eu cá tenho de fazer das tripas coração. Mas o que me traz é que, já vê,amanhã é dia de aniversário da minha sobrinha, a de San Adrián, e eu gostaria de lhe dar uma prenda. Tinha pensado em oferecer-lhe um livro, com muita letra e poucos bonecos, mas como sou burra e não percebo...
Antes que eu pudesse responder, a loja foi sacudida por um estrondo balístico ao precipitarem-se das alturas umas obras completas de Blasco Ibañez de capa dura. Bernarda e eu erguemos a vista, sobressaltados. Fermín escorregava pelas escadas abaixo como um trapezista, um sorriso florentino estampado no rosto e os olhos impregnados de luxúria e arrebatamento.
- Bernarda, este é...
-Fermín Romero de Torres, assessor bibliográfico de Sempere e filho, aos seus pés, minha senhora-proclamou Fermín, pegando na mão de Bernarda e beijando-a cerimoniosamente.
Em questão de segundos, Bernarda ficou um pimentão.
-Ai, que o senhor está enganado, eu de senhora...
-No mínimo marquesa - atalhou Fermín.-Eu tenho obrigação de saber, que calcorreio o mais fino da Avenida Pearson. Permita-me a honra de a escoltar até esta nossa secção de clássicos juvenis e infantis onde providencialmente observo que temos um compêndio com o melhor de Emilio Salgari e da épica narração de Sandokan.
- Ai, não sei, vidas de santos faz-me espécie, porque o pai da menina era muito CNT, sabe?
- Não se preocupe, porque tenho aqui nada mais, nada menos que A Ilha Misteriosa de Júlio Verne, relato de alta aventura e grande conteúdo educativo, devido aos avanços tecnológicos.
- Se o senhor acha bem...
Eu ia-os seguindo em silêncio, observando como Fermín se babava e como Bernarda se perturbava com as atenções daquele homenzinho com pinta de charutanga e lábia de feirante que a olhava com o ímpeto que reservava para as tabletes de chocolate Nestlé.(cont.)

(Carlos Ruiz Zafón- A Sombra do Vento)


2 comentários:

  1. Um encanto. Pura delícia
    Obrigado pela escolha e partilha.
    Bj.

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  2. Lindo! O Kan , na verdade, tinha pouco de "Santo" era mais "Sando"...

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