segunda-feira, novembro 10, 2008

Desfiz o cuidadoso envoltório...



-Pregaste-me um susto de morte.
Não havia cólera na sua voz, nem praticamente censura, apenas cansaço.
-Bem sei. E lamento-o-respondi.
-Que foi que fizeste na cara?
-Escorreguei na chuva e caí.
-Essa chuva devia ter uma boa direita. Põe qualquer coisa.
-Não é nada. Nem noto-menti.- Do que preciso é de ir dormir. Não me tenho em pé.
-Pelo menos abre o teu presente antes de ires para a cama-disse o meu pai.
Apontou para o embrulho envolvido em papel celofane que me tinha depositado na noite anterior em cima da mesa da casa de jantar. Hesitei um instante. O meu pai assentiu. Peguei no embrulho e sopesei-o. Estendi-o ao meu pai sem abrir.
- O melhor é que o devolvas. Não mereço nenhum presente.
- Os presentes dão-se pelo prazer de quem oferece, não pelo mérito de quem recebe- disse o meu pai.- Além disso, já não se pode devolver. Abre-o.
Desfiz o cuidadoso envoltório na penumbra do alvorecer. O embrulho continha uma caixa de madeira trabalhada, reluzente, debruada com rebites dourados. Iluminou-se-me o sorriso antes de a abrir. O som do fecho a abrir-se era requintado, de mecanismo de relojoaria. O interior do estojo era forrado de veludo azul-escuro. A famosa caneta Montblanc Meisterstuck de Victor Hugo repousava no centro, deslumbrante. Tomei-a nas mãos e contemplei-a à luz da varanda. Sobre a mola de ouro da tampa estava gravada a inscrição

Daniel Sempere 1953

Olhei o meu pai, boquiaberto.Acho que nunca o vi tão feliz como me pareceu naquele instante. Sem uma palavra, levantou-se da poltrona e abraçou-me com força. Senti que se me apertava a garganta e, à falta de palavras, mordi a voz.

(Carlos Ruiz Zafón- A Sombra do Vento)

4 comentários:

  1. Um excerto que muito me tocou eu que ainda escrevo e só com caneta de tinta permanente e tinta de cor sépia.

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  2. Um livro extraordinário que me deu imenso prazer ler.

    E depois...gosto imenso de canetas, esferográficas, lápis...

    À minha espera está o Jogo do Anjo.

    :)

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  3. Não li o livro mas gostei muito deste excerto.
    Fez-me recordar as canetas da minha infância.
    A Pelikan, modesta, mas que foi a minha primeira.
    E a Parker, preciosa, que o meu pai me emprestava para eu fazer as provas da escola mais importantes.

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