terça-feira, dezembro 16, 2008

Conta uma história de Natal do teu país...


(Les Halles-vista de noite)
(....)
Mais tarde, muito mais tarde, eu estava no exílio. Na noite de Natal os revolucionários ficavam tristes e nostálgicos. Talvez recordassem outras avós, outros presépios, outros lugares. Reuniam-se em casa deste ou daquele, improvisava-se uma árvore de Natal, trocavam-se presentes. Mas ninguém, nem mesmo os mais duros, os que faziam gala em dizer que o Natal para eles não significava nada, nem mesmo esses conseguiam disfarçar uma sombra no olhar. Saudade, dir-se-á. Mas talvez fosse mais do que saudade e solidão e o pior de todos os exílios que é o de se sentir estrangeiro no mundo. Talvez fosse a consciência de que, para lá de todas as crenças ou não crenças, havia um irremediável sentimento de perda. Muitas vezes me perguntei o que seria. Mas não conseguia responder. Sentia o mesmo aperto, o mesmo buraco por dentro, o mesmo sentimento de algo para sempre perdido.
Uma noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do Porto, mas não fui capaz de bebê-la assim, completamente só, num quarto de criada de um sexto andar numa velha rua do Quartier Latin. Peguei na garrafa e fui até aos Halles. Procurei o bistrot onde costumava comer uma omelete de fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia mais três solitários no bistrot, um velho de grandes barbas, um tipo com cara de eslavo, um africano. Convidei-os para partilharem comigo a garrafa de Porto, que não resistiu muito tempo. Encomendámos outras bebidas.
- Conta uma história de Natal do teu país, pediu o velho.
- Só se for a do presépio da minha avó.
- Então conta.
Eu contei. Era já muito tarde e o patrão disse-nos que queria fechar. Chegados à rua o africano apontou o céu e disse-me: Olha.
E eu vi. Uma estrela que brilhava mais que as outras estrelas. Era uma estrela de prata. A estrela da avó. Brilhava no céu, brilhava outra vez dentro de mim, quase posso jurar que brilhava dentro dos outros três.
Então eu perguntei ao africano como se chamava. E ele respondeu:
- Baltazar.
Perguntei ao velho e ele disse:
- Melchior.
E sem que sequer eu lhe perguntasse o eslavo disse:
- O meu nome é Gaspar.
Era noite de Natal e talvez ainda por magia da avó eu estava na rua, em Les Halles, com os três reis do Oriente, Magos, diria o meu pai.
- E agora? perguntei a Baltazar.
- Agora, respondeu o africano apontando a estrela, agora vamos para Belém.

(Manuel Alegre)



2 comentários:

  1. Belo texto do Manuel Alegre.A recordar como dói o exílio, a ausência dos recantos onde temos as referências.
    Recorda-me, embora com outro enquadramento, os dois natais que vivi em Timor, nos anos setenta.

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  2. Gosto imenso deste conto.
    Comovo-me ao lê-lo.
    Vai estar, também, n' aluaflutua. O presépio que o há-de, lá, acompanhar, será dedicado à addiragram.
    Porque, apesar da virtualidade, há pessoas de quem começamos a gostar aqui.

    :)

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