quarta-feira, setembro 17, 2008

Pela primeira vez vi-a como ela era...

E, por outro lado, havia a incómoda questão da morte em si. A primeira reacção a um diagnóstico de cancro é, frequentemente, a incredulidade. Quando tentamos imaginar a nossa morte, a nossa mente insurge-se. Como se a morte só acontecesse aos outros. Tolstoi descreve esta reacção na perfeição, em a Morte de Ivan Ilych. À semelhança de muitos outros antes de mim, identifiquei-me com esta história. Ivan Ilych é juiz em S.Petersburgo. Tem uma vida perfeitamente regrada até ao dia em que adoece. Ninguém lhe diz a gravidade da sua doença. Quando, no final, se apercebe de que está a morrer, todo o seu ser se revolta contra a ideia. Impossível!

"Bem no fundo do coração ele sabia que estava a morrer, mas a questão não era só a de que não estava habituado á ideia, ele simplesmente não conseguia apreendê-la. O silogismo que tinha aprendido na Lógica de Kiezewetter: "Caio é homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal" sempre lhe parecera correcto quando aplicado a Caio, mas, claro, não aplicado a si próprio. Que Caio- homem em abstracto- era mortal estava perfeitamente correcto, mas ele não era Caio, não era homem abstracto, mas uma criatura bem individual, bem separada das outras. Tinha sido o pequeno Vanya, com uma mamã e um papá, com Mitya e Volodya, com brinquedos, um cocheiro e uma ama, depois com Katenka e com todas as alegrias, dores e deleites da infância, da adolescência e da juventude. O que é que o Caio sabia do cheiro daquela bola de couro às riscas de que Vanya gostava tanto? Caio tinha beijado assim a mão de sua mãe, e a seda do seu vestido tinha sussurado assim para Caio? Ele tinha-se rebelado assim na escola quando os pasteis não estavam bons? Caio tinha-se apaixonado assim? Podia Caio presidir a uma sessão como ele fazia? Caio era realmente mortal e estava certo que ele morresse; mas quanto a mim, o pequeno Vanya, Ivan Ilich, com todos os seus pensamentos e emoções, a coisa é completamente diferente. Não é possível que eu tenha de morrer. Isso seria terrível demais".

Antes de roçarmos a mortalidade, a vida parece-nos infinita, e preferimos manter essa perspectiva. Parece que nunca nos faltará tempo para irmos em busca da felicidade. Primeiro, tenho de acabar o curso, pagar os empréstimos, criar os meus filhos, reformar-me...mais tarde, hei-de preocupar-me com a felicidade. Quando deixamos para amanhã a procura do essencial, podemos deixar a vida escapar-nos poe entre os dedos sem sequer a termos saboreado.

Por vezes o cancro cura esta estranha miopia, esta dança de hesitações. Ao expor a brevidade da vida, um diagnóstico de cancro pode restituir à vida o seu verdadeiro sabor. Algumas semanas depois do meu diagnóstico, tive a estranha sensação de que se erguera um véu que, até então, me toldava a visão. Numa tarde de domingo, olhei para a Anna, no pequeno quarto solarengo da nossa minúscula casa. Concentrada e tranquila, estava sentada no chão, ao lado de uma mesa baixa, tentando traduzir para inglês poesia francesa. Pela primeira vez, vi-a como ela era, sem pensar se devia escolher outra companheira. Via simplesmente a madeixa do cabelo que deslizava graciosamente para a frente quando ela inclinava a cabeça para o livro, a delicadeza dos seus dedos a agarrar suavemente a cabeça. Fiquei surpreendido por nunca ter notado quão comoventes eram as contracções do seu maxilar quando tinha dificuldade em encontrar a palavra que procurava. De repente, vi-a como ela era, independentemente das minhas questões e das minhas dúvidas. A sua presença tornou-se incrivelmente comovente. O simples facto de poder presenciar aquel momento parecia-me um imenso privilégio. Porque nunca a vira assim ,antes?

(continua)

(David Servan- Schreiber- Anti-cancro)

1 comentário:

  1. Deliciosa descrição. Ver o mesmo mas com outros olhos; especialmente ver aquela pessoa e estar pela primeira vez atento aos pormenores; porque a perspectiva era a de restar pouco tempo!
    Aguardo mais!

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