terça-feira, setembro 23, 2008

Eu murmurava, impressionado: -caramba!


Por uma conclusão bem natural, a ideia de Civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de Cidade, com todos os vastos orgãos funcionando poderosamente. Nem este meu supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos por três mil caixeiros; e de mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de trinta fábricas fumegando com ânsia, inventando com ânsia; e de bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada de séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante de ónibus, tramways, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões de uma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar, através da Polícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo- o homem do séc. XIX pudesse saborear, plenamente a delícia de viver!
Quando Jacinto, no seu quarto 202, com as varandas abertas sobre os lilases, me desenrolava estas imagens, todo ele crescia, iluminado. Que criação augusta, a da Cidade! Só por ela, Zé Fernandes, só por ela, pode um homem soberbamente afirmar a sua alma!...
_ Oh Jacinto, e a religião? Pois a religião não prova a alma?
Ele encolhia os ombros. A religião! A religião é o desenvolvimento sumptuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror. Um cão lambendo a mão do dono, de quem lhe vem o osso ou chicote, já constitui toscamente um devoto, o consciente devoto, prostrado em rezas ante o Deus que distribui o Céu ou o Inferno!...Mas o telefone! O fonógrafo!
- Ai tens tu, o fonógrafo?...Só o fonógrafo, Zé Fernandes, me faz verdadeiramente a minha superioridade de ser pensante e me separa do bicho. Acredita, não há senão a Cidade, Zé Fernandes, não há senão a Cidade!
E depois (acrescentava) só a Cidade lhe dava a sensação, tão necessária à vida como o calor, da solidariedade humana. E no 202, quando considerava em redor, nas densas massas do casario de Paris, dois milhões de seres arquejando na obra da Civilização (para manter na Natureza o domínio dos Jacintos!)sentia um sossego, um aconchego, só comparáveis ao do peregrino, que, ao atravessar o deserto, se ergue no seu dromedário e avista a longa fila da caravana marchando, de lumes e armas...
Eu murmurava, impressionado:
-Caramba!

(Eça de Queirós- A Cidade e as Serras)

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