sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Freud responde a Einstein- V

(Picasso)
Uma queixa que o senhor formulou acerca do abuso de autoridade leva-me a uma sugestão para o combate indirecto à propensão à guerra. Um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é a sua tendência a se classificarem em dois tipos, o de líderes e o de seguidores. Uma autoridade que tome decisões por eles e à qual, se devotam uma submissão ilimitada. Isso sugere que se deva dar mais atenção, do que até hoje se tem dado, à educação da camada superior dos homens dotados de mentalidade independente, não passível de intimidação e desejosa de manter-se fiel à verdade, cuja preocupação seja a de dirigir as massas dependentes. É desnecessário dizer que as usurpações cometidas pelo poder executivo do Estado e a proibição estabelecida pela Igreja contra a liberdade de pensamento não são nada favoráveis à formação de uma classe deste tipo.(...)
Eu gostaria, porém, de discutir mais uma questão que o senhor não menciona na sua carta, a qual interessa em especial. Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Porque não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? Afinal, parece ser uma coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser dificilmente evitável na prática. Não há motivo para se surpreender com o facto de eu levantar essa questão. Para o propósito de uma investigação como esta, poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento, A resposta à minha pergunta será a de que reagimos à guerra dessa maneira, porque toda a pessoa que tem direito à sua própria vida, porque a guerra põe término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objectos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade. Outras razões mais poderiam ser apresentadas, como a de que, na sua forma actual, a guerra não é mais uma oportunidade de atingir os velhos ideiais de heroísmo, e de que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de destruição, uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonistas ou, quem sabe, de ambos. Tudo isso é verdadeiro, e tão incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir perplexidade ante o facto de a guerra ainda não ter sido
unanimente repudiada. (....) Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos básicos. E sendo assim, temos argumentos que justifiquem a nossa atitude.
Sem dúvida, isto exige alguma explicação. Creio que se trata do seguinte. Durante de períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por um processo de evolução cultural ( sei que alguns preferem empregar o termo" civilização"). É a esse processo que devemos o melhor daquilo em que nos tornamos, bem como uma boa parte daquilo de que padecemos. Embora suas causas e seus começos sejam obscuros e incerto o seu resultado, algumas das suas características são de fácil percepção. Talvez esse processo esteja levando à extinção da raça humana, pois em mais de um sentido prejudica a função sexual; povos incultos e camadas atrasadas da população já se multiplicaram mais rapidamente do que as camadas superiormente intruídas.(...)As modificações psíquicas que acompanham o processo de civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais. Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais éticos e estéticos. Dentre as características psicológicas da civilização, duas apatrecem como as mais importantes: O fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida instintual , e a internalização dos impulsos agressivos com todas as consequentes vantagens e perigos. Ora a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional; nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau. Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que as suas crueldades.
E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois factores, a atitude cultural e o justificado medo das consequências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra. Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultâneamente contra a guerra.
Espere que o senhor me perdoe se o que eu disse o desapontou, e com expressão de toda a estima, subscrevo-me,

Cordialmente,

SIGM. FREUD

Nota: A carta de Einstein chegou a Freud no início de Agosto de 1932 e a sua resposta foi concluída um mês depois. A correspondência foi publicada em Paris, pelo Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual em Março de 1933, em alemão, francês e inglês, simultâneamente. A sua circulação, contudo foi proibida na Alemanha.

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