As ruas eram de terra, quando chovia ficava tudo alagado. Não tínhamos uma casa, morávamos numa assoalhada só. Dormíamos todos no chão e o banheiro era lá f0ra. Eu era o mais velho de quatro irmãos, e havia ainda os meus dois irmãos do primeiro casamento da minha mãe.
Que memórias tem da sua infância?
Minha mãe trabalhava muito, limpava, arrumava, lavava roupa para fora. Meu pai trabalhava bastante também, em electricidade, às vezes pegava casas para pintar e passava lá uma semana, porque morávamos longe do centro. E também tocava percussão em clubes, bailes, no Carnaval. Havia um parque de diversões famoso na época, na zona sul do Rio de Janeiro, e meu pai chegou a tocar lá. Era muito legal, porque podíamos andar nos brinquedos. Não costumávamos brincar muito. Fui trabalhar com 10 anos e o trabalho virou a grande brincadeira: ganhar dinheiro!
Mas também estudava. Como foi parar a um colégio particular?
Foi muito difícil, nossa senhora! Havia discriminação, era colégio de branco, de gente rica e era muito complicado conviver e fazer amizades. Eu e os meus irmãos só estávamos ali porque ganhámos uma bolsa. Só tínhamos de comprar o material e o uniforme...mas se faltava dinheiro para comer, imagina material de escola...Na sala de aula, era horrível. A professora dizia«agora quero o livro» e toda a gente botava o livro na mesa, menos eu. Para as primeiras aulas tínhamos material, mas depois o papel acaba, o lápis quebra, a borracha some...Gostava de estudar, mas fiquei tão mal na frequência, nas notas, que perdi um ano e aí perdi a bolsa. No ano seguinte, voltei a perder o ano e tive de pegar o colégio inteiro...E os meus irmãos perderam também, então eram quatro mensalidades. Ficou impossível fomos obrigados a sair. Tinha 12 anos. E já trabalhava desde os dez.
Começou a trabalhar para ajudar em casa, mas também para comprar um saxofone?
. Havia lá uma banda que tocava no 7 de Setembro, dia da independência do Brasil. Via a garotada tocar e o meu pai também...Mas o sax era muito caro, foi impossível de comprar.
Já havia música, na sua vida,nessa altura? A gente nem tinha banheiro, quanto mais rádio. Na minha infância e adolescência ninguém imaginou que ia ser músico. Nunca consegui dizer abertamente « quando crescer quero ser músico», porque isso era um sonho que não se permite a gente como nós. Se dissesse isso, iam rir na minha cara e dizer: « Está maluco?!»Vai arrumar o que fazer.
Mas havia os bailes, na sua adolescência?
Havia uma música muito atraente, a música negra americana. Era a descoberta de menino, de querer ter uma relação social, sair com os colegas, conhecer as meninas e dançar. A minha fixação era dançar.
(....)
No serviço militar, apareceu a corneta...
Queria dar um jeito de pegar o serviço mais fácil. Pensei que podia ir para a garagem ou ser músico, e a minha unidade tinha uma fanfarra. Era simples : se fosse soldado comum ficava no sol, se fosse corneteiro, ficava na sombra, ao lado do comandante. Pedi para entrar e fui escolhido para o curso de três meses, numa outra unidade para aprender a tocar corneta. Foi muito bom. Nunca mais esqueço o Sargento José...pegava no meu pé, mas foi um grande amigo, um cara que torceu muito por mim.
Porque é que ele pegava no seu pé?
Vamos censurar um garoto com 19 anos? Não tem como. A vida inteira reprimido...Para o serviço militar só vão os pobres, não vai ninguém que é rico-esses dão um jeito de escapar. Não ia concordar em ficar lá limpando, pintando paredes com cal e arrancando mato de paralelipipedo. Podia ser útil se aprendesse outras coisas.
Nem a corneta lhe deu vontade de ficar?
Teria vontade se fosse respeitado como músico. Mas quando voltei do curso, deram-me uma arma. Se quisesse pegar em arma, ficava na favela...
(....)
Foi quando saiu do exército que morreu o seu irmão Vitório?
Já tinha morrido um outro irmão meu, em 1986, numa chacina, e, quatro anos depois, Vitório faleceu, lá na comunidade onde morávamos também numa chacina. Eu estava para fazer 20 anos.
Como se gere uma morte assim?
Não sei. Só sei que queria ficar muito longe dali. Já queria ter saído há muito tempo, mas deu. Depois saímos todos, e separámo-nos. Cada um ficou em casa de um parente de favor. Fui com o meu irmão menor para casa de um tio, onde já estava outro meu irmão. Meu pai também dormia lá, às vezes , minha tia, outra tia... A casa ficou muito cheia e a despesa aumentou. Precisei sair, tinha de reagir, mas não sabia muito bem o que fazer. Tinha acabado de ser expulso do exército, estava sem documentos...Enquanto não vinha uma ideia, fui procurar pela rua o que fazer. Foi aí que conheci Gabriel Moura. Vi-o tocar violão e decidi ser músico. Ser músico era bom para fazer amizades e talvez assim conseguisse arranjar emprego. Comecei a tocar percussão com uns músicos que me deixavam tocar com eles. Não ganhava dinheiro mas tina que comer.
Nessa altura dormia na rua?
É, mas frequentava uns bares onde todo o mundo me conhecia e sabia que eu era do bem, que o meu negócio era música. No final da noite, sempre me davam que comer.
Onde é que dormia?
Onde estivesse mais protegido da chuva, da confusão, onde ficasse mais discreto...Porque era uma vergonha...Chegar com um pedaço de papelão para forrar o chão e deitar...Sem coberta, sem nada...
E sentia medo?
Dá medo da maldade das pessoas....Pegam você, tacam álcool e pegam fogo...
Isso aconteceu-lhe?Queria dar um jeito de pegar o serviço mais fácil. Pensei que podia ir para a garagem ou ser músico, e a minha unidade tinha uma fanfarra. Era simples : se fosse soldado comum ficava no sol, se fosse corneteiro, ficava na sombra, ao lado do comandante. Pedi para entrar e fui escolhido para o curso de três meses, numa outra unidade para aprender a tocar corneta. Foi muito bom. Nunca mais esqueço o Sargento José...pegava no meu pé, mas foi um grande amigo, um cara que torceu muito por mim.
Porque é que ele pegava no seu pé?
Vamos censurar um garoto com 19 anos? Não tem como. A vida inteira reprimido...Para o serviço militar só vão os pobres, não vai ninguém que é rico-esses dão um jeito de escapar. Não ia concordar em ficar lá limpando, pintando paredes com cal e arrancando mato de paralelipipedo. Podia ser útil se aprendesse outras coisas.
Nem a corneta lhe deu vontade de ficar?
Teria vontade se fosse respeitado como músico. Mas quando voltei do curso, deram-me uma arma. Se quisesse pegar em arma, ficava na favela...
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Foi quando saiu do exército que morreu o seu irmão Vitório?
Já tinha morrido um outro irmão meu, em 1986, numa chacina, e, quatro anos depois, Vitório faleceu, lá na comunidade onde morávamos também numa chacina. Eu estava para fazer 20 anos.
Como se gere uma morte assim?
Não sei. Só sei que queria ficar muito longe dali. Já queria ter saído há muito tempo, mas deu. Depois saímos todos, e separámo-nos. Cada um ficou em casa de um parente de favor. Fui com o meu irmão menor para casa de um tio, onde já estava outro meu irmão. Meu pai também dormia lá, às vezes , minha tia, outra tia... A casa ficou muito cheia e a despesa aumentou. Precisei sair, tinha de reagir, mas não sabia muito bem o que fazer. Tinha acabado de ser expulso do exército, estava sem documentos...Enquanto não vinha uma ideia, fui procurar pela rua o que fazer. Foi aí que conheci Gabriel Moura. Vi-o tocar violão e decidi ser músico. Ser músico era bom para fazer amizades e talvez assim conseguisse arranjar emprego. Comecei a tocar percussão com uns músicos que me deixavam tocar com eles. Não ganhava dinheiro mas tina que comer.
Nessa altura dormia na rua?
É, mas frequentava uns bares onde todo o mundo me conhecia e sabia que eu era do bem, que o meu negócio era música. No final da noite, sempre me davam que comer.
Onde é que dormia?
Onde estivesse mais protegido da chuva, da confusão, onde ficasse mais discreto...Porque era uma vergonha...Chegar com um pedaço de papelão para forrar o chão e deitar...Sem coberta, sem nada...
E sentia medo?
Dá medo da maldade das pessoas....Pegam você, tacam álcool e pegam fogo...
Tentaram uma vez jogar álcool em mim. Acordei assustado, corri para um lado e o cara correu para outro. Depois disso foi difícil acreditar que tinha gente bacana, porque uma pessoa tacar fogo na outra à toa, só para se divertir...Não é um medo, é um receio, você fica todo o tempo com um olho aberto e outro fechado. Literalmente.
(...)
Como foi com os Farofa Carioca?
Saí da rua. Eu cantava. Eram oito caras, mas chegámos a ser trinta e cinco no palco, porque tinha uma companhia de circo, acrobatas, malabaristas, perna de pau...Fiquei dois anos e fizemos um disco. Em 1999, saí por incompatibilidades. Os meninos não me quiseram mais, e reconheço que era difícil. Era imaturo e tinha vontade de ver as coisas a acontecer. A urgência deles para a fama era para amanhã, e eu tinha outra viagem...
(...)
O que fez quando saiu dos Farofa Carioca?
Decidi dar um tempo, fui tocar com outros amigos, conhecer outras pessoas. Era conhecido de um público alternativo. Quando gravei Samba Esporte Fino, em 2001, as pessoas já não se lembravam de que tinha sido o Farofa Carioca. Nesse ano entrei em Cidade de Deus.O disco não saiu por causa do filme. Depois ficou prejudicado outra vez. Ficou um disco raro, que ninguém encontrava. A música Carolina tornou-se muito conhecida. Em 2002 com a estreia de Cidade de Deus as coisas mudaram.
Mudou a vida?
Totalmente. Mas quase não recebia o Fernando Meirelles ( realizador da Cidade de Deus)...Olha que besteira que ia cometer! Tínhamos marcado, mas havia muito trânsito e nada do cara chegar. Falei « ah, vou embora».E ele lá chegou. E eu disse « puxa, acabei de fazer um disco, estou tão entusiasmado». mas ele contou a história, eu sentei cinco minutos e disse «está bem». Achei um desafio. Pensei « vai ser um filme transformador, vai dar muito que falar, vai ser o topo da cadeia alimentar». E é um dos melhores filmes da década! Para mim, foi para a vida. Vou morrer e esse negócio vai ficar para a eternidade. Todos vão lembrar de Marlon Brando, de Scorcese, de Spielberg...E de Cidade de Deus.
(...........)
Cantar temas sociais ainda é importante?
Somos testemunhas de um tempo e as coisas ainda necessitam de transformações. Mas nasce naturalmente. às vezes quero falar de coisas comuns, mas por mais que faça música de amor sempre tem um orelhão(cabine telefónica) escangalhou, um trânsito ruim, sempre tem um negócio social...Não dá para pintar tudo de rosa, tem cores cinza, outras azuis...
É por isso, também, que está a fazer um documentário sobre o trabalhador brasileiro?
Diz-se que o Brasil está crescendo, que a economia está melhorando, então quero saber como o brasileiro tem sentido isso, quais são os seus sonhos, o que esperam do trabalho..Entrevistei médicos, enfermeiras, ambulantes, artesãos, artistas...Minha mulher filma, eu entrevisto. Vou falar com pessoas aqui em Portugal e na Alemanha, para saber como é trabalhar fora do Brasil.
Como é ser olhado de lado na rua, e depois ser uma estrela da música e do cinema?
Quando descobri o violão, achei uma turma e deixei de sofrer rejeição. O sentimento que tenho é de dignidade restaurada. Vejo-me na condição de igual, com toda a minha diferença. não me sinto melhor só porque passei o que passei e hoje sou o que sou. acho que não sou nada, sou mais um ser humano na luta pela dignidade. É poder olhar no olho do meu semelhante e ver o respeito dele por mim, não o seu julgamento, o seu mal entendido.
A sua família também deu a volta por cima?
Totalmente. Mas quase não recebia o Fernando Meirelles ( realizador da Cidade de Deus)...Olha que besteira que ia cometer! Tínhamos marcado, mas havia muito trânsito e nada do cara chegar. Falei « ah, vou embora».E ele lá chegou. E eu disse « puxa, acabei de fazer um disco, estou tão entusiasmado». mas ele contou a história, eu sentei cinco minutos e disse «está bem». Achei um desafio. Pensei « vai ser um filme transformador, vai dar muito que falar, vai ser o topo da cadeia alimentar». E é um dos melhores filmes da década! Para mim, foi para a vida. Vou morrer e esse negócio vai ficar para a eternidade. Todos vão lembrar de Marlon Brando, de Scorcese, de Spielberg...E de Cidade de Deus.
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Cantar temas sociais ainda é importante?
Somos testemunhas de um tempo e as coisas ainda necessitam de transformações. Mas nasce naturalmente. às vezes quero falar de coisas comuns, mas por mais que faça música de amor sempre tem um orelhão(cabine telefónica) escangalhou, um trânsito ruim, sempre tem um negócio social...Não dá para pintar tudo de rosa, tem cores cinza, outras azuis...
É por isso, também, que está a fazer um documentário sobre o trabalhador brasileiro?
Diz-se que o Brasil está crescendo, que a economia está melhorando, então quero saber como o brasileiro tem sentido isso, quais são os seus sonhos, o que esperam do trabalho..Entrevistei médicos, enfermeiras, ambulantes, artesãos, artistas...Minha mulher filma, eu entrevisto. Vou falar com pessoas aqui em Portugal e na Alemanha, para saber como é trabalhar fora do Brasil.
Como é ser olhado de lado na rua, e depois ser uma estrela da música e do cinema?
Quando descobri o violão, achei uma turma e deixei de sofrer rejeição. O sentimento que tenho é de dignidade restaurada. Vejo-me na condição de igual, com toda a minha diferença. não me sinto melhor só porque passei o que passei e hoje sou o que sou. acho que não sou nada, sou mais um ser humano na luta pela dignidade. É poder olhar no olho do meu semelhante e ver o respeito dele por mim, não o seu julgamento, o seu mal entendido.
A sua família também deu a volta por cima?
No aspecto da dignidade, a minha vitória serviu para todos. Tinham medo de que eu estivesse imaginando só fantasia. Foi uma felicidade e um alívio. Eles ficavam preocupados por eu estar morando na rua, sem ter o que comer. « Está andando com quem? Está fazendo o quê para se virar?» E, de repente, tudo vai para o seu lugar, tudo caminha...Estão muito orgulhosos, e acabei virando o patriarca, o conselheiro de todo o mundo. É bom.
Estratos da Entrevista feita por Gabriela Lourenço: Seu Jorge músico e actor . Obrigado, Pelé, publicada no nº 769 da Revista Visão) http://clix.visao.pt/pages/default.aspx
Estratos da Entrevista feita por Gabriela Lourenço: Seu Jorge músico e actor . Obrigado, Pelé, publicada no nº 769 da Revista Visão) http://clix.visao.pt/pages/default.aspx
( Não sendo Seu Jorge um artista da Baía, o espectáculo a que assisti em Lisboa, antes da minha partida, como que a preparou, e antecipou, de uma forma vivida, a percepção da realidade social com que me confrontei. A publicação desta entrevista é a minha homenagem ao HOMEM que soube vencer sobre a violência , aquela que esmaga, diariamente, milhões de seres humanos.
Nota: não esqueça de ouvir as músicas de Seu Jorge inseridas na minha play list)
É admirável a compreensão e a revolta positiva que este homem transmite.
ResponderEliminarNão se lhe resiste!
Foi o que me aconteceu.
ResponderEliminarPorque tens posts destes... vai pegar uma "coisinha" lá no plan(o)alto! ;-)
ResponderEliminarBeijos
Nem sei o que te dizer! fico-me com um simples há pessoas que têm, dentro de si, a sabedoria.
ResponderEliminar"Até na noite mais escura
ResponderEliminarna mais negra escuridão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não."
É bom saber que existem pessoas como "Seu Jorge".
Abraço.
António
Há pessoas que têm a força para desbravar "impossíveis".Acredito que
ResponderEliminaressa força decorre de algo bom que, ainda assim, pode acontecer.
Bem a propósito a lembrança do poema
de Manuel Alegre.