quinta-feira, dezembro 27, 2007

A idade da criança é o avesso simétrico da idade do Pai Natal


A idade das crianças

A decepção das crianças quando descobrem que o Pai Natal «não existe» e que, de facto, são os pais que lhes oferecem os presentes, marca uma viragem irreversível na sua percepção da realidade. Precisamente, representa uma vitória do « princípio da realidade» sobre o« princípio do prazer», como diria Freud- Muitos pais, seguindo conselhos sábios de grandes psicólogos, acham que é bom dizer-lhes a verdade. É penoso, claro, mas a criança tem de crescer, encarar a « dureza da vida», etc. Todo um discurso bem estruturado e apoiado em teorias consistentes.
A criança é que não fica contente. E só sossegará a amargura que lhe restou quando souber, um dia, transformar a « realidade» num outro tipo de sonho. Na verdade, a velha classificação freudiana entre dois princípios pode ter as mais funestas consequências, além de os conceitos em jogo não estarem suficientemente esclarecidos. O que é o «prazer» e o que é a«realidade» para a criança? Quando uma criança brinca, é todo um devir que se põe em movimento: devir-avião, devir-boneca,devir-dragão ou dinossáurio.
Processos psíquicos complexos entram então em acção. Há ali, no jogo, mais do que Winnicott e outros psicanalistas descobriram: há uma estranha transformação da criança em avião, em espaço sideral, em força cósmica, em ventos, corpos deslizantes. Ele é e não é o avião ao mesmo tempo, ao exercitar o seu poder de metamorfose. É essa a sua « realidade», completamente confundida e inconfundível com o prazer.
ORA, NESTE CONTEXTO EM QUE O «IMAGINÁRIO» e o «real» coincidem, o Pai Natal é a força imanente que os une: para as crianças, que devêm múltiplos seres e elementos, as linhas de fuga- às máquinas de«aculturação» e« aprendizagem da cultura» ( a «cultura como domesticação», como diz Nietzsche)- são infinitas. O Pai Natal não representa apenas o dom sem exigência de reciprocidade, é a irrupção da vida no puro dom. Em qualquer jogo de criança jorra sempre o maravilhoso acaso de existir, o puro movimento de prazer de ser e desejar. Aqui, «puro» significa em parte o que os psicólogos chamam « actividade lúdica».
Mas o que é essa «actividade» senão o movimento da vida que brota, sempre nova, como se todos os dias fossem o começo do mundo? É isso ser criança, ter essa capacidade de devir. Eis porque é tão difícil saber a idade de uma criança: num aspecto afectivo pode ser mais velha que a idade biológica, noutra mais nova, tem «regressões» aqui, «fixações» acolá. Nunca se sabe realmente o que significam os sete anos que aquela criança tem. Mas se olharmos para o Pai Natal, compreendemos: a idade da criança é o avesso simétrico da idade do Pai Natal. Por isso tantos adultos se mascaram de Pai Natal- para devirem crianças, para entrarem, num curto espaço de tempo, no mundo das crianças.
O PAI NATAL SURGE DO COSMOS, como nós-crianças. Ao espalhar prendas pelo mundo, ele joga à maneira dos nossos jogos, neles fazendo nascer, de cada vez pela primeira vez, o dom de existir e de desejar o desejo de existir. É o jogo maior, o jogo do maior dom que está em todas as prendas- o jogo da idade de criança no começo do mundo de todos os devires- criança. Fora do tempo, mas para todos os tempos.
Na época natalícia, solsticio de Inverno que marca a supremacia da luz sobre as trevas, é o tempo-sempre da idade das crianças que os adultos não deveriam nunca deixar em si desaparecer.

José Gil in Radar: Ensaio (Revista Visão nº 773 de 27 de Dezembro 2007)

1 comentário:

  1. Olha que eu ainda acredito no Pai Natal! ;)
    Todos os anos escrevo mentalmente uma carta e olha que os presentes aparecem no sapatinho... é que eu tenho uns pais-natais muito generosos!

    beijinhos ainda natalícios que eu levo o espírito até aos reis

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