terça-feira, fevereiro 27, 2007

Como sabemos nós o que pensamos?


(Caravaggio)

(continuação)
No entanto, podem alguns pensar que não há coincidência consigo mesmo, nem tão pouco certeza sobre se estamos ou não a ser sinceros, pois a convicção de que sabemos algo acerca de nós é uma certeza vã, mais uma estratégia de defesa do que uma confição de pura inocência. Não é sem temor que se pode dizer:"Eu vou dizer o que penso". Todavia, como sabemos nós o que pensamos? De onde nos vem essa certeza? Da satisfação de si, critério supremo e único, embora frágil e susceptível de enganos e fingimentos. Afinal, há também crápulas que são sinceros, e não é difícil o mal se ter banalizado pela sinceridade de que faz alarde. Por outro lado, se ser sincero é acreditar na verdade do que se diz, é imprescindível averiguar a intencionalidade desse dizer. Somos sinceros em relação a quê? Ecomo podemos ser sinceros? Qual , enfim, o contexto que nos permite, ou nos exige ser sinceros?
Mas é a "loucura incurável" do narcisismo que nos impede de chegar à verdade. A confiar em Ovídio, o mito relaciona um cego que era vidente, Tirésias, com uma deusa,Eco, que foi castigada por ser tagarela e se apaixonou por Narciso.Tirésias previra que Narciso viveria longos anos se não se conhecesse a si mesmo,mas obcecado pela sua beleza o jovem deus acabou por sucumbir. É, assim perigoso conhecer-se a si mesmo - e podemos morrer por causa disso, deixando que o nosso "adeus" seja repetido por Eco, essa deusa triste, incapaz de dizer a primeira palavra. Ainda hoje, aqueles que são incapazes de dizer a primeira palavra são os que se apaixonam facilmente por Narciso.
A verdade é que o narcisismo tem um efeito indelével na forma como vivemos, pois não há vida em comum que não se degrade se não percebermos os sintomas dessa" loucura
incurável". (cont)

(José Manuel Heleno- "Abrir o coracão"- posfácio de "O Elogio da sinceridade"de Montesquieu)

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