quarta-feira, junho 29, 2011

Ao longe o mar segreda nomes de brinquedos caros...

  (Silva Porto)

Aqui de longe parece que o pai é um navio grande e preguiçoso e o Lito é um rebocador maluco que vai levar o barco gigante a encalhar nas rochas. O tio Nelo deita-se na toalha e lê o jornal a falar até dormir. A mãe monta o pára-vento, estende toalhas e tira o creme de Sol para me besuntar. A mãe põe o creme de Sol e eu adormeço com as mãos dela. Mesmo de olhos fechados vejo o sol cor-de-laranja a passar para os meus olhos. Encosto-me à mãe e durmo a pensar nas prendas. Ao longe o mar segreda nomes de brinquedos  caros e os gritos do Lito ao longe fazem lembrar com os amigos a roubar creme ao bolo. O pai não ouve ao longe porque fala pouco ao perto. o tio Nelo ressona quase tão alto como fala, mas a mãe dá-lhe um chuto para ele acordar arrelampado e voltar a dormir, desta vez sem barulho.  O mar está bonito, mas estava mais bonito se tivesse um barco com o meu pai em cima dele. A mãe está quente, o ar também. Corre um vento pequeno só para o dia dizer que ainda é de manhã e durmo melhor do que em casa, mesmo sem cobertor.
E a areia estava toda a dormir até um vento levantar um pé que me acorda a cara com salpicos de quem foi à água e em coro diz:
- Vamos à água. Está tão boa.
Eu finjo dormir com todas as forças e entreabro a luz para os ver sem eles me verem, mas acontece o contrário e vêem-me sem eu saber quem são e pegam em mim pela areia e pelo ar até estar junto de água. É tudo tão rápido que nem chego a chorar, fico num pânico seco e surdo, como um corpo tenso como o que segura a bandeira amarela lá no fundo. Agarro-me ao que posso e pelo que consigo agarrar é o io Neli que me leva. Agarro-me aos pêlos que ele leva nas costas, mas fico com eles nas mãos até que a mãe, brinca com ela e, entre dois sorrisos e três beijos, afrouxa-lhe o braço e pega em mim com um saco esguio que já só tem batatas a meio.
- Anda, filho. Anda ao mar com o pai.- Diz o pai.
E quando ele diz, fico a saber que o mar existe também para mim e dá-me medo. Começa o pai a entrar no mar e eu subo por ele como se um tesouro estivesse na vigia. Continua o mar pai adentro até não haver remédio e os meus pés e as minhas pernas estarem lá em baixo com os peixes.(...)

(João  Negreiros- O mar que a gente faz)

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