quarta-feira, junho 01, 2011

Manhã. Redemoinho de névoa lá no largo...

   (Aguarelas de Turner)
Doutro lado do Cávado é Fão, onde surpreendo de passagem uma linda alameda de árvores, e logo a seguir a estrada que se deita a caminho entre campos para a Póvoa de Varzim. Nestas terras rasteiras sente-se sempre a atmosfera marítima. O milho é anainho e as árvores agacham-se para suportar o vento. Além, pelo areal, fica a Apúlia; mais longe, através dos eternos pinheirais, a Aguçadoura, por fim Avelomar. Em todo o longo percurso da estrada só encontro poveiras que acarretam sardinha. A Póvoa fornece e alimenta todas estas povoações. Descalças, de saia arregaçada, correm num passo miudinho, ajoujadas sob o peso... Já me aproximo outra vez do mar. Sinto-o,vejo-o. Um rasgão no panorama e lá está o azul vivo, o azul esplêndido. Respiro-o. Atravessando Avelomar, estou na Póvoa de Varzim. Manhã. Redemoinho de névoa lá no largo; vão chegar as lanchas e os batéis. Uns atrás dos outros à bolina já os distingo muito ao longe. No areal todo de oiro secam redes encascadas, e entre os batéis varados formam-se grupos de mulheres que os esperam. Outras correm. Puxam pelos cabos das lanchas como homens ou carregam a caça que sai do cavername a escorrer. Dois, três barcos já na praia... Uma companha encosta os ombros ao costado de uma lancha e – oupa! – empurram-na para cima. Mais batéis: é a força da sardinha despejada no areal. Mulheres acodem, o movimento aumenta e os gritos, os gestos, as atitudes imprevistas. Com os dedos metidos nas guelras algumas arrastam os cações sarapintados, as raias espalmadas, os congros ferozes, com a cabeça aberta pelo machado para não morderem a mão que os apanha.Um monte de raias, peles escuras e viscosas misturadas com areia, outro de peixessapos de goela voraz, só boca e dentes, e ainda outro de sardas mosqueadas. – Treze vinténs! catorze vinténs! – o leilão. A berraria redobra. Neste grupo confundem-se as vozes. Cheira a mar, a peixe e a fartum, e as mulheres curvam-se sobre a pesca e regateiam-na, enquanto em baixo os barcos despejam mais peixe vivo, toninhas, gorazes e a sardinha que começa a alastrar de prata todo o vasto areal. Duas mulheres, de perna,nua e saia arregaçada até ao joelho, engancharam um croque na boca de um peixe-cão e arrastam-no a custo para cima. Mais peixe – o fundo do mar misterioso revelado, de mistura com a areia, e algas, gritos e alarido. Uma lancha mete o mastro. Dois moços carregam um cabo, enfiado num pau atravessado nos ombros. Redemoinhos negros de mulherio se deslocam. – Três tostões! seis tostões! – Reparo nos tipos: são feias e espessas, de pernas como trancas, todas vestidas de escuro; velhas com uma saia pelas costas cheirando a fartum de sardinha, e metendo dinheiro nos bolsos misturado com areia; arrostalhadas no chão, separando o peixe com as unhas gordurosas; homens de camisola e calça, secos e tão entranhados do salitre como os pranchões das lanchas de madeira por pintar. Acolá dentro dos batéis os pescadores sentaram-se nos bancos e cada um tem um pequeno ao colo: entregaram-lhos as mães enquanto vendem. Já outros barcos se preparam metendo as redes, e a grita e a agitação aumenta, o alarido aumenta.
É a sardinha que continua a despejar-se pela praia e que se vende a lotas de um a dois milheiros, cada vez mais disputada. Levam-na em canastras, carregam-na nos carros, compram-na as peixeiras já prontas a partir e a apregoá-la. Há a gorda e enorme que faísca como prata, e que é logo ali disposta, cabeça para um lado e rabo para o outro,camada de sal e camada de sardinha nos cestos canastreiros...

(Raúl Brandão)

Algumas vezes já, nestes anos do "Aguarelas" pude publicar e evocar Raúl Brandão. De novo, ele veio à baila aqui, ao lembrar-me de como  descreveu, de forma eternamente viva, as terras piscatórias, as gentes do mar e a bela zona que percorri nas férias da Páscoa. O prazer de o reler levou-me- e porque não?- à Sesimbra da minha infância, onde pude conviver, de muito perto, com alguns pescadores, muitos deles companheiros de infância do meu pai. Sonhei, nesses tempos, sair numa traineira, passar a noite a bordo assistindo a toda a faina da pesca. Apesar de ter tentado por várias vezes demover o meu pai para que convencesse os seus amigos, nunca a "minha" água chegou ao seu moinho...Ficou para sempre a presença dessa partida que nunca se deu. 

4 comentários:

  1. Que belo texto! Raul Brandão no seu melhor! Muito bonito! Fão, Ofir e todo esse envolvimento são lindíssimos!

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  2. He, he, também tentei e nunca consegui convencer o meu pai. Tive de me contentar com um passeio de traineira, de dia, com caldeirada a bordo, que os pais de uma amiga minha alugaram.
    Boa escolha de texto!

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  3. Parabéns pela evocação de Raúl Brandão, tão injustamente esquecido!

    (Que bom... Olha o meu mar!)

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