sábado, fevereiro 21, 2009

O sentido das palavras penetrava-o lenta, muito lentamente

(Chagall)
Já nos subúrbios, encontrou uma companhia de circo, um desses bandos fugitivos que vivem sobre rodas. O coração pôs-se-lhe a bater furiosamente. Num impulso irresistível, precipitou-se para uma das roulottes- haviam sido arrumadas em círculo- e tímidamente subiu os degrauzinhos que pendiam das traseiras do veículo. Preparava-se para bater á porta quando, mesmo ao seu lado, o relinchar de um cavalo o interrompeu. Pouco depois sentiu o focinho do animal roçar-lhe as costas. Foi então invadido por uma profunda alegria. Abraçando o pescoço do bicho, falou-lhe com palavras doces e cheias de ternura, como se cumprimentasse um amigo há muito tempo desaparecido. De repente, a porta abriu-se por detrás dele e uma voz de mulher abafou uma exclamação de surpresa. Sobressaltado, murmurou:
«Sou eu, apenas eu, Augusto.»
«Augusto?», repetiu a mulher. «Não conheço.»!
« Desculpe», gaguejou humildemente, « tenho de ir andando.»
Poucos passos andados, ouviu a mulher gritar: «Espere aí Augusto, venha cá! Por que vai a fugir?»
Parou subitamente, voltou-se, hesitou um pouco, e abriu-se depois num largo sorriso. A mulher voou para ele, braços abertos. Um vago pânico apoderou-se de Augusto. Por um breve momento desejou voltar costas e fugir. Mas tarde de mais. Os braços da mulher já o enlaçavam, apertando-o fortemente. « Augusto», «Augusto, Augusto!», exclamava ela. « E pens arque não te tinha conhecido!»
A essas palavras, Augusto empalideceu. Era a primeira vez, em toda a sua vagabundagem que alguém o reconhecia. Como um torno, a mulher continuava a apertá-lo. Agora beijava-o, primeiro numa das faces, depois na outra, depois na testa, depois nos lábios. Augusto estremecia.
« Podia dar-me um torrão de açúcar?», pediu, mal consegiu libertar-se.
« Açucar?»
«Sim, para o cavalo.»
Enquanto a mulher rebuscava dentro do carro, Augusto instalou-se confortavelmente nos degraus. Macio e trémulo o focinho do animal roçagava-lhe a nuca. Foi nesse preciso instante-coincidência estranha-que a lua transpôs de um salto os longínquos topos das árvores. Uma paz maravilhosa desceu sobre ele . Por breves segundos- pouco mais poderia ter sido-desfrutou uma espécie de sono crepuscular. Depois a mulher regressou, aflorando-lhe o ombro, ao pular para o chão, com a larga saia rodada.
«Pensámos que tivesses morrido», começou por dizer, sentando-se na erva aos pés de Augusto.« Toda a gente tem andado à tua procura», acrescentou rapidamente, passando-lhe um a um os torrões de açúcar.
Silencioso, Augusto ouvia o tagarelar da mulher. O sentido das palavras penetrava-o lenta, muito lentamente, como se viajando de uma grande distância até aos seus ouvidos. O que o encantava era a deliciosa sensação sempre que o focinho quente e húmido do cavalo lhe lambia a palma das mãos. Revivia intensamente aquele estado transitório que costumava sentir aos pés da escada, o período entre o esvanecer do êxtase e a furiosa explosão de aplausos que chegava sempre a ele como o ribombar de uma trovoada distante.
Já nem pensou em regressar ao hotel para reunir a magra bagagem. Estendeu um cobertor no chão, ao lado da fogueira, e, fechado no círculo mágico de rodas e carroças, deitou-se, olhos abertos seguindo a triste viagem da lua. Quando por fim cerrou as pálpebras foi já com a decisão tomada de acompanhar o grupo. Sabia poder confiar naquela gente para manter secreta a sua identidade.


(Henry Miller- O Sorriso aos pés da escada)

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