Nunca tinha conhecido uma tal paz, uma uma tal satisfação, uma alegria tão profunda e duradoura. Nos dias de pagamento ia à cidade e com seu magro salário percorria as lojas em busca de prendas para levar às crianças- e também aos animais. Para si próprio, um pouco de tabaco, eis tudo.
Certo dia porém, António, o palhaço, caiu doente. Sentado em frente de uma das roulottes , Augusto remendava um velho par de calças quando lhe deram a notícia. Murmurou algumas palavras de circunstância e continuou a remendar. É claro que imediatamente depreendeu as consequências que este acontecimento inesperado lhe traria. Pedir-lhe-iam, sem dúvida alguma, para substituir o outro. Tentou reprimir o nervosismo que rapidamente crescia dentro dele. Com toda a calma e prudência procurou pensar na resposta que daria quando chegasse a ocasião. Esperou e continuou a esperar que alguém viesse ter com ele, mas ninguém apareceu. Não havia quem pudesse substituir António, disso tinha a certeza. Assim sendo, o que o reteria os outros? Por fim, levantou-se e começou a cirandar para lhes fazer que estava ali, que lhe poderiam falar do assunto quando quizessem. Todavia, ninguém lhe diirgiu palavra.
Decidiu então ser ele mesmo a quebrar o gelo. Ao fim e ao cabo, por que não? Por que não? Por que não oferecer os seus préstimos? Sentia-se tão fortalecido, tão cheio de boa-vontade para toda a gente!
O facto de voltar a ser palhaço não contava coisíssima nenhuma. Em caso de necessidade, tanto podia fazer de mesa como de cadeira ou mesmo de escada. Não queria para si quaisquer privilégios especiais; era uma das pessoas do grupo, pronto a compartilhar das suas tristezas e desgraças.
«Ouça», disse ao patrão quando finalmente o conseguiu apanhar,« estou preparado para esta noite substituir o António. Isto é», e hesitou, «caso não tenha em vista outra pessoa.»
«Não, Augusto, não tenho mais ninguém, como sabe. É simpático da sua parte oferecer-se...»
(...)« Sabe temos andado a falar do caso. Sabemos o o que se passa consigo.(...)nós não queremos abrir feridas antigas. Compreende?»
Augusto sentiu lágrimas subirem-lhe aos olhos. Agarrou nas enormes mãos do outro, segurou-as delicadamente nas suas e, sem abrir a boca ,deixou fluir o agradecimento.
«Permita-me fazer a substituição, esta noite», pediu. (...)
Algumas horas mais tarde estava sentado diante do espelho, estudando o rosto. Tinha por hábito, antes de aplicar a tinta, contemplar-se durante um longo espaço de tempo. Era a maneira de se preparar para a representação. Sentava-se a olhar para o seu rosto amargurado e de repente punha-se a apagar a imagem e a impor uma nova, aquela que todos conheciam e que em toda a parte era tomada como sendo propriamente a de Augusto. Mas o verdadeiro Augusto ninguém conhecia, nem mesmo os amigos, pois a celebridade fizera dele um homem só.
Assim, ali sentado, invadido pelas recordações de milhares de outras noites diante do espelho, começou a compreender que esta vida separada de tudo, esta vida que ciumentamente defendera como sua propriedade exclusiva, esta secreta existência que supostamente preservava a sua identidade, de forma alguma era vida, nada era de facto, nem mesmo a sombra de uma vida. Tinha começado a viver somente a partir do dia em que se juntara ao grupo, desde o exacto momento em que decidira servir como o mais humilde dos humildes. Aquela vida secreta evapora-se quase sem ele dar por isso; voltara a ser um homem como os outros, fazendo as mesmas coisas absurdas, insignificantes, necessárias que os outros faziam- e assim conhecera a felicidade, a plenitude dos dias. (Cont.)
(Henry Miller- O sorriso aos pés da escada)
Certo dia porém, António, o palhaço, caiu doente. Sentado em frente de uma das roulottes , Augusto remendava um velho par de calças quando lhe deram a notícia. Murmurou algumas palavras de circunstância e continuou a remendar. É claro que imediatamente depreendeu as consequências que este acontecimento inesperado lhe traria. Pedir-lhe-iam, sem dúvida alguma, para substituir o outro. Tentou reprimir o nervosismo que rapidamente crescia dentro dele. Com toda a calma e prudência procurou pensar na resposta que daria quando chegasse a ocasião. Esperou e continuou a esperar que alguém viesse ter com ele, mas ninguém apareceu. Não havia quem pudesse substituir António, disso tinha a certeza. Assim sendo, o que o reteria os outros? Por fim, levantou-se e começou a cirandar para lhes fazer que estava ali, que lhe poderiam falar do assunto quando quizessem. Todavia, ninguém lhe diirgiu palavra.
Decidiu então ser ele mesmo a quebrar o gelo. Ao fim e ao cabo, por que não? Por que não? Por que não oferecer os seus préstimos? Sentia-se tão fortalecido, tão cheio de boa-vontade para toda a gente!
O facto de voltar a ser palhaço não contava coisíssima nenhuma. Em caso de necessidade, tanto podia fazer de mesa como de cadeira ou mesmo de escada. Não queria para si quaisquer privilégios especiais; era uma das pessoas do grupo, pronto a compartilhar das suas tristezas e desgraças.
«Ouça», disse ao patrão quando finalmente o conseguiu apanhar,« estou preparado para esta noite substituir o António. Isto é», e hesitou, «caso não tenha em vista outra pessoa.»
«Não, Augusto, não tenho mais ninguém, como sabe. É simpático da sua parte oferecer-se...»
(...)« Sabe temos andado a falar do caso. Sabemos o o que se passa consigo.(...)nós não queremos abrir feridas antigas. Compreende?»
Augusto sentiu lágrimas subirem-lhe aos olhos. Agarrou nas enormes mãos do outro, segurou-as delicadamente nas suas e, sem abrir a boca ,deixou fluir o agradecimento.
«Permita-me fazer a substituição, esta noite», pediu. (...)
Algumas horas mais tarde estava sentado diante do espelho, estudando o rosto. Tinha por hábito, antes de aplicar a tinta, contemplar-se durante um longo espaço de tempo. Era a maneira de se preparar para a representação. Sentava-se a olhar para o seu rosto amargurado e de repente punha-se a apagar a imagem e a impor uma nova, aquela que todos conheciam e que em toda a parte era tomada como sendo propriamente a de Augusto. Mas o verdadeiro Augusto ninguém conhecia, nem mesmo os amigos, pois a celebridade fizera dele um homem só.
Assim, ali sentado, invadido pelas recordações de milhares de outras noites diante do espelho, começou a compreender que esta vida separada de tudo, esta vida que ciumentamente defendera como sua propriedade exclusiva, esta secreta existência que supostamente preservava a sua identidade, de forma alguma era vida, nada era de facto, nem mesmo a sombra de uma vida. Tinha começado a viver somente a partir do dia em que se juntara ao grupo, desde o exacto momento em que decidira servir como o mais humilde dos humildes. Aquela vida secreta evapora-se quase sem ele dar por isso; voltara a ser um homem como os outros, fazendo as mesmas coisas absurdas, insignificantes, necessárias que os outros faziam- e assim conhecera a felicidade, a plenitude dos dias. (Cont.)
(Henry Miller- O sorriso aos pés da escada)
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