domingo, fevereiro 08, 2009

«...essa parte do meu coração.....foi-me maltratada da pior maneira possível»

(Holderlin)

Terra ditosa! Em ti não há colina que se levante sem vinhedo,
Sobre a erva tumefacta, no Outono, chove o fruto.
As montanhas, incandescentes, banham alegremente o pé na corrente,
Coroas de ramos de musgo refrescam~lhe a fronte solarenga.
E, como as crianças que sobem aos ombros do magnífico patriarca,
Pela serrania escura amarinham rochedos e choupanas.



Durante toda uma vida suspira pelo regresso a esta pátria como se fora o céu do seu coração: a infância é para Holderlin o tempo mais verdadeiro, mais desperto, mais feliz.
É uma natureza meiga que o protege, são meigas mulheres que o educam. Coisa fatal, não há presença de um pai que lhe ensine a severidade, a contenção. Não há como teve Goethe, um sentimento pedante de disciplina que inculque na criança o sentimento de responsabilidade. A avó e a mãe, mais indulgente ainda, ensinam-lhe somente a devoção, e bem cedo o seu espírito sonhador refugia-se naquela que é a primeira experiência de infinito que é dada a um jovem, a música. Mas o idílio encontra um fim prematuro. Aos catorze anos o sentimental adolescente entra na escola conventual de Denkendorf, depois no convento de Maulbronn, aos dezoito anos está no seminário de Tubeingen de onde sairá em finais de 1792- Esta natureza livre vive uma década inteira atrás de muros, em celas monásticas, debaixo de pressões da vida comunitária. O contraste é demasiado veemente para não ter consequências dolorosas, ou mesmo destrutivas. Da total ausência de constrangimento, da liberdade das suas brincadeiras pelas margens do rio ou pelos campos, da brandura da protecção feminina, maternal, passa para o constragimento das negras vestes monásticas, amarrado às solitárias horas de uma actividade mecanicamente ditada pela disciplina do convento. Para Holderlin os anos de escola conventual são o que para Kleist foram os anos de cadete: recalcamento do sentimento num excesso de sensibilidade, excitação progressivamente maior de uma tensão interior que acaba por levada ao extremo, resistência ao mundo real. No seu íntimo há algo que daqui em diante fica definitivamente ferido, destroçado. «Quero dizer-te», escreve ele uma década mais tarde, que« conservo dos meus anos de rapaz, do coração que nesse tempo era o meu, uma disposição que continua a ser o que tenho de mais querido: era uma ductilidade, uma capacidade de receber impressões comparável à da cera(...), mas precisamente essa parte do meu coração, durante o tempo que estive no convento, foi-me maltratada da pior maneira possível.» Quando a pesada porta do seminário se fecha atrás de si, o impulso mais nobre, mais íntimo, da sua fé na vida já foi prematuramente contaminado, começou já a murchar, antes de ele dar os primeiros passos em liberdade, à luz do dia. Em torno da sua fronte juvenil, ainda luminosa, esvoaça já- embora poe enquanto apenas como uma névoa quase sem espessura- essa silenciosa melancolia de quem está perdido no mundo, mas que depois, com o passar dos anos, se torna progressivamente mais espessa, mais escura, envolvendo a alma em pesada nuvem, até lhe encobrir tudo o que pudesse despertar-lhe alguma alegria.

(Stefan Zweig- O combate com o demónio- Holderlin, Kleist, Nietzsche-trad.José Miranda Justo.Antígona)

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