quinta-feira, fevereiro 19, 2009

foi compreendendo que lhe doía a perda de algo...unicamente seu

(Chagall)

Quanto maior era o sucesso dessa pequena paródia aos pés da escada, tanto mais sorumbático Augusto se tornava. De noite para noite o riso lhe surgia mais irritante aos ouvidos. Até que ficou insuportável.
Certa noite transformou-se subitamente em mofas e assobios, seguidos de chapéus, detritos e outros projécteis de maior solidez. Augusto esquecera-se de «regressar». A audiência esperou durante trinta minutos; depois tornou-se impaciente, depois desconfiada, os nervos rebentando finalmente numa irada explosão de escárnio. Quando no camarim, Augusto recuperou a consciência ficou surpreendido por encontrar um médico debruçado sobre ele. O rosto e a cabeça eram-lhe um amassado de golpes e contusões. O sangue coagulara por cima do maquillage, tornando-lhe a máscara irreconhecível. Parecia algo abandonado num cepo de carniceiro. Rompido abruptamente o contrato, resolveu fugir daquele seu mundo conhecido. Não desejando recomeçar a vida de palhaço, entregou-se à vagabundagem. Desconhecido, ninguém o reconhecendo, flutuava entre os milhões a quem tinha ensinado a rir. No seu coração não havia ressentimento, apenas uma tristeza profunda. Era uma luta permanente para conseguir suster as lágrimas.
Ao princípio aceitou esta nova condição do seu estado de alma. Nada mais era, dizia para consigo, do que um malaise criado pela súbita interrupção da rotina de uma vida inteira. Mas no decorrer dos meses foi compreendendo gradualmente que lhe doía a perda de algo que lhe fora tirado- não o poder de fazer rir as pessoas, ah! não!, coisa que já nem se importava-mas algo de diferente, algo de mais profundo, algo que era unicamente seu.(cont.)

(Henry Miller-O Sorriso aos pés da Escada)

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