Tem o cheiro do Verão quando amanhece e dos seus olhos, onde é sempre dia, desprende-se uma luz que me deslumbra. Ao caminhar, em seu redor parece que o ar se faz de sol e maresia sem a mais leve réstia de penumbra. E eis que em desafio serpenteia onde o mar vem deitar-se com a areia.
(Torquato da Luz- Por Amor e Outros Poemas - Papiro editora)
Como um doido inspirado, Augusto entregou-se à tarefa. Nada havia a perder. Pelo contrário, havia tudo a ganhar. Cada nova pirueta, cada nova fantasia,significava para António um recomeço de vida. Continuando a aperfeiçoar o número, anotava mentalmente os pormenores, a fim de explicar ao camarada, com toda a exactidão, como reproduzir os efeitos ali mesmo conseguidos. Saltaricava de um lado para outro como três pessoas distintas numa só: Augusto, o mestre, Augusto na qualidade de António e António na qualidade de Augusto. E acima e para além destas pairava uma quarta entidade que cristalizaria e com o tempo acabaria por se impor: António na qualidade de António. Um António renascido, ou, para ser mais exacto, um Antónioin excelsis. Quanto mais pensava neste António (era espantoso o número de especulações que ele se permitia em plena actuação) tanto mais atento estava aos limites e susceptibilidades do personagem que ia recriando. E era em António que pensava sempre, não em Augusto. Augusto estava morto. Não tinha o menor desejo de o ver reincarnado num António de renome mundial. Toda a sua preocupação consistia em tornar António tão famoso que nunca mais pudesse haver qualquer alusão ao Augusto. Nos jornais da manhã seguinte multiplicavam -se os elogios ao palhaço António. É claro que na véspera, antes de se retirar, Augusto explicara ao patrão o seu projecto. Ficou assente que seriam tomadas todas as precauções para manter o plano no segredo absoluto. Como ninguém, afora os elementos da companhia, sabia da doença de António continuava na ignorância do futuro glorioso que lhe fora preparado, as perspectivas afiguravam-se animadoras.(cont.)
Para todos os meus amigos da Net que me fazem pensar.....deixo aqui esta pequena" pérola", que me parece dialogarcom muitas das preocupaçõese questõesque atravessam os textos e as escolhas que tanto me estimulam. Um grande obrigada a todos. http://barcosflores.blogspot.com/ http://artmus.blogspot.com/ http://bonstemposhein-jrd.blogspot.com/ http://www.peciscas.blogspot.com/ http://oficiodiario.blogspot.com/ http://ponteirosparados.blogspot.com/ http://www.pedemeias.blogspot.com/ http://linhacabotagem.blogspot.com/ http://aluaflutua.blogspot.com/ http://www.ojardimcasa.blogspot.com/
e outros, que aqui não estando mencionados, não deixam de ser importantes...
Durante longos minutos o outro ergueu para ele o olhar fixo e vazio, com a expressão de alguém que se contempla num espelho. Augusto acabou por compreender o que lhe ia no espírito.« Sou eu, Augusto», exclamou docemente. « Eu sei. És tu...mas também podias ser eu. Ninguém notará a diferença. E contudo tu és grande e eu nunca fui ninguém.» « Estava a pensar nisso mesmo», disse Augusto, sorriso pensativo nos lábios.« É esquisito, não é? Um pouco de tinta gordurosa, uma bexiga, uns trapos carnavalescos- e não é preciso mais para uma pessoa se transformar em ninguém !É o que nós somos- ninguém. E ao mesmo tempo toda a gente. Não é a nós que eles aplaudem, mas a eles próprios. Meu velho, tenho de me ir embora, mas antes deixa-me dizer-te uma pequena coisa que aprendi há pouco...Sermos nós próprios, unicamente nós próprios, é algo extraordinário. Mas como chegar a isso, como alcançá-lo? Ah!, eis o truque mais difícil de todos. Difícil, exactamente porque não envolve esforço. Tentas não ser isto nem aquilo, nem grande nem pequeno, nem hábil, nem desajeitado...estás a perceber? Fazes o que te vem à mão. De boa vontade, bien entendu. Porque não nada há que não tenha a sua importância. Nada. Em vez de risos e aplausos recebes sorrisos. Pequenos sorrisos de satisfação- e é tudo. Mas é justamente o próprio tudo...mais do que alguém pode pedir.(cont.)
O Leitor, um dos filmes que vi na tarde de ontem, trouxe-me o que os filmes de mão cheia nos costumam trazer: a possibilidade de nos emocionarmos, através da interpretação intensa de uma história que nos é contada, e a capacidade de gerar uma infinidade de pensamentos a partir das diferentes questões postas ao longo de toda a obra.Se ainda não viram não deixem de o fazer.
Nunca tinha conhecido uma tal paz, uma uma tal satisfação, uma alegria tão profunda e duradoura. Nos dias de pagamento ia à cidade e com seu magro salário percorria as lojas em busca de prendas para levar às crianças- e também aos animais. Para si próprio, um pouco de tabaco, eis tudo. Certo dia porém, António, o palhaço, caiu doente. Sentado em frente de uma das roulottes , Augusto remendava um velho par de calças quando lhe deram a notícia. Murmurou algumas palavras de circunstância e continuou a remendar. É claro que imediatamente depreendeu as consequências que este acontecimento inesperado lhe traria. Pedir-lhe-iam, sem dúvida alguma, para substituir o outro. Tentou reprimir o nervosismo que rapidamente crescia dentro dele. Com toda a calma e prudência procurou pensar na resposta que daria quando chegasse a ocasião. Esperou e continuou a esperar que alguém viesse ter com ele, mas ninguém apareceu. Não havia quem pudesse substituir António, disso tinha a certeza. Assim sendo, o que o reteria os outros? Por fim, levantou-se e começou a cirandar para lhes fazer que estava ali, que lhe poderiam falar do assunto quando quizessem. Todavia, ninguém lhe diirgiu palavra. Decidiu então ser ele mesmo a quebrar o gelo. Ao fim e ao cabo, por que não? Por que não? Por que não oferecer os seus préstimos? Sentia-se tão fortalecido, tão cheio de boa-vontade para toda a gente! O facto de voltar a ser palhaço não contava coisíssima nenhuma. Em caso de necessidade, tanto podia fazer de mesa como de cadeira ou mesmo de escada. Não queria para si quaisquer privilégios especiais; era uma das pessoas do grupo, pronto a compartilhar das suas tristezas e desgraças. «Ouça», disse ao patrão quando finalmente o conseguiu apanhar,« estou preparado para esta noite substituir o António. Isto é», e hesitou, «caso não tenha em vista outra pessoa.» «Não, Augusto, não tenho mais ninguém, como sabe. É simpático da sua parte oferecer-se...» (...)« Sabe temos andado a falar do caso. Sabemos o o que se passa consigo.(...)nós não queremos abrir feridas antigas. Compreende?» Augusto sentiu lágrimas subirem-lhe aos olhos. Agarrou nas enormes mãos do outro, segurou-as delicadamente nas suas e, sem abrir a boca ,deixou fluir o agradecimento. «Permita-me fazer a substituição, esta noite», pediu. (...) Algumas horas mais tarde estava sentado diante do espelho, estudando o rosto. Tinha por hábito, antes de aplicar a tinta, contemplar-se durante um longo espaço de tempo. Era a maneira de se preparar para a representação. Sentava-se a olhar para o seu rosto amargurado e de repente punha-se a apagar a imagem e a impor uma nova, aquela que todos conheciam e que em toda a parte era tomada como sendo propriamente a de Augusto. Mas o verdadeiro Augusto ninguém conhecia, nem mesmo os amigos, pois a celebridade fizera dele um homem só. Assim, ali sentado, invadido pelas recordações de milhares de outras noites diante do espelho, começou a compreender que esta vida separada de tudo, esta vida que ciumentamente defendera como sua propriedade exclusiva, esta secreta existência que supostamente preservava a sua identidade, de forma alguma era vida, nada era de facto, nem mesmo a sombra de uma vida. Tinha começado a viver somente a partir do dia em que se juntara ao grupo, desde o exacto momento em que decidira servir como o mais humilde dos humildes. Aquela vida secreta evapora-se quase sem ele dar por isso; voltara a ser um homem como os outros, fazendo as mesmas coisas absurdas, insignificantes, necessárias que os outros faziam- e assim conhecera a felicidade, a plenitude dos dias. (Cont.)
Ajudar a erguer a lona, desenrolar os grandes tapetes, instalar os acessórios, almofaçar os cavalos e dar-lhes de beber, cuidar das mil e uma tarefas que lhe eram pedidas- tudo representava para Augusto uma pura alegria. Entregava-se por completo, abandonava-se na execução das humildes tarefas que lhe preenchiam os dias. Uma vez por outra permitia-se o luxo de assistir, como simples espectador, às actuações dos artistas, observando com novos olhos a perícia e a coragem dos companheiros. A mímica dos palhaços intrigava-o particularmente-mudo espectáculo cuja linguagem lhe surgia agora mais eloquente do que quando ele era do ofício. Experimentava uma sensação de liberdade a que perdera o direito como executante. Oh! mas era bom desembaraçar-se do papel, mergulhar inteiramente na monotonia da vida, transformar-se em pó, e apesar disso...bem, saber que ainda fazia parte daquilo tudo, útil ainda, talvez assim ainda mais útil. Que egotismo ter pensado que só porqu fizera rir e chorar as pessoas lhes havia concedido um grande benefício! Já não recebia aplausos, tempestades de riso, adulações. recebia algo mil vezes melhor, um alimento bem substancial- sorrisos. De agredecimento? Nada disso; sorrisos de consideração. De novo o aceitavam como um ser humano, e por si próprio, por fosse o que fosse que o destinguia dos seus semelhantes e ao mesmo tempo o ligava a eles. O mesmo era que receber dinheiro miúdo- para o coração maior conforto, quando se tem necessidade, do que as notas de banco. Com tais sorrisos de afecto, que ele arrecadava como grão maduro no celeiro, Augusto não parava de se expandir, de florescer de novo. Dotado de uma inesgotável generosidade, ansiava por fazer sempre mais do que lhe era pedido. Nunca seria demasiado-assim pensava. (cont.)
Já nos subúrbios, encontrou uma companhia de circo, um desses bandos fugitivos que vivem sobre rodas. O coração pôs-se-lhe a bater furiosamente. Num impulso irresistível, precipitou-se para uma das roulottes- haviam sido arrumadas em círculo- e tímidamente subiu os degrauzinhos que pendiam das traseiras do veículo. Preparava-se para bater á porta quando, mesmo ao seu lado, o relinchar de um cavalo o interrompeu. Pouco depois sentiu o focinho do animal roçar-lhe as costas. Foi então invadido por uma profunda alegria. Abraçando o pescoço do bicho, falou-lhe com palavras doces e cheias de ternura, como se cumprimentasse um amigo há muito tempo desaparecido. De repente, a porta abriu-se por detrás dele e uma voz de mulher abafou uma exclamação de surpresa. Sobressaltado, murmurou:
«Sou eu, apenas eu, Augusto.» «Augusto?», repetiu a mulher. «Não conheço.»! « Desculpe», gaguejou humildemente, « tenho de ir andando.» Poucos passos andados, ouviu a mulher gritar: «Espere aí Augusto, venha cá! Por que vai a fugir?» Parou subitamente, voltou-se, hesitou um pouco, e abriu-se depois num largo sorriso. A mulher voou para ele, braços abertos. Um vago pânico apoderou-se de Augusto. Por um breve momento desejou voltar costas e fugir. Mas tarde de mais. Os braços da mulher já o enlaçavam, apertando-o fortemente. « Augusto», «Augusto, Augusto!», exclamava ela. « E pens arque não te tinha conhecido!» A essas palavras, Augusto empalideceu. Era a primeira vez, em toda a sua vagabundagem que alguém o reconhecia. Como um torno, a mulher continuava a apertá-lo. Agora beijava-o, primeiro numa das faces, depois na outra, depois na testa, depois nos lábios. Augusto estremecia. « Podia dar-me um torrão de açúcar?», pediu, mal consegiu libertar-se. « Açucar?» «Sim, para o cavalo.» Enquanto a mulher rebuscava dentro do carro, Augusto instalou-se confortavelmente nos degraus. Macio e trémulo o focinho do animal roçagava-lhe a nuca. Foi nesse preciso instante-coincidência estranha-que a lua transpôs de um salto os longínquos topos das árvores. Uma paz maravilhosa desceu sobre ele . Por breves segundos- pouco mais poderia ter sido-desfrutou uma espécie de sono crepuscular. Depois a mulher regressou, aflorando-lhe o ombro, ao pular para o chão, com a larga saia rodada. «Pensámos que tivesses morrido», começou por dizer, sentando-se na erva aos pés de Augusto.« Toda a gente tem andado à tua procura», acrescentou rapidamente, passando-lhe um a um os torrões de açúcar. Silencioso, Augusto ouvia o tagarelar da mulher. O sentido das palavras penetrava-o lenta, muito lentamente, como se viajando de uma grande distância até aos seus ouvidos. O que o encantava era a deliciosa sensação sempre que o focinho quente e húmido do cavalo lhe lambia a palma das mãos. Revivia intensamente aquele estado transitório que costumava sentir aos pés da escada, o período entre o esvanecer do êxtase e a furiosa explosão de aplausos que chegava sempre a ele como o ribombar de uma trovoada distante. Já nem pensou em regressar ao hotel para reunir a magra bagagem. Estendeu um cobertor no chão, ao lado da fogueira, e, fechado no círculo mágico de rodas e carroças, deitou-se, olhos abertos seguindo a triste viagem da lua. Quando por fim cerrou as pálpebras foi já com a decisão tomada de acompanhar o grupo. Sabia poder confiar naquela gente para manter secreta a sua identidade.
Quanto maior era o sucesso dessa pequena paródia aos pés da escada, tanto mais sorumbático Augusto se tornava. De noite para noite o riso lhe surgia mais irritante aos ouvidos. Até que ficou insuportável. Certa noite transformou-se subitamente em mofas e assobios, seguidos de chapéus, detritos e outros projécteis de maior solidez. Augusto esquecera-se de «regressar». A audiência esperou durante trinta minutos; depois tornou-se impaciente, depois desconfiada, os nervos rebentando finalmente numa irada explosão de escárnio. Quando no camarim, Augusto recuperou a consciência ficou surpreendido por encontrar um médico debruçado sobre ele. O rosto e a cabeça eram-lhe um amassado de golpes e contusões. O sangue coagulara por cima do maquillage, tornando-lhe a máscara irreconhecível. Parecia algo abandonado num cepo de carniceiro. Rompido abruptamente o contrato, resolveu fugir daquele seu mundo conhecido. Não desejando recomeçar a vida de palhaço, entregou-se à vagabundagem. Desconhecido, ninguém o reconhecendo, flutuava entre os milhões a quem tinha ensinado a rir. No seu coração não havia ressentimento, apenas uma tristeza profunda. Era uma luta permanente para conseguir suster as lágrimas. Ao princípio aceitou esta nova condição do seu estado de alma. Nada mais era, dizia para consigo, do que um malaise criado pela súbita interrupção da rotina de uma vida inteira. Mas no decorrer dos meses foi compreendendo gradualmente que lhe doía a perda de algo que lhe fora tirado- não o poder de fazer rir as pessoas, ah! não!, coisa que já nem se importava-mas algo de diferente, algo de mais profundo, algo que era unicamente seu.(cont.)
Sempre ao rufar surdo do tambor o contorcionista se enrolava, sempre o volteador se fazia anunciar por uma fanfarra de trombetas. Augusto, porém, umas vezes era o silvo agudo de um violino, outras as notas trocistas de um clarinete que o acompanhavam durante o cabriolar de suas palhaçadas. Mas chegado o momento de cair em transe, os músicos, subitamente inspirados, perseguiam-no entre suas espirais de êxtase como corcéis grudados à plataforma de um carrocel tomado de loucura. Todas as noites ao aplicar o maquillage, Augusto discutia com seus botões. As focas, não importa o que fossem obrigadas a fazer, permaneciam sempre focas. O cavalo, um cavalo; a mesa, uma mesa. Augusto, embora permanecendo um homem, era obrigado a tornar-se em algo mais: tinha de assumir os poderes de um ser excepcional dotado de um excepcional talento. Tinha de fazer rir as pessoas. Não era difícil fazê-las chorar, tão-pouco fazê-las rir; descobrira isso há muito tempo, antes mesmo de ter sonhado entrar para o circo. Mais altas, porém eram as suas ambições-queria dotar os espectadores de uma alegria que se revelasse imperecível. Foi essa obsessão que primeiramente o levou a sentar-se aos pés da escada e simular o êxtase. Caindo, por mero acaso, na imitação de um transe- esquecera-se do que iria fazer a seguir. Quando voltou a si, um tanto confuso e em extremo apreensivo, encontrou-se a ser aplaudido freneticamente. No dia seguinte repetiu a experiência, desta vez com propósito deliberado, pedindo que o riso louco e absurdo que ele tão facilmente suscitava desse lugar àquela suprema alegria que tanto desejava transmitir. Contudo, apesar do quase fervor dos seus esforços, todas as noites o esperavam os mesmos aplausos delirantes. (cont.)
Antes que o sonho( ou o terror) tecera mitologias e cosmogonias, antes que o tempo se cunhasse em dias, o mar, sempre o mar, já estava e era. Quem é o mar? Quem é o violento e antigo ser que destrói os pilares da terra, e só um e muitos mares, e abismo e resplendor e azar e vento? Quem olha vê-o pela vez primeira, sempre. Com o assombro tal que as coisas elementares deixam, as formosas tardes, a lua, o fogo da fogueira. Qume é o mar, quem sou? Sei-o no dia que virá logo após minha agonia.
Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.
(Clarice Lispector -in "A Descoberta do Mundo" Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1999)
Aqui e além em Lisboa-quando vamos Com pressa ou distraídos pelas ruas Ao virar da esquina de súbito avistamos Irisado o Tejo: Então se tornam Leve o nosso corpo e a alma alada
Às vezes estou à mesa: e cômo ou sonho ou estou somente imóvel entre a aérea felicidade da noite. O sangue do mundo corre e brilha. Porque a minha carne se distrai entre as coisas altas da primavera nocturna. Ocupo-me nos símbolos e gostaria que meu coração entontecesse lentamente, que o meu coração caísse numa espécie de extática e sagrada loucura. (...)
Por outras palavras, o tempo é um problema essencial. Quero com isto dizer que não podemos prescindir do tempo. A nossa consciência passa continuadamente de um estado para outro, e o tempo consiste nessa sucessão. Creio que Henri Bergson afirmou que o tempo era o problema capital da metafísica. Resolvido esse problema, estaria tudo resolvido. Felizmente, estou convencido de que não existe perigo algum de que venha a ser resolvido; ou seja, continuaremos sempre ansiosos. Poderemos sempre dizer, como Stº Agostinho: O que é o tempo? Se mo não perguntam, sei o que é. Se mo perguntam, ignoro-o. Não sei se ao cabo de vinte ou trinta séculos de meditação teremos avançado muito no problema do tempo. Eu diria que continuamos a sentir a antiga perplexidade, a mesma que sentiu mortalmente Heraclito naquele exemplo a que sempre volto: ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas dum rio. Qual a razão para isso? Em primeiro lugar, porque as águas do rio fluem. Em segundo lugar-e isto é uma coisa que nos toca metafísicamente, que provoca em nós como que um princípio de terror sagrado-, porque nós mesmos somos também um rio, somos também flutuantes.
Em cada esquina te vais Em cada esquina te vejo Esta é a cidade que tem Teu nome escrito no cais A cidade onde desenho Teu rosto com sol e Tejo
Caravelas te levaram Caravelas te perderam Esta é a cidade onde chegas Nas manhãs de tua ausência Tão perto de mim tão longe Tão fora de seres presente
Esta é a cidade onde estás Como quem não volta mais Tão dentro de mim tão que Nunca ninguém por ninguém Em cada dia regressas Em cada dia te vais
Em cada rua me foges Em cada rua te vejo Tão doente de viagem Teu rosto de sol e Tejo Esta é a cidade onde moras Como quem está de passagem
Às vezes pergunto se Às vezes pergunto quem Esta é a cidade onde estás Como quem nunca mais vem Tão longe de mim tão perto Ninguém assim por ninguém
Terra ditosa! Em ti não há colina que se levante sem vinhedo, Sobre a erva tumefacta, no Outono, chove o fruto. As montanhas, incandescentes, banham alegremente o pé na corrente, Coroas de ramos de musgo refrescam~lhe a fronte solarenga. E, como as crianças que sobem aos ombros do magnífico patriarca, Pela serrania escura amarinham rochedos e choupanas.
Durante toda uma vida suspira pelo regresso a esta pátria como se fora o céu do seu coração: a infância é para Holderlin o tempo mais verdadeiro, mais desperto, mais feliz. É uma natureza meiga que o protege, são meigas mulheres que o educam. Coisa fatal, não há presença de um pai que lhe ensine a severidade, a contenção. Não há como teve Goethe, um sentimento pedante de disciplina que inculque na criança o sentimento de responsabilidade. A avó e a mãe, mais indulgente ainda, ensinam-lhe somente a devoção, e bem cedo o seu espírito sonhador refugia-se naquela que é a primeira experiência de infinito que é dada a um jovem, a música. Mas o idílio encontra um fim prematuro. Aos catorze anos o sentimental adolescente entra na escola conventual de Denkendorf, depois no convento de Maulbronn, aos dezoito anos está no seminário de Tubeingen de onde sairá em finais de 1792- Esta natureza livre vive uma década inteira atrás de muros, em celas monásticas, debaixo de pressões da vida comunitária. O contraste é demasiado veemente para não ter consequências dolorosas, ou mesmo destrutivas. Da total ausência de constrangimento, da liberdade das suas brincadeiras pelas margens do rio ou pelos campos, da brandura da protecção feminina, maternal, passa para o constragimento das negras vestes monásticas, amarrado às solitárias horas de uma actividade mecanicamente ditada pela disciplina do convento. Para Holderlin os anos de escola conventual são o que para Kleist foram os anos de cadete: recalcamento do sentimento num excesso de sensibilidade, excitação progressivamente maior de uma tensão interior que acaba por levada ao extremo, resistência ao mundo real. No seu íntimo há algo que daqui em diante fica definitivamente ferido, destroçado. «Quero dizer-te», escreve ele uma década mais tarde, que« conservo dos meus anos de rapaz, do coração que nesse tempo era o meu, uma disposição que continua a ser o que tenho de mais querido: era uma ductilidade, uma capacidade de receber impressões comparável à da cera(...), mas precisamente essa parte do meu coração, durante o tempo que estive no convento, foi-me maltratada da pior maneira possível.» Quando a pesada porta do seminário se fecha atrás de si, o impulso mais nobre, mais íntimo, da sua fé na vida já foi prematuramente contaminado, começou já a murchar, antes de ele dar os primeiros passos em liberdade, à luz do dia. Em torno da sua fronte juvenil, ainda luminosa, esvoaça já- embora poe enquanto apenas como uma névoa quase sem espessura- essa silenciosa melancolia de quem está perdido no mundo, mas que depois, com o passar dos anos, se torna progressivamente mais espessa, mais escura, envolvendo a alma em pesada nuvem, até lhe encobrir tudo o que pudesse despertar-lhe alguma alegria.
(Stefan Zweig- O combate com o demónio- Holderlin, Kleist, Nietzsche-trad.José Miranda Justo.Antígona)
"Assim, estamos perfeitamente dispostos a reconhecer que o sentimento "oceânico" existe em muitas pessoas e nos inclinamos a fazer a sua origem remontar a uma fase primitiva do sentimento do ego. Surge então uma nova questão: que direito tem esse sentimento de ser considerado como a fonte de necessidades religiosas?~Esse direito não me parece obrigatório. Afinal de contas, um sentimento só poderá ser considerado como a fonte de energia se ele próprio for expressão de uma necessidade intensa. A derivação das necessidades religiosas, a partir do desamparo do bebé, e do anseio pelo pai que aquela necessidade desperta, parece-me incontrovertível, desde que, em particular, o sentimento não seja simplesmente prolongado a partir dos dias da infância, mas permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino. Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a protecção de um pai. Dessa maneira, o papel desempenhado pelo sentimento oceânico, que poderia buscar algo como a restauração do narcisismo ilimitado, é deslocada de um lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas muito claras, ao sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo mais por detrás disso, mas presentemente, ainda está envolto em obscuridade. Posso imaginar que o sentimento oceânico se tenha vinculado à religião posteriormente. A "unidade com o universo" que constitui o seu conteúdo ideacional, soa como uma primeira tentativa de consolação religiosa, como se configurasse uma outra maneira de rejeitar o perigo que o ego reconhece a ameaçá-lo a partir do mundo externo. (....)
Hoje passei uma tarde diferente. Eu e o meu filho estivemos a ver, e a discutir, passo por passo, Time to Kill, filme na base do qual terá de realizar um trabalho de reflexão para a disciplina de Filosofia sobre o mau uso da Retórica por via do recurso à manipulação. Vi-me inevitavelmente a regressar aos meus tempos de aluna de liceu . Digo-vos francamente como preferia bem mais ter podido estudar Filosofia desta maneira, numa viva interacção com os problemas do mundo actual. Não deixo, contudo, de evocar a minha professora de Filosofia, uma grande pedagoga e uma mulher de um extraordinário dinamismo que muito contribuiu para que tivesse pensado poder ser esse o meu caminho...http://www.agencia.ecclesia.pt/ecclesiaout/snpcultura/vol_destruicao_filosofia.htmlAinda hoje defende de pé a Filosofia.Um grande abraço, Maria Luísa Guerra.
Se puderem vejam ou revejam este interessantíssimo filme que tanto nos faz pensar.