sexta-feira, novembro 09, 2007

Nada de especial...

(Aguarelas de Turner)

Que silêncio tão grande. No interior do silêncio mais silêncio e no interior do mais silêncio um relógio minúsculo a anunciar
- Já é tarde, já é tarde
de forma que nem reparamos nos ponteiros. Para quê se o relógio insiste
-Já é tarde, já é tarde
e nós a olharmos uns para os outros, inquietos
- O que diz o relógio?
apesar de termos ouvido perfeitamente a sua vozinha apressada, nós de súbito com medo
- Tarde?
e o que significa tarde meu Deus? o que pretende o relógio? Mesmo tapando as orelhas com as mãos a teimosia permanece
- Já é tarde
mesmo não escutando mais nada escutamos o
- Já é tarde
não sabemos se no relógio se no interior da gente, olhamos em volta, olhamos para dentro à procura, achamos episódios antigos, um triciclo, um avô a espantar-se
- O que tu cresceste
um colar de pérolas
(de quem?)
numa tacinha, achamos a nossa vida de hoje, o que fazemos com ela, dias atrás de dias, o supermercado, o jantar no restaurante aos domingos, a maçada das crianças às vezes e não era bem isto que nos apetecia, não era bem isto o que tínhamos desejado, falta qualquer coisa, onde é que errámos, o que falhámos, não somos infelizes mas também não temos o que secretamente ansiávamos, os anos vão passando
( - o que tu cresceste)
e não temos o que secretamente ansiávamos, de vez em quando momentos tão vazios, de vez em quando, mesmo no meio dos outros, uma solidão tão grande, um desamparo, uma sensação de queda, esta dificuldade em respirar, porque a mobília sufoca, que vem e desaparece e volta, de vez em quando, sem motivo, vontade de chorar, não lágrimas grandes, não soluços, uma coisa vaga, uma pergunta
E agora?
sem resposta, caras familiares que se tornam estranhas, se te abraçar continuo sozinho, o que se passa comigo, o que se passa connosco, o relógio prossegue
- Já é tarde
monótono, acusador, implacável, os objectos quietinhos sem nos ajudarem
- Porque não nos ajudam?
Nada nos ajuda, é tarde, tentamos conversar e é tarde, fazemos amor e é tarde apesar de termos feito amor na esperança que não seja tarde e depois, em lugar do prazer, ou misturado com o prazer, ou mais forte que o prazer, uma espécie de amargura que persiste, se não dilui, persiste, o
- E agora?
sem resposta aumenta, um
- E agora?
imenso, que horror, um
- E agora?
que nos preenche inteiros, se nos pegassem ao colo, fugissem connosco, nos garantissem
- Não é tarde ainda
e pudéssemos acreditar que não é tarde ainda, tranquilizar-nos afirmando
- Não é tarde ainda
embora cientes que mentimos
-Não é tarde ainda
e tornar a mentira verdade,que outra coisa fizemos para além de tentarmos transformar as mentiras em verdades, não há ninguém mais crédulo que um desesperado
- O que tu cresceste
e em que direcção cresci não dou por ter crescido, lá está o triciclo, lá está o avô, lá está o colar, os frascos de perfume que cheirávamos às escondidas, os cigarros que fumávamos secretamente no quintal, cresci para onde, cresci como, se nos metermos no carro, se almoçarmos fora, se te pegar na mão melhoramos e contudo
ficamos parados
a teimar no silêncio
(que silêncio tão grande)
- Já é tarde
e não é o relógio, somos nós
- Já é tarde
não noite ainda e contudo tão tarde, aproximamo-nos da janela, os prédios de costume na rua
(esperavas outros prédios, outro bairro?)
e tão tarde, ganas de apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, de que serve apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, no espelho a nossa cara
- O que tu cresceste
diferente, a nossa cara diferente, porquê diferente, porquê diferente, porquê diferente, porquê diferente, o que é isto nos olhos, o que é isto na boca a ecoar
-Tarde
todo o corpo a afirmar
-Tarde
e quando o
-Tarde
diminui o
E agora?
a dilatar-se nele, o
-E agora
imenso, sentamo-nos no sofá com uma revista, o jornal, um livro e as mãos vazias, apertamo-las uma na outra, espreitamos o triciclo, a certeza que se pedalássemos muito depressa não seria tarde, pedalar mais depressa que o relógio, os episódios antigos, aquela parente que nos oferecia rebuçados cujo papel não descolava e se prendia aos dentes, tentávamos retirar o papel com a unha e não saía, ainda nos lembramos do gosto do papel na língua, largamos a revista, o jornal, o livro, e ficamos no sofá, tanto tempo passado, com papel na língua, a mastigá-lo, a mastigá-lo, a mastigá-lo, no fundo da gente nós mesmos a acusarmo-nos
- Porque me tornaste nisto?
o silêncio aumentou tanto que o relógio se calou, uma palma no nosso ombro
- O que foi?
e construímos peça a peça um sorriso difícil
(custa tanto um sorriso)
que responde por nós
- Não foi nada.

(António Lobo Antunes) Crónica publicada no nº766(8 de Novembro 2007)revista Visão

3 comentários:

  1. .
    Olá Blogger. Vamos criar um movimento de Bloggers para mudar a LETRA DO HINO NACIONAL?!

    http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Portugal/Simbolos_Nacionais/HinoNacional.htm

    Escreve outra versão.


    A minha PROPOSTA:

    "A Liberdade" (um povo sem formação não é um povo livre).

    Heróis do mar, nobre povo,
    Nação valente, imortal,
    Levantai hoje de novo
    O esplendor de Portugal!
    Entre as brumas da memória,

    Ó Pátria, sente-se a voz
    Dos teus egrégios avós,
    Que há-de guiar-te à vitória!

    E agora a parte em que se faz a ALTERAÇÃO:.

    Às aulas, às aulas!
    Na Escola e no Trabalho,
    Às aulas, às aulas!
    Pela Pátria aprender
    Contra o atraso estudar, estudar! (*2)


    (*2) - ALV - Aprendizagem ao Longo da Vida.

    "Toda e qualquer actividade de aprendizagem, empreendida numa base contínua,
    com o objectivo de melhorar conhecimentos, aptidões e competências".

    Site em http://www.alv.gov.pt


    NOTA: "Atletas, espanhóis, querem dar letra ao hino nacional espanhol".

    in Jornal Diário de Notícias, 13.6.2007, ou em
    http://dn.sapo.pt/2007/06/13/desporto/atletas_querem_letra_hino_nacional_e.html

    ? Quem mudará primeiro a letra do Hino ? A Espanha ou Portugal ?


    BRAGA ( mas LISBOETA, "A Invasão Mourisca", http://jn.sapo.pt/2007/02/27/opiniao/a_invasao_mourisca.html ) 31.5.2007.

    JOSÉ DA SILVA MAURÍCIO para os que não gostam de Anónimos.

    ANÓNIMO para os que não gostam de armantes.

    E para os restantes, J#o? d/ sI&v? Ma+/+u)io ( ASSINATURA ILEGÍVEL ).

    mauricio_102@sapo.pt

    http://eunaodesisto.blogs.sapo.pt

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  2. Não compro a Visão. Teria perdido este excelente texto. Obrigado, Addiragram. :)

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  3. apetecia-me ter sido eu a escrever isto.
    aposto que cada um de nós gostaria de ter escrito isto.

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