domingo, novembro 25, 2007

No fim de tarde, quando as luzes se acendiam....

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(Aguarelas de Turner)Baía


"Os jogadores de porrinha, de ronda, de sete-e-meio suspendiam as emocionantes partidas, desinteressados dos lucros, apatetados. Não era Berro d'Água o seu indiscutido chefe? Caía sobre eles a sombra da tarde como luto fechado. Nos bares, nos botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irremediável. Quem sabia melhor beber do que ele, jamais completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante quanto mais aguardente emborcava? Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as nuanças de cor, de gosto e de perfume. Há quantos anos não tocava em água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro d'Água.

Não que seja fato memorável ou excitante história, mas vale a pena contar o caso, pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de "berro d'água" incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas. Entrara ele na venda de Lopez, simpático espanhol, na parte externa do mercado. Freguês habitual, conquistara o direito de servir-se sem auxílio do empregado. Sobre o balcão viu uma garrafa transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E o berro inumano cortou a placidez da manhã no mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte, de um homem traído e desgraçado:

- Águuuuua!

Imundo, asqueroso espanhol de má fama! Corria gente de todos os lados, alguém estava sendo com certeza assassinado, os fregueses da venda riam às gargalhadas. O "berro dágua" de Quincas logo se espalhou como anedota, do Mercado ao Pelourinho, do largo das Sete Portas ao Dique, da Calçada a Itapoã. Quincas Berro d'Água ficou ele sendo desde então, e Quitéria do Olho Arregalado, nos momentos de maior ternura, dizia-lhe "Berrito" por entre os dentes mordedores."

"Quando um homem morre, ele se reintegra em sua respeitabilidade mais autêntica, mesmo tendo cometido loucuras em sua vida. A morte apaga, com sua mão de ausência, as manchas do passado e a memória do morto fulge como diamante. Essa a tese da família, aplaudida por vizinhos e amigos. Segundo eles, Quincas Berro d'agua, ao morrer, voltara a ser aquele antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da Mesa de Rendas Estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sob o braço, ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a política, jamais visto num botequim, de cachaça caseira e comedida."

"No fim da tarde, quando as luzes se acendiam na cidade e os homens abandonavam o trabalho, os quatro amigos mais intimos de Quincas Berro d'agua; Curió, Negro Pastinha, Cabo Martim e Pé-de-Vento, desciam a ladeira do Tabuão em caminho do quarto do morto. Deve-se dizer, a bem da verdade, que não estavam eles ainda bêbedos. Haviam tomado seus tragos, sem dúvida, na comoção da notícia, mas o vermelho dos olhos era devido às lágrimas derramadas, à dor sem medidas, e o mesmo pode-se afirmar da voz embargada e do passo vacilante. Como conservar-se completamente lúcido quando morre um amigo de tantos anos, o melhor dos companheiros, o mais completo vagabundo da Bahia?"

( A morte e a morte de Quincas Berro D'Agua- Amado, Jorge- Editora Record )


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