Turner na liberdade das suas aguarelas dá-nos a emoção do olhar e do sentir em estado puro.Este espaço propõe-se convocar, pela voz dos que sabem, múltiplos instantes de vida: luz e sombra; esquecimento e memória; vida e morte...
"Seja qual fôr o caminho que eu escolher um poeta já passou por ele antes de mim"
S. Freud
quinta-feira, dezembro 07, 2006
"O Poeta Real e a Fénix renascida"
Príncipe Real (cont)
Portanto estava assente: Mendonça, o Poeta Real, passeava no jardim não um pato ou pata mas a defunta mulher.Isto garantia a porteira com a mão no coração, e que ninguém duvidasse porque assistira ao sofrimento e à morte da senhora, desde que uma doença desconhecida dos doutores lhe começara a dobrar a coluna até a deixar do tamanho de uma criança. Do tamanho dum pato, pouco mais.
Mendonça, que até então não era o Poeta Real que reinava no jardim, quando se viu viúvo e só, ficou de um dia para o outro com o cabelo enbranquecido e deixou a casa onde vivera tantos anos de amor e de felicidade. Esfumou-se.Desapareceu, a porteira nunca soube para onde mas admite que aquilo foi um chamado de Deus para qualquer lugar de recolhimento.
O que é certo é que um belo dia o víuvo tornou a aparecer, direito e todo metido consigo como dantes, mas com um pato negro ao seu lado. "Tate", pensou logo a porteira, "pato ou pata ,aquilo é ela a falecida. Com um brilho tão cuidado e uma serenidade tão altiva, é ela, não pode ser outra coisa. "Mais: o Mendonça já não tinha o cabelo embranquecido mas pintado de um negro tão negro como o das penas do pato.Da pata, queria dizer.
Foi nesta estranha aliança de luto e de silêncio que os dois passaram a visitar todas as tardes o Jardim do Príncipe Real.
Percorriam-no sem se olharem um ao outro, seguros da sua cumplicidade, até que em certo banco, sempre o mesmo, o Poeta Real se sentava a ler o Diário da Tarde.Dois passos à sua frente, num canteiro de rosas damascenas, sentava-se logo o pato e alí ficava, de bico apontado para ele, numa moldura de flores.
Foi assim que o O'Neill os viu da última vez, quando já andava de bengala, a caminho de morrer. "O Poeta Real e a Fénix renascida", disse-me ele; e sorriu um sorriso desencantado que era uma sombra daquele que todos nós lhe conhecíamos. Mas de repente, passados meses, anos talvez, o pato deixou de aparecer. Morreu pensou o dono do quiosque. Ou fugiu-lhe, quem sabe?
Morte ou ingratidão, o certo é que o Poeta Real continuou fiel ao jardim. Ainda há pouco o encontrei no mesmo banco de sempre, direito e solene, a olhar para o canteiro das rosas damascenas, mas já sem jornal, já branco de cabelo,à espera que a noite baixasse sobre ele.
José Cardoso Pires (A Cavalo no Diabo)
Olhar o mundo à minha volta,
gostar dos que me são queridos,
usar, da melhor maneira, aquilo, que julgo saber...
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Tem um fim triste... não muito diferente da vida!
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