O português gosta de enganar pela calada aqueles que mandam nele. Mandar é um verbo antigo, vasto, totalitário e infantil, que em princípio da idade adulta devia ser substituído por verbos de maior eficiência e capacidade democrática, como coordenar e gerir.
Verbos que cheiram a trabalho e responsabilidade- e o português tem o olfacto muito apurado. Assim prefere a clareza do mando, ao qual faz vénias mansas, com os dedos cruzados atrás das costas. Figas, diabo. De modo que é um povo resistente às sondagens, como mais uma vez provaram as últimas eleições europeias. A não ser essa explicação, teríamos de dizer que as empresas de sondagens são governamentalizadas. Podemos atribuir a discrepância entre as sondagens e os resultados a um gosto nacional pela surpresa ou pelo prazer de enganar. Ou ainda, à volubilidade de um povo habituado a viver como se fosse eterno.
Divertiu-me a rapidez com que, logo que se conheceu a vitória do PSD, apareceu uma sondagem da Eurosondagem a demonstrar que, se a eleição fosse para as legislativas, o resultado seria diferente, e o PS ganharia-sondagem essa realizada antes das eleições europeias. Brincamos com os números; talvez seja uma forma de lembrar aos povos mais calhados com as matemáticas que nada é exacto nem definitivo neste mundo. Gostamos mais de especular do que fazer contas- o que, não sendo o melhor método de governação, é um excelente modo de passar o tempo.
Nunca há derrotados, nas eleições portuguesas-pelo menos não no sentido clássico, que é o de reflectir sobre a derrota e tirar dela lições. José Sócrates, que tem um perfil de liderança mais frontal do que todos que tivémos a oportunidade de experimentar- incluindo o recém-ressuscitado Salazar, que adoptava o estilo de cordeiro sacrificial que melhor se coaduna com os complexos de inferioridade nacionais -, teve pelo menos a originalidade de assumir a derrota. Usou mesmo o verbo assumir-mas acrescentou de imediato que não viu nela nenhum sinal de inversão de marcha, pelo que o Governo prosseguirá na mesmíssima linha, e os portugueses compreenderão o seu esforço de combate à crise.
Eu gostava de ter essa mesma fé na generosidade dos portugueses-mas acho difícil que uma população que perdeu dezenas de regalias nos últimos anos, sem ver sequer um fósforo de justiça no fundo do tal túnel, já infinito, possa ter essa boa vontade. Atrevo-me, por isso, a sugerir ao primeiro ministro que considere umas correcções na linha. As reformas são necessárias, mas deveriam contemplar a realidade das pessoas, para lá da abstracção dos números. É difícil implantar uma cultura do mérito enquanto os chefes continuarem a enriquecer e os índios a empobrecer. É difícil entender que falte o dinheiro para o essencial (habitação, educação, justiça) e que os administradores da coisa pública, em particular aqueles cujo mérito é reconhecidamente nulo, ganhem pelo menos o triplo do salário do próprio primeiro ministro. É difícil de aceitar investimentos milionários em comboios ou museus enquanto pessoas não tiverem condições de vida mínimas, e os aposentados forem atirados para os braços financeiros dos filhos que já têm os próprios filhos a sustentar.
Ao longo da noite eleitoral, ouvimos comentadores de todos os quadrantes puxarem a brasa à sua sardinha. Nisso somos bons: os campeões da sardinha. Mas entre uma brasa e outra, conviria perceber que o voto, num país que é líder mundial da cortiça e que habituou a navegar à bolina, traz recados. Um dos recados, que o PSD ganharia em entender, é que Paulo Rangel não é a Manuela Ferreira Leite. O segundo recado, que os outros partidos precisam de entender, é que votar contra o Governo não significa ter visto a verdade e a luz na oposição. O terceiro recado, que Sócrates precisa mesmo de entender, é que não basta, por falta de melhor alternativa ( o que já não é pouco) continuar a ser primeiro-ministro: é preciso ter condições para governar. Mandar com jeito, usando a gratidão e o respeito que amolece a manha dos povos velhos. Foi devagar que construímos os barcos, criámos receitas e escrevemos as páginas que nos tornaram admirados no mundo. Anunciamos:"estou a fazer tempo", como se fôssemos deuses, e pudéssemos fabricar o tempo á medida dos nossos desejos. Dizemos: "há tempo...". E acabamos por nos desenrascar, quando é preciso. Mas tem de valer a pena. Somos sonsos, mas não somos parvos.
(Inês Pedrosa- O país onde se faz tempo. Os recados eleitorais de um povo que não compra o tempo já feito) in Revista Única- 13/06/09)
Verbos que cheiram a trabalho e responsabilidade- e o português tem o olfacto muito apurado. Assim prefere a clareza do mando, ao qual faz vénias mansas, com os dedos cruzados atrás das costas. Figas, diabo. De modo que é um povo resistente às sondagens, como mais uma vez provaram as últimas eleições europeias. A não ser essa explicação, teríamos de dizer que as empresas de sondagens são governamentalizadas. Podemos atribuir a discrepância entre as sondagens e os resultados a um gosto nacional pela surpresa ou pelo prazer de enganar. Ou ainda, à volubilidade de um povo habituado a viver como se fosse eterno.
Divertiu-me a rapidez com que, logo que se conheceu a vitória do PSD, apareceu uma sondagem da Eurosondagem a demonstrar que, se a eleição fosse para as legislativas, o resultado seria diferente, e o PS ganharia-sondagem essa realizada antes das eleições europeias. Brincamos com os números; talvez seja uma forma de lembrar aos povos mais calhados com as matemáticas que nada é exacto nem definitivo neste mundo. Gostamos mais de especular do que fazer contas- o que, não sendo o melhor método de governação, é um excelente modo de passar o tempo.
Nunca há derrotados, nas eleições portuguesas-pelo menos não no sentido clássico, que é o de reflectir sobre a derrota e tirar dela lições. José Sócrates, que tem um perfil de liderança mais frontal do que todos que tivémos a oportunidade de experimentar- incluindo o recém-ressuscitado Salazar, que adoptava o estilo de cordeiro sacrificial que melhor se coaduna com os complexos de inferioridade nacionais -, teve pelo menos a originalidade de assumir a derrota. Usou mesmo o verbo assumir-mas acrescentou de imediato que não viu nela nenhum sinal de inversão de marcha, pelo que o Governo prosseguirá na mesmíssima linha, e os portugueses compreenderão o seu esforço de combate à crise.
Eu gostava de ter essa mesma fé na generosidade dos portugueses-mas acho difícil que uma população que perdeu dezenas de regalias nos últimos anos, sem ver sequer um fósforo de justiça no fundo do tal túnel, já infinito, possa ter essa boa vontade. Atrevo-me, por isso, a sugerir ao primeiro ministro que considere umas correcções na linha. As reformas são necessárias, mas deveriam contemplar a realidade das pessoas, para lá da abstracção dos números. É difícil implantar uma cultura do mérito enquanto os chefes continuarem a enriquecer e os índios a empobrecer. É difícil entender que falte o dinheiro para o essencial (habitação, educação, justiça) e que os administradores da coisa pública, em particular aqueles cujo mérito é reconhecidamente nulo, ganhem pelo menos o triplo do salário do próprio primeiro ministro. É difícil de aceitar investimentos milionários em comboios ou museus enquanto pessoas não tiverem condições de vida mínimas, e os aposentados forem atirados para os braços financeiros dos filhos que já têm os próprios filhos a sustentar.
Ao longo da noite eleitoral, ouvimos comentadores de todos os quadrantes puxarem a brasa à sua sardinha. Nisso somos bons: os campeões da sardinha. Mas entre uma brasa e outra, conviria perceber que o voto, num país que é líder mundial da cortiça e que habituou a navegar à bolina, traz recados. Um dos recados, que o PSD ganharia em entender, é que Paulo Rangel não é a Manuela Ferreira Leite. O segundo recado, que os outros partidos precisam de entender, é que votar contra o Governo não significa ter visto a verdade e a luz na oposição. O terceiro recado, que Sócrates precisa mesmo de entender, é que não basta, por falta de melhor alternativa ( o que já não é pouco) continuar a ser primeiro-ministro: é preciso ter condições para governar. Mandar com jeito, usando a gratidão e o respeito que amolece a manha dos povos velhos. Foi devagar que construímos os barcos, criámos receitas e escrevemos as páginas que nos tornaram admirados no mundo. Anunciamos:"estou a fazer tempo", como se fôssemos deuses, e pudéssemos fabricar o tempo á medida dos nossos desejos. Dizemos: "há tempo...". E acabamos por nos desenrascar, quando é preciso. Mas tem de valer a pena. Somos sonsos, mas não somos parvos.
(Inês Pedrosa- O país onde se faz tempo. Os recados eleitorais de um povo que não compra o tempo já feito) in Revista Única- 13/06/09)
E o título está muito bem apanhado.
ResponderEliminarBeijo de bom Domingo.
:)