segunda-feira, outubro 01, 2007

A Net e as suas virtualidades - Ainda o "passeio dos poetas"




VIOLADÁFRICA

amigo a tua viola é o que resta
das papoilas e das rosas dum país
enches as noites africanas com acordes
de cravos e de cardos e lentamente uma serpente

de saudade
vai-te cercando o corpo
lentamente.

percorres a tua escala de ausência
na melodia em tom menor
com que se escrevem temas de exílio
solidão cansaço.

e o teu canto é um uivo agourento
e branco
atirado à lua
sob este céu que não foi nunca de Janeiro.


(in «Marinheiro Com residência Fixa»)

Urbano Bettencourt http://www.iac-azores.org/livraria/textos/urbano.html



Tresleituras

O passeio dos poetas pela cidade


Encontrei o livro num quarto de hotel e creio que se chamava Anuário de Ouro dos Açores, ou coisa que o valha. Era um robusto e bem cuidado volume em que políticos, governantes, empresários, autarcas e outros agentes me apresentavam os seus cumprimentos de boas-vindas e davam a conhecer um pouco da realidade da sua área de circunscrição. As palavras inaugurais eram do dr. Laborinho Lúcio. O então Ministro da República não se ocupava dos insondáveis mistérios do cargo e dera ao seu texto o simples título de “Por vezes morrem os poetas”: saudação e votos em começo de 2005, sob a evocação de dois poetas açorianos falecidos no ano anterior, Emanuel Félix e Rui Rodrigues.
Confesso que não me causou surpresa esse gesto evocativo por parte do dr. Laborinho Lúcio; afinal, continuo a dever-lhe uma brilhante intervenção sobre Natália Correia, feita sem rede, isto é, sem suporte escrito, na Junta de Freguesia da Fajã de Baixo, já lá vão alguns anos. O que me espantava era que tivesse sido precisamente ele o único a fazê-lo; mas talvez a “distracção” de outros quisesse significar apenas que eles andariam a ler Platão, muito favorável, como se sabe, a que se encaminhe os poetas para as favelas da república.
Voltei a lembrar-me de tudo isto na manhã de sol em que andei pela Praia da Vitória tentando refazer o “Passeio dos Poetas”, o projecto de Luís Gil Bettencourt que permitiu afixar nas ruas da cidade uma série de painéis de cerâmica, cada um deles com o nome, o perfil e o breve texto de um poeta de língua portuguesa.
Eles lá estão, expostos ao olhar público, avivando a memória dos nomes e dos textos, tornados íntimos dos passantes, e lançando uma outra luz sobre as compras e a azáfama de cada dia. Entre mais conhecidos e menos conhecidos, há lugar para os “cultos” como Nemésio (na fachada da Biblioteca Municipal e em diálogo cruzado com Antero, na esquina do outro lado da Praça), Florbela Espanca e Emanuel Félix, José Luís Peixoto e Emanuel Jorge Botelho, Egito Gonçalves e Carlos Drummond de Andrade, entre outros. E estão também os “populares” (e não sei que outras etiquetas possam substituir estas, tão redutoras) como o Charrua, o Vital ou o Galante. Lá está o bucólico Garrett com a sua “brisa vaga no prado” soprando ali mesmo ao lado do Café Terezinha, um local que muito provavelmente se quadraria melhor com a Turlu e a sua “língua comprida”. E até o meu amigo José Eliseu também tem o seu espaço, numa transversal à Rua de Jesus, de onde, mui pessoanamente, fita com olhar langue a placa indicativa de uma sex shop que mãos piedosas afixaram sob o azulejo em que a Senhora do Carmo distribui as suas graças a devotos e penitentes.
Nesse fim de Abril em que andei pela Praia, um homem sem pressa deteve-se junto ao painel da Turlu. Apoiado no seu guarda-sol bem à moda do “monte” (será que a sociologia empírica ainda se escuda neste léxico segregatório?), ali ficou, indiferente ao ritmo do tempo alheio, ao rumor e aos rumos de quantos por ele passavam.
Deixei-o entregue ao seu momento de recolhimento, que dava sentido e função à única rede de leitura pública que conheço. E fui-me em busca do painel em que um texto meu oferece ao eventual leitor um breve sopro de agonia vivida em África, em tempos de raiva e de sangue (e sei disso porque pude acompanhar à distância e por via da electrónica o seu processo de produção). O tempo escasseava-me, porém, ao contrário do que acontecia com esse leitor que perdi de vista, e não cheguei a encontrar o painel. Antes assim, que deste modo me livrei de um febrão narcísico.

Urbano Bettencourt


( Foi este lugar virtual que tornou possível a comunicação entre mim e o autor destes trabalhos. Dessa comunicação chegaram este texto e esta fotografia sobre o "Passeio dos poetas", que tenho o prazer de partilhar com todos. Um grande obrigada ao Urbano Bettencourt.)


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