domingo, julho 15, 2007

UM DOMINGO COM AQUILINO RIBEIRO E...O MEU PRIMEIRO ROMANCE...




Havia três dias e três noites que a Salta-Pocinhas- raposeta matreira, fagueira, lambisqueira- corria os bosques, farejando, batendo mato, sem conseguir deitar unha a outra caça além duns míseros gafanhotos, nem atinar com abrigo em que pudesse dormir um soninho descansado. Desesperada de tão pouca sorte, vinham-lhe tentações de tornar para casa dos pais, onde, embora subterrânea, a cama era mais quente e segura que em castelo do rei, e onde nunca faltava galinha, quando não fosse fresca, de conserva, ou então coelho bravo, acabado de degolar. Mas temia-se da mãe que ao cabo de uma semana de fome, depois do assalto frustrado à capoeira dum lavrador em que vira a morte a dois passos, lhe atormentara o juízo com advertências e bons conselhos:
- Salta- Pocinhas, minha filha, tens de procurar outro ofício. Comer e dormir, dormir e comer também eu queria. Olé! Se ainda o não sabes, fica sabendo: quem não trabuca não manduca. Mal entre a lua nova- e não tarda a hora que chegue às portinhas do céu- está na idade de te conduzir por tua cabeça. Também já te lá cantam desoito meses, e dezoito meses nada ladros, louvado seja o pai dos bichos. É olhar-te para ascnavalhas dos dentes e a boa saia de peluche. Uma beleza!
- Ih, ih, ih! desatara a Salta Pocinhas a choramingar.
- Santa Paciência! Teus irmãos andam ganhando o pão, sabe Deus com que trabalhos! O Pé-Leve saiu um açougue de finura...
- E bom filho! Estava ontem a gineta a fazer-lhe um rasgadíssimo elogio- disse o pai velho, um raposão de rabo pelado, ao tempo que se espreguiçava entesando e voltando a entesar um longo e descarnadíssimo pernil.
- Pudera! Foi ele que bifou ao padre-prior o rico galo galaroz, crista de vermelhão e pernas de retrós. Comemos nós, comeu a gineta e, cem anos que eu viva, não me hei-de esquecer do fartote. Coitado, o Pé-Leve emancipou-se há umas semanas. A ti, Salta-Pocinhas, guardámos-te mais tempo connosco, esperando que servisses de arrimo para o fim dos dias. É negócio arrumado, se tratares de ti, já nos damos por contentes. Pronto, deitaste bom corpo, arranja-te, arranja-te!Para baronesa não nasceste...
- O mundo vai mal! O mundo vai mal! -emitiu o raposão em tom pessimista. -Quem houver de levar a vidinha segundo as regras do amor ao pêlo precisa de lume no olho. Sim, senhora! Hoje em dia assaltar uma capoeira é um problema complexo, muito complexo...
- Estou velha...caduca- tornou a mãe, sem fazer caso da filosofia do raposo.- Não te posso manter, ainda que quisesse. Há coisa de dias um cãozinho bem reles, um destes totós que não prestam para mais nada que para soltar o béu! béu!, deitou a correr atrás de mim e por pouco que não me rasga a fralda. O toirão que o diga. Teu pai, depois que apanhou a chumbada nas pernas, está o que para ali se vê: um entrevadinho, um borralheiro, incapaz de pegar um caçapo a dormir a sesta no covil.


Aquilino Ribeiro ( O Romance da Raposa)

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