segunda-feira, julho 30, 2007

JOAQUIM ou uma estória mal contada (III)

(Goya)

(continuação) Gostava daquele ritual da preparação das injecções. Todos os da casa o esperavam como se preparassem para assistir a um ofício litúrgico. Traziam-lhe a correr o frasco de álcool e a mesa de pedra estava rigorosamente livre e limpa para os preparativos. Com gestos eficientes e lestos desinfectava as mãos, incendiava o algodão com aquele isqueiro que guardava dos tempos em que acendia cigarros uns nos outros. Batia na ampola com as pontas dos dedos e lá vinha a seguir aquele clic do estalar do vidro. Completamente concentrado aspirava o líquido e perguntava, quase sem olhar, de que lado ia ser hoje. Lá vinham as palmadinhas nas carnes macias e. finalmente, a picada ( não vai doer menina, foram muitas as que tive de dar lá pelas Áfricas e ali sim, as mais das vezes não havia cama, não havia catre, era sempre de pé, sempre a andar e não houve uma que se me tivesse infectado). E lá saía ele, sempre em silêncio, todo orgulhoso da eficiência com que conduzira o ritual, recebendo os parabéns do pai da pequena. Com Joaquim as injecções nunca doíam. Até parecia que a agulha não chegara sequer a pousar. Quando a porta se fechava os da casa ficavam a cavaquear ( onde fora aquele Dr. Joaquim aprender aqueles modos? Que segredos teimava em aferrolhar?) E à volta do braseiro saltavam as mais surpreendentes estórias a propósito daquele homem que tratava por tu os bichos e que em relação às gentes sempre preferia resguardar-se.
A alva envolvera subtilmente todos aqueles lugares e Joaquim encetava o caminho do regresso. Corpo seco e encurvado como o de um vime, parecia dançar quando visto de longe por entre arbustos que mordiam o carreiro. Quase se lhe adivinhava o sorriso, quando ninguém o conseguia verdadeiramente ver. Era ele só, a terra e os seus sonhos. A memória assaltava-o de novo quando laranjas espalhadas pelo chão se lhe colavam à retina. Distraído de si sentia-lhes o cheiro. Divagava aqueles seus dedos pela superfície lisa e lustrosa. Dedos carregados de memórias que desenhavam no espaço húmido contornos e brilhos. Raramente se deixava tomar pelo sonho. Cada dia era desenhado com a precisão do compasso e do esquadro, não resgatando outros tempos para além dos previamente determinados.
Além do cajado que um dia ele mesmo esculpira de um tronco largo, seco e compacto, sustinha-se também nessa rigidez implacável que sempre o acompanhara e que costumava situar nesses tempos de guerra. Mesmo que os contornos das imagens se tornassem cada vez mais fortes, que as saudades o cobrissem todo por dentro, não se dava a si mesmo a esses luxos. Prendia-se àquela dureza como a uma prótese que teria de tolerar, mas que lhe era impossível dispensar. Abrigava-se por detrás desse muro mais espesso e impenetrável que os que dividiam as courelas e nos estratos delineados pelos minérios lia gravadas as memórias tortuosas da sua existência.(cont.)

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