quarta-feira, julho 25, 2007

JOAQUIM ou uma estória mal contada (I)



A réstia de luz despedia-se vale. Joaquim decidira aproveitar os últimos reflexos que lambiam a soleira e sentado no mocho colocado àquela porta há um ror de tempo, pousava os olhos cansados mas brilhantes nos limites da encosta.
Dali até à capital era sempre a direito na estrada do coração.
Os dias perdiam aquele tempo desmedido e agora que o Outono permitia aquela multiplicidade de cores, dos ocres aos dourados, que a beleza verdadeiramente parecia ter vindo para ficar, ele fazia daquelas frestas semicerradas colocadas sobre o perfil da serra, os barcos que o conduziam só ele sabia onde.
Ninguém podia pedir-lhe contas, ninguém lhe podia falar em traição...Ele sentia-se senhor daquele horizonte contínuo que se estendia como um tapete e em que se deixava escorregar, como os garotos nas dunas, até terras que abrigava dentro de si.
O dia fora intenso para aqueles oitenta anos. Acordava agora, rigorosamente, pelas cinco da manhã. Os pesadelos, que o tinham atingido no corpo e na alma, tinham deixado de o visitar. Continuava a sonhar com os bichos, aqueles seus bichinhos mansos, que riam como crianças e lembravam quadros de Chagall.
Ainda a manhã se encontrava guardada do lado de trás do monte e já cirandava pela casa preparando o café de cevada e a costumeira fatia de pão. Como era hábito dizer, o apetite só vinha ao fim de umas boas horas na companhia da velha enxada. Aí sim, ficava estrazanado e a fome era mesmo a valer.
Lá em casa nunca perceberam como conseguia viver assim, sem aquele gosto pelos sabores, pelos cheiros, mais parecendo apenas governado pela máquina biológica.
Saía ainda sem luz, sempre pelo mesmo carreiro que o levava à horta, todos os dias, todos os anos, como se tivesse ganho raízes naquele lugar.
O frio entrara já pelo Outono adentro e era preciso ver se as geadas começavam a crestar as novas sementeiras, se as pragas atingiam aqueles pequenos seres que teimava em fazer nascer.
Diziam-lhe tantas vezes ( o ti Jaquim devia pensar em deixar essas artes; isso está bom prós
mais novos!).As costas, tal engrenagens mal oleadas, estalavam a cada golpe de enxada, mas o que lhe pediam era o impossível. Sachadas as ervas daninhas, era a hora de puxar a água do poço deixando-a entornar nos regueiros. Apoiado na enxada olhava o deslizar brilhante daqueles fios de prata e os olhos rasavam-se-lhe também de água. De novo as memórias que lhe atulhavam os sentidos e que reencontava naquele instante quase religioso de encontro com os elementos. (Continua)

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