Turner na liberdade das suas aguarelas dá-nos a emoção do olhar e do sentir em estado puro.Este espaço propõe-se convocar, pela voz dos que sabem, múltiplos instantes de vida: luz e sombra; esquecimento e memória; vida e morte...
"Seja qual fôr o caminho que eu escolher um poeta já passou por ele antes de mim"
S. Freud
terça-feira, julho 31, 2007
Sob o Signo das águas: à descoberta do Douro
ANTONIONI e o seu maravilhoso Blow-up
Antonioni também partiu. Relembremos sempre o seu melhor.
JOAQUIM ou uma estória mal contada (IV)
A manhã já ia alta. Era hora de dar um salto à loja onde se abastecia das necessidades mais urgentes e encostado ao balcão ouvia as novidades dos que por ali cirandavam. Gostava de se misturar com os da terra, de mergulhar nos modos , trejeitos, recolhendo hábitos, palavras, segredos, como quem faz o levantamento e inventário dos achados. Tudo registava naquele caderno que era parte integrante da sua sacola. O conhecimento feito de uma observação quase laboratorial dava-lhe a sensação de domínio, de segredo só por si descoberto.
Sob o Signo das águas: à descoberta do Douro
segunda-feira, julho 30, 2007
RELEMBREMOS TODOS OS SEUS FILMES...
Uma excepção neste período . Bergman deixou-nos.
JOAQUIM ou uma estória mal contada (III)
A alva envolvera subtilmente todos aqueles lugares e Joaquim encetava o caminho do regresso. Corpo seco e encurvado como o de um vime, parecia dançar quando visto de longe por entre arbustos que mordiam o carreiro. Quase se lhe adivinhava o sorriso, quando ninguém o conseguia verdadeiramente ver. Era ele só, a terra e os seus sonhos. A memória assaltava-o de novo quando laranjas espalhadas pelo chão se lhe colavam à retina. Distraído de si sentia-lhes o cheiro. Divagava aqueles seus dedos pela superfície lisa e lustrosa. Dedos carregados de memórias que desenhavam no espaço húmido contornos e brilhos. Raramente se deixava tomar pelo sonho. Cada dia era desenhado com a precisão do compasso e do esquadro, não resgatando outros tempos para além dos previamente determinados.
Além do cajado que um dia ele mesmo esculpira de um tronco largo, seco e compacto, sustinha-se também nessa rigidez implacável que sempre o acompanhara e que costumava situar nesses tempos de guerra. Mesmo que os contornos das imagens se tornassem cada vez mais fortes, que as saudades o cobrissem todo por dentro, não se dava a si mesmo a esses luxos. Prendia-se àquela dureza como a uma prótese que teria de tolerar, mas que lhe era impossível dispensar. Abrigava-se por detrás desse muro mais espesso e impenetrável que os que dividiam as courelas e nos estratos delineados pelos minérios lia gravadas as memórias tortuosas da sua existência.(cont.)
domingo, julho 29, 2007
Férias- um espaço de descoberta
sábado, julho 28, 2007
Férias - um espaço de pensamento
sexta-feira, julho 27, 2007
Férias- um espaço de liberdade interior
quinta-feira, julho 26, 2007
JOAQUIM ou uma estória mal contada (II)
Partia depois em direcção às fruteiras, colhendo alguma maçã tardia, olhando cuidadosmente os ramos já pelados de folhas, imaginando por onde os cortaria na hora da poda.
Nas suas deambulações passava pelos vizinhos do lugar, que sempre ali tinham vivido, e que o olhavam com alguma benevolência e surpresa ( "esta gente das cidades é mesmo esquisita! Então o raio do homem deixou a vida da cidade e todos os seus pertences para aqui se vir enfiar?! Ele há cada um! Nós que só pensamos em deixar esta vida de lesma e o tipo com estudos e tudo, deu-lhe prá agricultura!essa mesma agricultura que os deixara cada vez mais amarrados ao pão de cada dia, trouxera para ali um intruso que teimava em dizer que aquilo do campo era coisa bonita.Bonita qual quê! Não se vê que o gajo não andou por aí descalço, nem sentiu os pés gretados, não cavou à custa de litradas de tinto e de pão duro já tocado pelos bolores...) Mas Joaquim ao escolher aquele lugar ou ao deixar-se escolher por ele, conseguira ser adoptado. Quantas vezes lhe pediam que trouxesse sementes do mercado ou produtos que combatiam as moléstias. Lá se metia então no velho Peugeot, uma espécie de segunda casa, habitado pelas alfaias mais variadas, vindas dos tempos em que se dedicara a escavações mais eruditas. Quase sempre em segunda, dirigia-se ao mercado ou, mais raramente, à cidade que abandonara desde que decidira partir para a reforma.
Os remédios para o míldio da vinha ou para o pedrado das fruteiras diluía-os ele nas exactas proporções. E de moléstias percebia ele. As da alma sempre caminharam a par e par com ele e algumas do corpo também, que aprendera a conhecer nos tempos de miliciano. Quando tinha um garrote para fazer , uma injecção para dar, um abcesso para purgar, deixava-se absorver totalmente naquela luta, pensando que destas vez as feridas ficavam mesmo saradas. Aplicava-se todo, tocando com doçura os corpos que pediam os seus cuidados. Ali na terra, de vez em quando, também o chamavam. E Joaquim acudia sempre, mesmo quando cada acto, cada gesto o transportavam a esse maldito passado de guerras loucas e inexplicáveis. (cont.)
Vai um mergulhinho ?
quarta-feira, julho 25, 2007
JOAQUIM ou uma estória mal contada (I)
Dali até à capital era sempre a direito na estrada do coração.
Os dias perdiam aquele tempo desmedido e agora que o Outono permitia aquela multiplicidade de cores, dos ocres aos dourados, que a beleza verdadeiramente parecia ter vindo para ficar, ele fazia daquelas frestas semicerradas colocadas sobre o perfil da serra, os barcos que o conduziam só ele sabia onde.
Ninguém podia pedir-lhe contas, ninguém lhe podia falar em traição...Ele sentia-se senhor daquele horizonte contínuo que se estendia como um tapete e em que se deixava escorregar, como os garotos nas dunas, até terras que abrigava dentro de si.
O dia fora intenso para aqueles oitenta anos. Acordava agora, rigorosamente, pelas cinco da manhã. Os pesadelos, que o tinham atingido no corpo e na alma, tinham deixado de o visitar. Continuava a sonhar com os bichos, aqueles seus bichinhos mansos, que riam como crianças e lembravam quadros de Chagall.
Ainda a manhã se encontrava guardada do lado de trás do monte e já cirandava pela casa preparando o café de cevada e a costumeira fatia de pão. Como era hábito dizer, o apetite só vinha ao fim de umas boas horas na companhia da velha enxada. Aí sim, ficava estrazanado e a fome era mesmo a valer.
Lá em casa nunca perceberam como conseguia viver assim, sem aquele gosto pelos sabores, pelos cheiros, mais parecendo apenas governado pela máquina biológica.
Saía ainda sem luz, sempre pelo mesmo carreiro que o levava à horta, todos os dias, todos os anos, como se tivesse ganho raízes naquele lugar.
O frio entrara já pelo Outono adentro e era preciso ver se as geadas começavam a crestar as novas sementeiras, se as pragas atingiam aqueles pequenos seres que teimava em fazer nascer.
Diziam-lhe tantas vezes ( o ti Jaquim devia pensar em deixar essas artes; isso está bom prós
mais novos!).As costas, tal engrenagens mal oleadas, estalavam a cada golpe de enxada, mas o que lhe pediam era o impossível. Sachadas as ervas daninhas, era a hora de puxar a água do poço deixando-a entornar nos regueiros. Apoiado na enxada olhava o deslizar brilhante daqueles fios de prata e os olhos rasavam-se-lhe também de água. De novo as memórias que lhe atulhavam os sentidos e que reencontava naquele instante quase religioso de encontro com os elementos. (Continua)
A antítese de férias...
(Boudin) http://fr.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A8ne_Boudin
Já então havia praias assim...Não é disto que eu gosto.
terça-feira, julho 24, 2007
A caminho das férias...
(Aguarelas de Turner) quem não se lembra de apanhar e coleccionar conchinhas...
segunda-feira, julho 23, 2007
Gosto deste quadro...
domingo, julho 22, 2007
Reflexos do Olhar CXIV
Não muito longe daqui aprendi a nadar com o meu pai...
sábado, julho 21, 2007
A caminho das férias....
sexta-feira, julho 20, 2007
Reflexos do Olhar CXIII
As férias estão quase a chegar. Até ao seu começo sairão apenas imagens sugestivas deste tema.
quinta-feira, julho 19, 2007
Música dos Andes
O gosto pela liberdade
(Doisneau- Kiss)
Há anos, não assim tão longínquos, dar um beijo na rua, namorados em enlevo, comprometia a liberdade do casal: detenção na esquadra mais próxima e multa a dinheiro. Era proibido beijar em qualquer estação do ano. Sobretudo, na Primavera. Não se conhecia receita para aquietar o desejo, as raparigas desnudavam os braços, abriam um pouco mais o decote; os rapazes cumpriam rigorosamente os impulsos de ser rapazes e namoravam-nas, tocavam-nas,olhavam-nas com arrojo e cobiça. Os agentes da Polícia apuravam o varejo, nestas épocas de raparigas em flor, e interferiam nos beijos roubados, roubando a felicidade contida nesses indecisos e cintilantes instantes.
Gosta de ver os pares aos beijos, sorri quando os observa, e reconhece, tristemente, ser assolado por insinuoso sentimento de inveja. Envelheceu muito rapidamente, deixou escoar o tempo sem o saber aproveitar. Não é bem isso: na verdade, não teve oportunidade de ser adolescente- foi logo promovido a homem. Apeteceu-lhe dizer ao casal dos beijos que estava muito feliz por eles e que sentia um certo conforto íntimo em estar com eles e contra aqueles que com eles não estavam. Seria uma tolice, porém.
A idade torna-os um pouco tolos, somos versões ligeiramente modificadas de pessoas normais, a tristeza que nos persegue transforma-se em desassossego e insensatez. Nenhuma morte é natural, escreveu Jorge de Sena. Nem a velhice, diz de si para consigo. Abandona-nos o desejo mas não se nos apazigua o afã de desejar. Envergonhamo-nos de contemplar as mulheres que movem o corpo todo, numa harmonia vital: intimidamo-nos com risinhos maliciosos que nos querem pôr à distância das simples coisas da vida.
Beijam-se e estão felizes; tão felizes que a expressão dessa felicidade faz com que os transeuntes, ou curiosos, ou brejeiros, ou entediados, apressem o passo ainda mais. O dia, luminoso, parecia um milagre sem mácula. A rua , extensa e povoada, interrompia-se no rio, e o rio marulhava, claro e ledo, bailando até à foz. Numa esquina, um grupo de índios entoavam belas canções dos Andes e espalhavam pela calçada peça de roupa artesanais que diziam vindas da Grande Cordilheira.(....)
Baptista Bastos ( O Gosto pela Liberdade - Lembranças de um beijo. Revista do Montepio, nº 54)
quarta-feira, julho 18, 2007
BORODINE- Principe Igor
E os olhos....não estão sem ver...
|
Silenciosa Música do Cosmos
As bocas que estão fechadas
não estão caladas
Os braços que estão caídos
não estão imóveis
E os olhos que estão voltados
não estão sem ver
Homem só homem só
tu bem me compreendes quando digo
que não estás só
e bem entendes bem entendes
este longo discurso enchendo o ar
que vem de toda a parte e vai a toda a parte
eternamente
em surdina
(Mário Dionísio)
terça-feira, julho 17, 2007
Compay Segundo - Yo vengo aqui
Reflexos do Olhar CXII
segunda-feira, julho 16, 2007
A liberdade de expressão aí é perfeita...
As vantagens da democracia são
assaz evidentes nas Berlengas
A liberdade de expressão é aí perfeita,
muito embora a conversa das gaivotas
possa parecer um pouco frívola e gutural.
Mas liberalmente mergulham sem entraves
na liberdade similar dos carapaus
Melhor só mesmo o caso das Desertas
onde os lobos-marinhos são poetas
na república do oceano a meditar
Graça Videira Lopes - http://almanaque24.blogspot.com/
http://barcosflores.blogspot.com
Recordando Callas
domingo, julho 15, 2007
UM DOMINGO COM AQUILINO RIBEIRO E...O MEU PRIMEIRO ROMANCE...
- Ih, ih, ih! desatara a Salta Pocinhas a choramingar.
- Santa Paciência! Teus irmãos andam ganhando o pão, sabe Deus com que trabalhos! O Pé-Leve saiu um açougue de finura...
- E bom filho! Estava ontem a gineta a fazer-lhe um rasgadíssimo elogio- disse o pai velho, um raposão de rabo pelado, ao tempo que se espreguiçava entesando e voltando a entesar um longo e descarnadíssimo pernil.
- Pudera! Foi ele que bifou ao padre-prior o rico galo galaroz, crista de vermelhão e pernas de retrós. Comemos nós, comeu a gineta e, cem anos que eu viva, não me hei-de esquecer do fartote. Coitado, o Pé-Leve emancipou-se há umas semanas. A ti, Salta-Pocinhas, guardámos-te mais tempo connosco, esperando que servisses de arrimo para o fim dos dias. É negócio arrumado, se tratares de ti, já nos damos por contentes. Pronto, deitaste bom corpo, arranja-te, arranja-te!Para baronesa não nasceste...
- O mundo vai mal! O mundo vai mal! -emitiu o raposão em tom pessimista. -Quem houver de levar a vidinha segundo as regras do amor ao pêlo precisa de lume no olho. Sim, senhora! Hoje em dia assaltar uma capoeira é um problema complexo, muito complexo...
- Estou velha...caduca- tornou a mãe, sem fazer caso da filosofia do raposo.- Não te posso manter, ainda que quisesse. Há coisa de dias um cãozinho bem reles, um destes totós que não prestam para mais nada que para soltar o béu! béu!, deitou a correr atrás de mim e por pouco que não me rasga a fralda. O toirão que o diga. Teu pai, depois que apanhou a chumbada nas pernas, está o que para ali se vê: um entrevadinho, um borralheiro, incapaz de pegar um caçapo a dormir a sesta no covil.
Aquilino Ribeiro ( O Romance da Raposa)
Norah Jones
Reflexos do Olhar CXI
sábado, julho 14, 2007
PERGOLESI - Stabat Mater
As relações entre as coisas...são complicadas demais...
« Há, minha senhora, com respeito ao que sucede neste mundo, três teorias distintas - que tudo é obra do Acaso, que tudo é obra de Deus, e que tudo é obra de várias coisas, combinadas ou entrecruzadas. Pensamos, em geral, em termos da nossa sensibilidade, e por isso tudo se nos volve num problema do bem e do mal; há muito que eu mesmo sofro grandes calúnias por causa dessa interpretação. Parece não ter ainda ocorrido a ninguém que as relações entre as coisas- suponho que haja coisas e relações - são complicadas demais para que algum deus ou diabo as explique. « Sou o mestre lunar de todos os sonhos, o músico solene de todos os silêncios. Lembra-se do que tem pensado quando, sozinha, está ante uma grande paisagem de arvoredos e de luar? Não se lembra, porque pensou em mim, e, devo dizer-lho, verdadeiramente não existo. Se existe qualquer coisa não sei.
« As aspirações vagas, os desejos fúteis, os tédios do vulgar, ainda quando o amamos, os aborrecimentos do que não aborrece- tudo isso é obra minha, nascida de quando, deitado à margem de grandes rios do abismo, penso que também não sei nada. Então o meu pensamento desce, eflúvio vago, às almas dos homens e eles sentem-se diferentes de si mesmos.
Fernando Pessoa ( A Hora do Diabo)
sexta-feira, julho 13, 2007
Cesária Évora - Sodade
Reflexos do Olhar CX
quinta-feira, julho 12, 2007
O BOLERO - Ravel
A palavra nasceu...
Metamorfoses da Palavra
A palavra nasceu:
nos lábios cintila.
Carícia ou aroma,
mal poisa nos dedos.
De ramo em ramo voa,
na luz se derrama.
A morte não existe:
tudo é canto ou chama.
(Eugénio de Andrade)
quarta-feira, julho 11, 2007
Leo Ferré - Chanson d' Automne
Reflexos do Olhar CIX
terça-feira, julho 10, 2007
Para ser grande, sê inteiro...
Ser Grande
Para ser grande, sê inteiro:
Nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda brilha,
Porque alta vive.
(Fernando Pessoa)
segunda-feira, julho 09, 2007
LEONARD COHEN - Suzanne
Quem se pode esquecer desta canção?
CHOCOLAT- soube-me bem saborear...
Reflexos do Olhar CVIII
domingo, julho 08, 2007
UM DOMINGO COM BERTOLT BRECHT
O Regar do Jardim
Ó regar do jardim , para animar a verdura!
Rega das árvores sedentas! Dá mais que o bastante
E não te esqueças dos arbustos, mesmo
Dos das bagas, dos cansados,
Dos avaros. E não me deixes passar
Entre as flores as ervas más que também
Têm sede. Nem regues só
A relva fresca ou a crestada:
Refresca também o chão despido.
Bertolt Brecht ( Poemas e Canções)
SHUMANN e HOROWITZ
Shumann - Traumerei
Barcos, que são formas esquivas...
Barcos Brancos
Barcos, que são formas esquivas,
cobrem a ria
oferecendo
à água da enchente a proa fina
São brancos quase todos
no princípio da
tarde a evidência da cal viva
Gastão Cruz (Crateras)
sábado, julho 07, 2007
Paco de Lucia - ARANJUEZ (2º andamento)
Reflexos do Olhar CVII
sexta-feira, julho 06, 2007
A tarde trabalhava sem rumor...
A tarde trabalhava
sem rumor
no âmbito feliz das suas nuvens,
conjugava
cintilações e frémitos,
rimava
as ténues vibrações
do mundo,
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos, estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz.
(Carlos Oliveira)
Miles Davis e John Coltrane - So What
quinta-feira, julho 05, 2007
Reflexos do Olhar CVI
ROSA de HIROSHIMA - Secos e Molhados
quarta-feira, julho 04, 2007
Ele é nós...
O Nascimento do Prazer (trecho)
O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos - pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protectora, com uma película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal protector, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.
(Clarice Lispector)
Beethovan e Wihelm Kempff
Moonlight Sonata -2º andamento
terça-feira, julho 03, 2007
Andrés Segovia
Reflexos do Olhar CV
segunda-feira, julho 02, 2007
Os pêssegos e as maçãs de Cézanne...
(Cézanne)
Enquanto for tempo
Os pêssegos e as maçãs de Cézanne
repousam no cesto do pão. Eu não
os olhei ainda o bastante. Distraído
por nada e por coisa nenhuma,
passo por eles de manhã e à
noite. Mas é como se eles não
existissem. Não aprendi ainda
a lição, a terrível lição: enquanto
for tempo de durar, dura; olha
enquanto for tempo de ver. Se
for tempo de estar, está. Sofre,
se for tempo de sofrer. E odeia
também, se te apetecer e for
preciso. Não descures os
minutos e os segundos, não
desprezes o infinitamente
pequeno, pois se te for concedido
o tempo hás-de arrepender-te.
João Camilo ( O som atinge o cimo das montanhas)
Reflexos do Olhar CIV
domingo, julho 01, 2007
UM DOMINGO COM A MINHA CIDADE
Radu Lupu e Mozart
(Concerto para piano nº 19 , K 459 - Mozart (3º andamento)
Foi coisa do Senhor Almada, com certeza...
« Foi coisa do Senhor Almada, com certeza», disse o Soares com um sorriso de raiva. O João Franco desviou-se, detestava-o, com os seus ares de superioridade e gorjetas de sovina. « pois, amigo e Senhor Teles, há que fazer umas mudanças...»« Nem pensar nisso, o que está feito, feito está!» respondeu-lhe o patrão, já lhe virando as costas. O café estava aberto e assim havia de ficar; se quisesse, podia queixar-se ao Senhor Pacheco, mas não julgasse que ele ia perder mais horas de trabalho com mudanças! Soares, por seu lado, tinha sido pago e não lhe convinha questões com o Pacheco: a Contemporânea ia recomeçar a saír e ele esperava que lhe pedisse para a capa a reprodução de um dos quadros, o do salão de chá, onde retratara três senhoras da sociedade « Smart». Seria a sua compensação, e podia sempre queixar-se, diante das injustiças que lhe faziam. « Estou a ver, estou a ver...» Olhou com desdém para as duas pinturas do Almada: « Não sabe pintar nem desenhar...» O Barradas estava bem, era o seu estilo, enfim...O Viana não era capaz de dominar a paleta- mas o Almada, francamente...« O Senhor Teles acha isto bem?» Soares dizia« isto» com um desdém muito apoiado, que lhe torcia a boca de maus dentes.« E esta maneira de se pôr em vedeta, e em que companhia...»
O Teles, na verdade, não achava bem os retratos: quem eram aquelas duas fúfias? E o José irritava-o, assim sempre de perfil! Tinham-lhe falado do Orpheu mas nunca tinha visto; chegara, antes, do Brasil e arranjara aquele espaço de uma camisaria no Chiado, para vender o seu café, e ganhara a partida. O sítio tinha fama antiga e convinha-lhe a frequência dos intelectuais, ao lado dos políticos da Havaneza e das damas que vinham à Bénard. Por isso fizera obras e contratara o melhor arquitecto que havia em Lisboa. Os quadros, pois, deixara-se levar na cantiga do Pacheco...Já tivera um conflito com aquele que se matara em Paris, Sá qualquer coisa, um gordo, quando quando aumentara o preço da chávena, e ainda há pouco tinha sido a história do Senhor Gualdino, uns ovos podres...Com a língua que tinha, era melhor não ter questões com ele e os seus amigos. Sabia ele de quem era o retrato que Almada estava a desenhar no seu quadro?, perguntava-lhe o Soares. Pois era o famoso Gualdino Gomes...O Teles hesitou, sem saber o que pensar. Com aquela gente...Enfim, ia-se ver o que os clientes diziam.
José-Augusto França (JOSÉ e os OUTROS. Almada e Pessoa, romance dos anos 20)