sexta-feira, outubro 20, 2006

Verás caír as montanhas de Jericó...

(Magritte)

A Teoria do Medalhão (continuação)

- Essa é a publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra.Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento de família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução de feições de um homem amado e benemérito. Nada obsta a que sejas objecto de uma tal destinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houveram lido o teu recente discurso ( suponhamos) na sessão inaugural da União de Cabeleireiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a "alavanca do progresso"e o "suor do trabalho" vencem as "fauces hiantes" da miséria. No caso de que uma comissão te leve a casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d'água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais.Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa dos reporters dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.
- Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.
- Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na prometida! Os que lá não penetram engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as montanhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desajectivados, e tu serás o adjectivo dessas orações opacas, o odorífico das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios.E ser isso é o principal, porque o adjectivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.
- E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os déficits da vida?
- Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade.
- Nem política?
- Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe sómente a utilidade do scibboleth bíblico.
- Se for ao parlamento posso ocupar a tribuna?
- Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: ou os negócios miúdos , ou a metafísica política, mas prefere a metafísica.Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas se puderes, adota a metafísica-é mais fácil e mais atraente.(cont)

Machado de Assis (Teoria do Medalhão)

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